O precursor do abolicionismo no Brasil/2.1

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O SATÍRICO

A nomeação de Luiz Gama para amanuense da Secretaria de Polícia, imprime-lhe á vida uma nova estabilidade. Liberto das peias da disciplina militar, que seu temperamento não podia compreender e menos aceitar, indócil que era de natureza, ficara-lhe a preocupação pelo pão quotidiano. A posse do emprego público, garantindo-o na luta pela vida, apezar dos parcos rendimentos do cargo, forrava-o a esse cuidado.

E pôde ele assim entregar-se completamente ao seu sonho de aparecimento literario, á vaidade de ser autor de livro publicado. Começou a colaborar na imprensa e, como bom brasileiro, tentou-o aquela connecida Musa que preside a poesia.

Em 1839, tres anos depois de nomeado, a Tipografia Dois de Dezembro, desta Capital, propriedade de Antonio Louzada Antunes, editava as suas muito citadas, mas mui pouco conhecidas, “Primeiras Trovas Burlescas”, de Getulino. Era uma estrea, que havia de ser um ponto final.

Dois anos mais tarde, apareceu a segunda edição, e esta confeccionada pela Tipografia de Pinheiro & Cia., síta á rua do Cano, 165, no Rio de Janeiro.

Não é possivel apurar o numero de exemplares da primeira fornada para saber até onde tinha ido o favor do publico, adquirindo o livrinho e determinando, em tão curto prazo, para a sociedade do tempo, a necesidade da segunda fatura. Pode ser que, para tanto, haja concorrido o tom satírico de que a maioria dos trabalhos estava revestida, como pode bem ter acontecido que fossem as alusões e pontas a figurões do tempo, enxertadas nas entrelinhas, e inatingiveis hoje, que houvessem provocado a divulgação do livro. Ou, talvez, houvesse influído o imprevisto da publicação.

Disse Coelho Neto, no Prefacio da 3.ª edição, em 1904, que o verso de Luiz Gama “se não prima pela beleza da forma, se não cintila em lavores de arte, se a rima, por vezes, é pauperrima, é leve como a flecha, silva, vai direito ao alvo, crava-se e fica vibrando”. E José Feliciano [1], recordando a frase, comenta : “Coelho Neto disse bem que os versos de Getulino não são de primeira agua ou correção, sobretudo para quem os lê, depois que o parnasianismo nos habituou a certo apuro de linguagem, a certa metrificação cuidadosa”.

Não era, portanto, o esplendor da roupagem artística o que trouxera o sucesso do livro. O exito talvez fosse determinado por um fato notavel, que devera ter impressionado a sociedade do tempo: a fulgurante inteligência daquele preto que, escravo e analfabeto integral, em 1847, quando Prado Junior lhe ensinou as primeiras letras, surgia, inopinadamente, poeta, com livro publicado e bem recebido pela crítica indígena, doze anos depois. O sucesso era realmente fóra do comum e devia ter chocado o ambiente de maneira vivíssima. Por mais que o quizessem negar, o livro constituia um veemente libelo da raça desprezada, que demonstrava, assim, a sua capacidade de ascensão.

E o protesto não vinha com o tom declamatorio das tiradas retóricas contra a opressão e contra a violencia. Era um protesto risonho, referto daquele riso escarninho e vingativo que é o traço fundamental das sátiras.

Porque suas composições poéticas, se não têm nada de extraordinario como beleza exterior, se não denunciam nele um privilegiado das Musas e um eleito da Arte, punham de manifesto um observador arguto e um vivacíssimo crítico de costumes. Excedeu-se Alberto Faria. o de Campinas [2], quando classificou o livro “mero arremedo formal de estrofes exóticas, sobre costumes e defeitos da época”. E ainda, quando julgou “quasi de todo serodia” a 3.ª edição póstuma.

