O precursor do abolicionismo no Brasil/2.4

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OS PRIMEIROS DEZ ANOS DA BAÍA

Gama nasceu e viveu os seus primeiros anos numa época de inquietação, de angústia e de pavor. Nascido em 1830, encontrou o ambiente carregado de todas as desconfianças, de todos os temores, de todo o nervosismo que imperaram nesse interregno trágico, que vai da Abdicação á Maioridade. E’ a mais aguda crise de crescimento que o Brasil atravessou, a fase mais tormentosa de sua evolução social, tão grave e tão séria que ameaçou fazer de nós uma constelação de republiquetas, como fez no resto da America Latina.

Sobrepunha-se a isso, para a sua terra natal, a atmosfera de receios determinados pela série sucessiva de sedições negras, que de 1807 em diante, vieram periodicamente pondo em sobresalto a Cidade do Salvador e fazendo sentir de ambos os lados, os perigos enormes que as duas partes em luta arrostavam. Porque se eram pesadissimos os onus, para os negros, uma vez vencidos, nos precalços de uma punição para escarmento, não menos terrivel seria a conjuntura dos senhores, se jugulados na luta, embora momentaneamente. Pesavam no ar ameaças de todos os lados, nuvens de mau preságio persistiam no ambiente. Estas podiam deflagrar numa tormenta inesperada que afogaria a população em sangue.

E o rosario de insurreições, 1807, 1809, 1813, 1826, 1828, 1830, faria pressupor que elas respondiam a uma organização sistemática, em pós de uma idéa assente, de homens que sabiam onde queriam chegar. Pode afirmar-se hoje, depois que Nina Rodrigues desfez o preconceito que parecía proíbir os assuntos negros á indagação nacional, que o Brasil andou beirando o perigo de vir a ser domínio e conquista da raça preta escravisada. A luta sustentada contra os quilômbolas, e mais tarde, as insurreições baianas dos haussás, nagôs e malês, mostram como andámos perto de fundarmos aqui uma Liberia por antecipação.

Ora, Gama apareceu nesse tempo e viveu a sua primeira infancia debaixo da atmosfera trepidante das investigações e das devassas da polícia.

Aos quatro anos e meio, quasi cinco, já com maturidade suficiente para perceber o mal estar, o desassocego da vida do lar, o alarme natural da progenitora, ele que possuia uma inteligência pronta e vivaz, cae-lhe sobre a cabeça a rebelião de 1835, a maior de todas, a que comoveu e aterrorizou a cidade, a que produziu o maior numero de mortes e deu, em seguida, origem ao mais monstruoso processo de que ha memória nos anais da escravidão brasileira. A revolta era sanguinaria e feroz nos seus intuitos. A repressão portou-se á altura da provocação, em desforra violentíssima.

Calcule-se o efeito desse acontecimento no espírito mal aberto do menino, testemunha dos fatos, e a quem não escapariam as apreensões maternas, em dias e dias seguidos de agonia e de terror, preparado como devia estar pelas conversas anteriores, comentando o infortúnio dos negros.

A tempestade passou sem consequencias deploraveis, mas na alma do pirralho a impressão devia ter ficado profunda e indelevel.

Aos sete anos e meio, atinge-o novo e tremendo vendaval, consequencia de outra revolução não já de negros, mas de brancos: a “Sabinada”, pagina heroica, das mais vívidas que a aspiração democratica fez refulgir em nossa terra. Gama teve os pais envolvidos na contenda. Viveu os quatro meses de ansiedade e de inquietação do cerco da Capital. Assistiu á carnificina da impetuosa investida legal, que requintou a natural brutalidade da luta com a sanha dos atos de barbarie. Viu a Baía ardendo num imenso braseiro, onde se jogavam os prisioneiros inermes. E tremeu, nos dias subsequentes á derrota, pela sorte dos progenitores. E no embate, foi ele o mais mal aquinhoado. Luiza Mahin, temerosa da repressão legal á tentativa de instauração republicana, esgueira-se para o Rio. Seguem-se-lhe os tres anos de inútil espera. E, por fim, o desastre: o embarque forçado para o Rio, nas condições dramáticas que se sabe.

Não será preciso ser um especialista de psicologia para compreender as reservas de ódio, de desespero, de maldição que armazenaria essa infeliz criança, tão cedo martirizada em sua atribulada existência. E compreende-se perfeitamente que á medida que a vida lhe foi ensinando cousas ainda mais doloridas e sufocantes, tivesse ele redobrado de horror, de ira refreiada, de colera inulta, que se foi cristalizando e concentrando como um tóxico violento, a envenenar-lhe todas as mais insignificantes fibras do organismo.

E o meio baiano apenas lhe fornecera o clima propício em que devia desabrochar a sua inicial e tateante vontade. Servia de pitoresco e criava-lhe a paisagem. Porque a sua personalidade ele a trazia do berço, nos cromosomas que lhe transmitira Luiza Mahin e nos quais a quota de rebeldia tinha singular predominancia. Releia-se a carta de Gama: Luiza é altiva, geniosa, insofrida, vingativa. Não tem medo. Prendem-na mais de uma vez pelos indícios que pareciam implicá-la em conjuras de escravos. Põe-se ao lado do amante, em 37, numa causa que não devia interessá-la minimamente, o que lhe denuncia o espirito de amotinada contra a sociedade.

Meio e antecedentes hereditarios tramam-se assim para dar ao caracter de Gama o relevo, o vigor, o cunho de absoluta independência que o haviam de estigmatizar para o sofrimento e para a gloria. Mãi e filho representam, em medicina, um caso de “sincainogênese”, a perfeita identificação do caracter de ambos, que se veiu a sublimar no rebento.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.