Se ha muita cousa que envelheceu, como não podia deixar de acontecer num livro em que inumeras composições nasceram do comentário fortúito e ocasional de fatos que se foram sucedendo, no pequeno âmbito da cidade provinciana, a obra possue, contudo, muita cousa que se lê e se pode reler com prazer, hoje, e que se lerá por muito tempo ainda, porque nele Gama castiga defeitos e faltas universais. E se tal não tem transparecido, como devia, no estudo de sua feição marcadamente satírica é porque, regra geral, todos os seus pretensos biógrafos, sem excetuar Alberto Faria, para mostrar que lhe leram as composições, citam invariavelmente os versos da poesia “Quem sou eu?”, trabalho que o povo recrismou de “Bodarrada”, titulo por certo muito mais expressivo e muito mais adequado que o outro. Ora, se “A Bodarrada” pode considerar-se a produção mais feliz que lhe saiu da pena, absurdo seria supor que, lidando ele tantos anos no jornalismo, e tendo-se valido sempre da zombaria e do rídiculo como armas de ataque, Gama só tivesse escrito de verdadeiramente aproveitavel aqueles versos. E se a sua feição artística se estereotipou, em nossa literatura, por meio daquele clichê, deve-se isso exclusivamente ao fato de haver Silvio Romero, na segunda edição de seu livro máximo, dado relevo ao trabalho, citando-o na íntegra. E invariavelmente ou quasi, a poesia que os críticos e biógrafos do negro, lhe citam, é a conhecida “Bodarrada”.

Gama, entretanto, que é satírico, de verdade, que ama rir á custa da sandice, das contradições e das tolices alheias, que chega a ser ácido muita vez, aparentando, não raro, mau estomago, descendo mesmo ao impropério se isso lhe dá ganas, tem muitas outras páginas interessantissimas, que vale a pena recordar.

Êmulo de Camilo, o “escritor que melhor sabia passar uma descompostura”, sente-se em todas as suas profissões de fé, a raiva que lhe inspiravam todos os contrafatores da verdade. Tudo em Gama é arrebatamento. Fazendo versos ou jornalismo, advogando ou falando, é sempre o mesmo homem, tentando fazer esplender, com o fogo de sua paixão, com o entusiasmo de seu verbo, com a zombaria vergastante de seu riso, a Justiça, o Direito, a Lisura, a Retidão. E investe, sem medo, com um destrançamento de língua completamente fóra das normas do tempo, contra tudo que é arremedo, contra tudo que é falso, que é hipocrita, que é dissimulado.

Dissera ele, na “Prótase” de suas “Trovas Burlescas”:

«E podem colocar-se á retaguarda
os venerandos sábios de influência;
que o trovista respeita, submisso,
honra, pátria, virtude, inteligência.

Só corta com vontade nos malandros,
que fazem da nação seu montepio;
no remisso empregado, sacripante,
no lorpa, no peralta e no vadio.»

E ratifica no “Lá vai verso”, deixando bem claro sobre que alvos se encanzinaria de preferência sua musa irreverente:

«Quero a gloria abater de antigos vates
do tempo dos heroes armi-potentes;
os Homeros, Camões — aurifulgentes,
decantando os Barões da minha pátria!

Quero gravar em lúcidas colunas
o obscuro poder da parvoice
e a fama levar da vil sandice
ás longinquas regiões da velha Báctria!»

E de maneira insofismavel se definira, por fim, na última décima do “Novo sortimento de gôrras para gente do grande tom”:

«Eu, que inimigo sou do fingimento,
em prosa apoquentado sem talento,
apenas soletrando o b - a, ba,
empunho temeroso o maracá.

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Qual vespa, esvoaçando, atroz, picante,
com sátira mordaz, sempre flamante,
picando, picarei por toda a parte,
se a tanto me ajudar ferrão e arte.»

Não lhe importa, como se vê, o fulgor da frase. Interessa-lhe apenas a força com que a exprime. E seus versos, se não têm o brilho dos lavores acepilhados, sobre os quais suaram o escopro e o camartelo, na ânsia da perfeição, como idéas e como pontas são quasi sempre de um vigor notavel e ferem, a miudo, funda e dolorosamente.

Do livro repontam as quisilias, as antipatias, as birras e teirós mais firmes e mais inveterados de seu espírito. Não são muitos: os barões do Imperio; o ouro que tudo doura e redoura, em camadas espessas de purpurina, mesmo o que é moralmente ou espiritualmente sórdido; os politicos e seus aderentes, que se grudam, patrióticamente, ás arcas da fazenda real; os velhos e velhas dominados por paixões temporãs e maridos ingenuos a que as mulheres enfeitam a vida; a jatância dos simuladores do talento; a moda do tempo e, principalmente, a preocupação da côr da pele, que se ainda hoje existe e incomoda o rebanho humano, muito mais alanceava, naquela longinqua quadra, o coração de um país de escravos, isentos que todos pretendiam ser das máculas e táras com que a senzala inquinara a pureza da raça colonizadora.

“As Primeiras Trovas Burlescas” de Getulino, apezar de haverem logrado tres edições, constituem hoje um livro quasi introuvable. E’ preciso uma paciência de meses, recomendações particularissimas ás casas especializadas na busca dos livros dificeis para conseguir obter o esquivo folheto. Porisso mesmo, e ao contrario do que fazem quasi todos os seus biógrafos, que citam pouco ou quasi nada, para poder prolongar as proprias parlandas, vou deixar que fale e longamente se expanda o satírico em pessoa. Enquanto não se publica a quarta edição das “Trovas”, preciso que o publico julgue por si mesmo e diga se ainda valem as produções de Gama ou se tem razão Alberto Faria, quando as tacha e condena como cousas ultrapassadas e irremediavelmente perdidas.

Os “barões”, os eternos negocistas, que existiram sempre, e que mui presumivelmente, sempre existirão, sofrem as iras cáusticas do vate negro como habilíssimos traficantes, que sempre foram em todos os tempos, e que depois de instalados economica e comodamente na vida, acabam transformando o seu pendor comercial e o seu dinheiro, em legitima nobreza. Raro será o trabalho em que Luiz Gama não invista contra essa praga que a Monarquia, inteligentemente, explorava e oficializara, fazendo sangrar a vaidade dos ricos e novos-ricos em obras pias e benemeritas. O abolicionista não concorda com essa atitude sagaz do monarca. Apenas vê que </poem> «o governo do Império brasileiro. faz cousas de espantar o mundo inteiro, transcendendo o Autor da geração: o jumento transforma em «Sór Barão». </poem> Não está nele, não pode aturar esses cavalheiros que aliam, a seu ver, na facil generalização de todas as sátiras, um poder enorme junto da sociedade, em virtude do dinheiro que possuem, a uma incomensuravel estulticia e a uma insondavel estupidez:

«Não posso suportar fôfos barões
que trocam a virtude por dobrões.»


«Vejo fidalgos d’estopa
ostentando os seus brazões,
feio enxento de dobrões
nos troncos da fidalguia.»

A sua ogeriza contra os magnatas permeia-se, dilue-se, difunde-se, como si fôra por osmose, por todas as composições. E’ uma especie de leit-motif:

«Digam lá o que quizerem,
fale embora o maldizente,
eu bem sei que tudo mente,
sei que o mundo tem razão;
si eu tivesse na algibeira
alguns cobres, que ventura!
mudava o nome, a figura,
ficava logo — Barão

A sua obra-prima no genero, isto é, o trabalho em que concentrou toda a dicacidade de seu estro mordaz, toda a bilis represa de seu velho rancor pelo contrafeito, por tudo o que pretende simular aparencia nobre, por todas as adulterações que visam baralhar valores, misturando plaqué e platina, estabelecendo a fraude como norma consentida e mesmo aplaudida de vida social, encontra-se na poesia “Serei conde, marquês e deputado”, jorro de ácido muriatico a corroer o amor-proprio dos nobres e fidalgos feitos de encomenda pelo Império. Silvio Romero incluiu a composição na sua “História da Literatura Brasileira”, indicando-a como das melhores do bardo baiano. Ouçamô-la:

SEREI CONDE, MARQUES E DEPUTADO



Pelas ruas vagava, em desatino,
em busca de seu asno, que fugira,
um pobre paspalhão apatetado,
que dizia chamar-se Macambira.

A todos perguntava se não viram
o bruto, que era seu e desertara;
— Ele é serio — dizia — está ferrado,
e tem branco o focinho, é malacara.

Eis que encontra, postado numa esquina,
um esperto, ardiloso capadocio,
dos que mofam da pobre humanidade,
vivendo, por milagre, em santo ócio.

— Olá, senhor meu amo — lhe pergunta
o pobre do matuto, agoniado —
por aqui não passou o meu burrego,
que tem ruço o focinho, o pé calçado?

Responde-lhe o tratante, em tom de mofa:
— O seu burro, senhor, aqui passou,
mas um guapo Ministro fê-lo presa
E num parvo Barão o transformou!

— O’ Virgem Santa! — exclama o tabaréu
da cabeça tirando o seu chapeu —
Se me pilha o Ministro, neste estado,
Serei Conde, Marquês e Deputado!

Gama invetiva, com o seu riso e o seu sarcasmo, os defeitos de seu tempo. Não é, note-se bem, um humorista, ao feitio inglês, comentador de fatos a que quizesse sarjar a nota do ridículo pelo jogo displicente da contradição. Como legitimo satírico, ao gosto clássico, ele é moralista, a quem calha otimamente a divisa celebre de Santeul, na tenda do Arlequim “Castigat ridendo mores”. Gama quer realmente concertar malfeitorias, remover agravos e corrigir os erros do mundo, como tipo de acção que inegavelmente era e que trazia, portanto, como fôrro da propria personalidade, a tendencia central do mestre-escola.

Reformador, sem dúvida, e como ele mesmo dissera, “robustecido de severa moral; [3] tinha todos os ingredientes espirituais para vir a ser um autêntico “Aristófanes de pinchaim” se o meio estivesse tão amadurecido e evoluido que comportasse a criação de um teatro de costumes e, mais que isso, de crítica de costumes.

A epoca era ingrata e Gama satisfez-se com o remoque escarninho de seu ditos maledicentes. E seu verso, mui frequentemente, justifica a classificação de Coelho Neto: “leve como a flecha, silva, vai direito ao alvo, crava-se e fica vibrando.” Vejamô-lo em outras arremetidas.

A moda lançara, no seu tempo, a saia-balão, a tremenda traquitana que nós, hoje, nos assombramos haja havido gente com a coragem de a carregar, mas que as mulheres, sempre dóceis e obedientes aos ditames daquilo que se apresenta como novidade do bem trajar, não se negaram a ostentar, principalmente nas festas e cerimonias solenes. A saia-balão foi uma das ogerizas de Gama. Andou com ela sempre ás testilhas e não lhe regateou nem chacotas, nem bufonerias. Dedicou-lhe uma de suas mais extensas composições: trinta e uma oitavas em tetras-sílabos, a que se intitula “O Balão”:

«Requeiro, ó Musa
do grande Urbino,
pincel divino,
d’alto rojão;

de Tasso, o genio,
de Homero, a fama,
que o mundo aclama,
d’aurea feição.

Que cantar quero,
vibrando o pletro,
com doce metro,
erguendo aos ares
novas esferas,
tontas megeras
de rubição.

E vai por essa toada, até dar com a saia:

«Silencio! é ela!
Tão vaporosa
Vem, e formosa,
— que treme o chão!
Gordo cetaceo,
deixando os mares,
que afronta os lares,
sobre um balão!

Eu te saúdo,
O’ tartaruga,
romba taruga
de barracão!
Monstro que alojas,
sob os babados,
dez mil soldados
do rei Plutão!

E para crivá-la de galhofa, conta, no mesmo trabalho o episódio cômico do desmaio de uma donzela, que trajava a horrenda saia. Levada para uma cama, enquanto ainda estava no faniquito, trataram de a ir aliviando do pesadissimo traste:

Foram tirando,
sem causar maguas,
fôfas anaguas
de camelão;
curvadas molas,
arcos de pipa,
cordas de tripa
e um rabecão;

caixas de guerra,
rouco zabumba,
que alem retumba
como um trovão;
felpuda palha
para viveiros;
dous travesseiros
e um trombão.

Eis que debaixo
do tal babado,
pula espantado,
de sopetão,
tremendo gato,
miando, aflito,
mais exquisito
que um sacristão.»

Digitized by Google Já bem mais tarde, nas composições que só se aproveitariam na terceira edição das “Trovas”, Gama volverá á carga. O perpassar dos anos não diminuira a zanga contra a sua vincadissima antipatia. Na “Epistola Familiar”, publicada no “Cabrião” de 16 de dezembro de 1866, a saia balão ainda leva uma boa cóça:

«Sem postiço, a magicela
dá seus ares de gazela,
de raposa ou velha gata.
Mas, vestida, ó que fragata!
Tem postigos, portinholas,
suspensorios, sugigolas,
ferros, mastros, cordoalhas,
encrespadas maravalhas,
bordas falsas, cabrestantes,
sondas, boias e oitantes,
bujarronas, vela grande,
em que o vento audaz se espande;
chaminé, carvão e gas,
breu, azeite e agua-ras;
por botinas, duas lanchas.
as dois pés servem de pranchas;
lenha, estopa, o alcatrão...
tudo embaixo do balão.»

Os velhos e as velhas tambem tiveram no livro o seu quinhão de lancetadas. E tambem os maridos bigodeados, os “coitadinhos”, como ele, em fingida e pungente piedade, os apelidou. Não podiam escapar. Dês que o mundo é mundo, foram eles pelourinho da zombaria de todos os mofadores contumazes, que se jogaram sempre a fundo, em esgrima facil, contra as infelicidades conjugais. Gama atira-lhes, sempre que pode e quasi sempre de passagem e de raspão, flechadas que ele ervou do veneno satírico. Assim no seu elogio do rapé, na poesia “A Pitada”:

«Contra o peso da cabeça
é remedio tão gabado
que o não deixa um só momento
todo homem que é casado.»

E, alem de outras, arrumou-lhes, aos maridos distraídos, aquela carapuça da “Farmacopéa”, acerando a pua com o oferecimento de suas mesinhas e quinquilharias literarias de seu “bric-à-brac” sardônico:

Marido que a consorte não recata,
Entregue ao desvario, ao desatino,
que, na pândega alegre, não repara
a figura que faz de «Constantino»...

Tem sortimento
já reservado,
grinalda e gôrra,
chapeu-armado;
barrete á moda
com dois raminhos
para descanso
dos passarinhos.»

Com muito mais razão e com muito mais motivo, o teriam pela prôa todos os simuladores do talento. O caso interessava-o do ponto de vista sentimental, pois sabia, de ciência própria, o que custava realmente a acquisição da cultura e do saber. Acurvara-se sobre os livros, em noites e noites de insômia, embrenhara-se pelos ingremes caminhos da sabedoria para emparelhar com os que lhe levavam uma dianteira facil e comoda, dobrara o trabalho comum com as horas de estudo porque sentira o peso do enorme tributo que impunha o preparo inteletual. Não toleraria, portanto, aqueles que apenas desejavam empulhar o proximo, impostores que campavam de sabios ou de artistas:

«Se impera no Brasil o patronato,
fazendo que o camelo seja gato,
levando o seu domínio a ponto tal,
que se torna em sapiente o animal;
se deslustram honrosos pergaminhos
patetas que nem servem p’ra meirinhos,
e que sendo formados bachareis,
sabem menos que pêcos bedeis;
não te espantes, ó leitor, da novidade,
pois que tudo, no Brasil, é raridade!»

Mas são, principalmente, os poetas que lhe excitam a acrimônia e lhe azucrinam a veia contundente:

«Se esquentado patola ás Musas dado,
vai a esmo trovando sem cuidado;

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escrevendo tolices de pateta,
consegue sem o crisma ser poeta:

é que Apolo sustenta bizarria
e cavalos precisa á estrebaria.»

Boutade que ele afina e refina no "A um vate enciclopedico", quando conta que o seu heroe — um assombro desses que entendem de tudo e sabem de "re omni scibile", e mais o adendo que Voltaire lhe aplicou do "quibusbam aliis" — tambem se puzera a fazer versos. Gama não pôde sopitar a sua exclamação de assombro nem a motivação clarissima que lhe ocorre do milagre. E’ que o sábio

«invadindo as baias do Parnaso,
o lugar conquistou do tal Pegaso!»

Estava no seu irrespeitoso feitio a volupia desses epigramas acerbos que, numa síntese de perversidade diabólica, rasgam a carne dos seus alvejados. Adquirem a consistencia e perpetuidade dos proverbios e das máximas. Até os mestres de direito, os que ensinam a aplicar a lei e os que repartem a justiça, até esses, entre os quais tinha amigos, dos mais queridos e amados, não conseguem escapar á sua língua ferina. Desfecha-lhes esta seta venenosa, que ainda está vibrando, que vibrará por muito tempo ainda:

«Doutores da Verdade, do Direito...
mas que ao «torto» tambem lá dão seu geito...»

Calcule-se, assim, o que não diria do dinheiro esse endiabrado que sabia encontrar o gracejo pungente para abater e humilhar a vaidade alheia. Ha, pelas “Trovas” inumeras referencias ao ouro. Nenhuma terá, entretanto, a força e a vivacidade viperina desta oitava do “Que mundo é este?”:

«O poder é só dos Cresos,
a ciência é de encomenda;
sem capital e sem renda,
com pouco peso — o que vai?
Talentos — palavrões ôcos,
que nunca deixaram saldo...
Não ha sustancia no caldo
que não tempera o metal!»

Contra os políticos, então, especialmente aqueles que transformam o patriotismo numa excelente e rendosissima industria e que, á força de declamações líricas, se apegam ás arcas do Tesouro ou se envolvem nas negociatas que se fazem com o beneplácito ou com o silêncio dos amigos do poder, contra esses, Gama é implacavel. Aqui ele assume integralmente o papel de Aristófanes, clamando contra os “chuchadores” do regime, e com as mesmas armas do ridículo. Se quizesse, ou melhor, se pudesse citar, teria de encher páginas e páginas, maximé se enveredasse para a produção posterior ás duas primeiras edições do livro. Não é possivel. Minha promessa de documentar abundantemente o estudo, obrigame a comedimento neste capítulo, porque tenho ainda muito que transcrever. Escolho uma de suas objurgatórias risonhas, que é das melhores das “Trovas” e que, assim mesmo, não trasladarei na íntegra. Darei, contudo, o suficiente para que o leitor possa julgar como Gama desenvolveu o têma. E’ o trabalho intitulado “Os glutões”:

«O’ tu, quadrada Musa impavesada, soberana rainha da papança, borrachuda matrona insaciavel que tens o corpo pingue e larga pança;

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Vem á triste morada do trovista um canto lhe inspirar que cheire a bife, para a fama elevar dos lambareiros sobre a grimpa do monte Tenerife.

Vem, filha do pincel do grande Alciato, dourar os versos meus que, descorados, não podem atrair leitores sabios, amantes da lambança e bons guisados,

derrama nestas linhas desbotadas o perfume odorante da linguiça, do paio português, do bom salame, que fome desafia e nos atiça,

transmuda o negro veu da escuridão, que a vista me detem, cerrando os olhos; um quadro me apresenta em que divise saboroso pastel com seus refolhos, </poem>

presuntos de Lamego, perús cheios,
rosbifes, e leitões, tenras perdizes,
tostado arroz de forno, nabos quentes,
gansos, marrecos, patos, codornizes.

E entra pelo capitulo das bebidas e arrola tudo, num painel de gourmant sabido, treinado no “fardel das comidelas”. Relembra, então, a glória dos comilões celebres, que fizeram a fama de outras eras, Clodio, Melon, Crotoniense, Fago, Mitridates, Cambises, Filoxeneo, que deixaram o traço de sua insaciavel garganta pela história. Chama-os “glutões já cadentes”. Nós temos melhor. Cale-se, agora, a musa antiga:

«Desdobre-se a cortina bolorenta
sobre os nomes dos filhos lá da estranja.
Repimpem-se no templo da vitória
os brasileos herois que comem canja [4]

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Etereo Caravagio trace as linhas
dos comilões de rúbidos toutiços,
que o tonel das Danaides têm por pança
onde cabem sem custo, mil chouriços.

Calem-se os Celtas, Gregos e Romanos;
Silencio, ó Tuba Aonia e Lusitana!
Erguei-vos, ó glutões de minha patria!
Temos côco, cajú, temos banana!

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Dos Clodios e Milões prodigios altos
Do ebrio Filoxeneo heroicos feitos,
Sem viço, desbotados, já sem cores,
Por terra vão caindo, em pó desfeitos.

Junto deles assoma ousado e forte,
O dente arreganhando, um deputado,
Que com quatro «apoiados» retumbantes
Nos cofres da Nação tem manducado;

Um longo diplomata aparvalhado,
Com pernas d’aranhiço, estenso pé,
Que na Europa se fez profundo e sábio
No trafico do fumo e do café.

Retumbante engenheiro de compasso,
O lume encaixotando nos planetas,
Metendo em Capricornio, Libra e Venus,
O sonante metal chucha com tretas.

Centenas de empregados — gente limpa,
Que os penedos não roe, por não ter dentes,
Encaixados no fardel das comidelas
A patria reduzida a dobrões quentes.

Famintos tubarões, sedentos monstros,
Imortais tesoureiros de obras pias,
Que engolem pedras, o metal devoram,
Sem que ronque a barriga em tais folias;

Os sagazes carólas d’ordens sacras,
Vigários, andadores, sacristães,
Que tragam, num momento, Igreja e Santos
Sem meter na contenda os capelães.

O’ si Deus sobre a terra derramasse
Moedas de quintal, causando horror,
Inda assim saciar não poderia
A fome dum voraz procurador!

Prestante pai da patria — homem de peso!
Entre rato e baleia — acachapado —
Morde aqui, roi ali. lambe acolá —
Mete dentro do bucho o Corcovado!

Se quereis, ó leitor, ver já por terra
Cambises, que enguliu sua consorte,
Sim, prodigio maior vos apresento:
Um Ministro vos dou — papal Mavorte —

Que abusando das leis da natureza,
A’ mäi pátria se agarra, como louco,
Chupita a pobre velha, e logo brada,
Batendo no bandulho: — Inda foi pouco!

Deixemos, pois, atraz a gloria antiga,
Das potentes gargantas esfaimadas.
Hosanas entoemos furibundas.
A’s modernas barrigas sublimadas.

Que feitos gloriosos desta laia
gravados viverão na lauta história,
no perfume do vinho, e dos guisados
voarão sobre as azas da memória.»

Este trabalho aparecia já na edição de 1859, isto é, na estréa do ex-escravo e analfabeto de 1847. O agridoce e risonho veneno que manava ininterruptamente de seus versos, teria determinado a punição rigorosa não de um só, mas de um regimento inteiro de funcionários publicos, em qualquer época e em qualquer parte do planeta. Gama não foi incomodado. Pelo contrário, elogiaram-lhe a verve espirituosa e ele continuou a cultivar o genero, com mais afinco até, pois que, depois das “Trovas”, só se conhecem, publicadas na 3.ª edição, poesias de sátira política. E com uma agravante de peso: a melhoria visivel de seus versos, adquirindo clareza e mobilidade o periodo, elastico que se lhe fazia o boleio da frase, mais cuidado que dantes, mais fluente pela segurança que lhe proporcionava o seu manejo constante.

A “charge” que ele escreveu no “Diabo Coxo”, em agosto de 1865, acerca da formação da atmosfera favoravel á guerra do Paraguai, “charge” maligna, a castigar todos os patriotas de encomenda, que figuram em todas as manifestações espetaculosas, mas que se escondem na hora de seguir para a frente, ao mesmo tempo que atesta a sua invergavel independência de espírito e a sua coragem de dizer franquezas, temeridade mesmo em afrontar a opinião pública, tambem mostra que ele, se quizesse, atingiria, sem esforço, ao humor inglês de Machado de Assis e de Leo Vaz. Releiamos a ultima passagem das “Novidades Antigas”, fecho do capitulo II. Tratava-se do seguinte:

«Os Licurgos da nossa Edilidade
em nome da sagrada liberdade,
chamaram a congresso todo o povo
afim de discutir um fato novo.

A’ Maria

EPISTOLA FAMILIAR

Depois de penosa auzencia,
Minha querida Maria,
Devo dar-te novas minhas,
Feriadas de alegria.

O beijo que tu me deste
Inda nos labios o sinto,
Que nos meus labios revivem
Dos teus o beijo faminto.

Aquelle apertado abraço,
Que entre soluços me deste,
Ha de ser o eterno laço
Do nosso encanto celeste.

Um dos adendos de proprio punho de Luis Gama, a uma
de suas poesias, publicadas em «O Polichinelo». A cole-
ção desse jornal existe no Arquivo do Estado.

Era o caso — salvar a Patria nossa
e dar no Paraguai tremenda coça:
naufragios, perdições de toda a sorte,
que o menor mal de todos seja a morte.

Pejaram-se os salões, quartos e salas
da gente que de assucar come balas,
mais valente que Cezar ou Roldão,
que batalhas vencia a cachação:
doutores da lanceta — irmãos da Morte,
mais feros na matança que Mavorte;
doutores da Verdade, do Direito,
mas que ao «torto» tambem lá dão seu geito;
rotundos vendilhões, magros artistas,
deputados, santudos cabalistas,
patriotas magriços e pansudos,
aqueles tagarelas, estes mudos.
Enfim, todos que tinham perna ou mão,
que perder não podiam tal função,
ali compareceram juntamente,
de semblante garrido ardor latente,
convocados da parte de Tonante
peno neto gentil do velho Atlante.

Depois de falar o presidente da sessão, cujas sentenças “a turba valorosa eletrizaram”:

«Cada qual um canario se julgava,
de calar-se ninguem ali cuidava,
queriam falar todos de um só jato.
Rompendo em tenebroso espalhafato
— a saltos de polé por badulaques —
qual se ardessem dez mil cartas de traques.

Impôs Tonante a paz, então, de novo,
Por que um orador falasse ao povo.
— Silêncio! — disse alguem, se levantando
Silêncio guardam todos, não falando.

Ergue-se da retórica o maestro,
que de ás turbas orar tem manha ou sestro.
O canoro fagote embandeirado,
os corações, á pas acostumados.
vai ás fulgentes armas incitando,
pelas concavidades retumbando.

Da campana arrojando gradações,
os tetos faz tremer d’amplos salões;
ribombos de enargueia, epifonemas,
em frases de escachar — as mais extremas;
metáforas brilhantes, etopéias,
capazes de empolar dez epopeias,
jorraram em torrentes caudalosas
com bulha que as tornava pavorosas.
O povo alucinado erguera um — bravo! —
e o tribuno, rubente mais que um cravo,
a voz fortalecendo com pujança,
derrama em cada tropo tal chibança,
que todos, só de ouvi-lo, transportados,
disparam descargas de «apoiados».
Avante, o Mirabeau vai sem parar,
nem co’a lingua do ceu da boca dar:
os olhos são dois astros reluzentes,
os gestos aterravam de imponentes,
os labios semelhavam duas lavas,
feria a lingua mais do que cem clavas:
as palavras fulgiam como raios,
rachando d’alto a baixo os paraguaios;

e no ar sacudindo a larga testa:
— Guerra! guerra! — bradava em ar de festa.
— Mais guerra! repercute a Academia,
que agora de matar deu-lhe a mania;
— Haja guerra! — exclamou rico banqueiro,
guardando, por cautela, o seu dinheiro.
E o povo, pelos ver tão alarmados,
soltou nova descarga de «apoiados».

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Mas eu que me arreceio da mortalha,
fugi dali com medo da metralha.»

E para que nada falte á demonstração de sua ousadia e á coragem de suas opiniões, transcrevamos outro trecho, este excertado á “Epistola Familiar”, composição escrita em fins de 1866, ainda dentro de mesma época de efervescencia da luta contra Solano Lopez, trecho no qual Gama sorrí, com aparente bonhomia, mas com malícia manifesta, dos achaques de que nós, os paulistas, sofremos ás vezes, com a demonstração de nosso pendor guerreiro e com a exaltação de nosso bairrismo. A página tem sabor moderno, ha setenta anos de distancia:

«Bem sei que a velha historia,
por querer turbar a gloria
aos preclaros descendentes
dos heroes armipotentes
— Cubas, Pires e Buenos —
que venceram turcos, brenos,
chinos, persas, anglicanos,
fanfarrões herois hispanos

— Sancho Pansa e D. Quixote —
a bodoque e a chifarote,
quer por força que o Deus Marte
fosse nado em outra parte.
Eu, porem, protesto e juro,
do que digo bem seguro,
que a estrangeira historia mente,
porque Marte é desta gente!
Inda mais dizer-te quero,
contra a voz do mundo fero,
que as vitorias desta terra
quer lançar do lodo á berra,
que São Jorge, o gran guerreiro,
aqui viu a luz primeiro;
que São Pedro, o pescador,
aqui foi agricultor;
e São Paulo, o cabalista,
pela fama, foi paulista.»

Parece-me que, tais amostras, (e eu que não citei tudo quanto saiu de sua pena pérfida contra as manias da Paulicéa e da sua gente), nada mais era preciso para que a má-vontade dos politicos e dos homens do poder se viesse concentrando contra esse outro “bôca de inferno” que, ha dois séculos de intervalo, repetia as pasquinadas do outro mulato da Baía.

Forasteiro, de pele muito queimada demais, num meio em que predominava a escravidão, mal alforriado ainda das malhas em que esta injustamente o aprisionara, muito já seria tolerá-lo na sua ascensão a funcionário público, ocupando um lugar que caberia, legitimamente, a um branco necessitado do amparo dos poderosos. Mas, suportá-lo com essa lingua viperina, que desandava a cortar a casaca de todos, sem excetuar o proprio imperador, não era possivel que durasse muito.

Em 1868, aproveitando-se os politicos de uma virada ministerial, os seus próprios amigos se viram na contingência de o porem no olho da rua, com aquela nota do “a bem do serviço público” e por “turbulento e sedicioso”.

Não admira o tivessem demitido. O que assombra é que houvessem tardado tanto. Numa sociedade tão decorosamente organizada, como foi a nossa, com o profundo respeito da hierarquia social, herdado da colonia, com o vicio congenito da prepotência, adquirido dos capitães-mores e vice--reis, o expediente era, como desforço político, comezinho e trivial por faltas bem menores.

A derrubada dos funcionarios era dos mais insignificantes defeitos, quasi pecadilho venial do regime.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Artigos no «Estado de São Paulo», sobre «Luiz Gama e as trovas de Getulino», em dezembro de 1930.
  2. Conferencia no Instituto Historico Nacional, publicado no «Estado de São Paulo» a 13 de maio de 1924.
  3. Na carta-polêmica a Furtado de Mendonça, «Pela última vez”.
  4. José Feliciano, no citado artigo do «Estado de São Paulo», em dezembro de 1930, com o titulo «Luiz Gama e as Trovas de Getulino», aludindo á piada, relembra que era esse o prato predileto do Imperador.