Os Filhos do Padre Anselmo/XXIX

Wikisource, a biblioteca livre

Em quanto estas scenas se passam em S. Martinho do Campo, voltemos nós ao Porto, entremos na mysteriosa casa de S. Bento da Victoria, onde já uma vez introduzimos o leitor, e ouçamos o dialogo alli travado entre Jorge de Gusmão e o singular e estranho personagem a quem o amigo de Paulo dava o tractamento de Mestre.

O homem dos occulos verdes está, como da outra vez, sentado á sua banca de trabalho, e falla com affectuoso semblante para aquelle que parece ser o seu discipulo querido.

— E então — pergunta elle — como vão os negocios do nosso novel irmão?

— Mestre, quanto ao rapto de Beatriz, nada transpirou ainda. Eugenio de Mello, apesar de morto, continua a carregar com as culpas do desapparecimento da rapariga. A loura, industriada por João Lazaro, persiste em affirmar que Eugenio se suicidou, porque, tendo ella recusado emprestar-lhe dinheiro para fugir para Hespanha, inesperadamente disparou um tiro na cabeça, declarando n'esse momento que estava perdido e que só a morte lhe restava como ultimo recurso.

— De modo que a policia, sem provas e sem indicios que justifiquem a suspeita de um crime, não terá remedio senão pôr a loura em liberdade.

— Creio bem que sim. Demais a mais, a bala foi diparada tanto a sangue-frio e com tal habilidade, que, pela autopsia, não se descobriu indicio compromettedor.

— E quem sabe se realmente se trata de um suicidio?

— Não creio, Mestre. Em primeiro logar, Eugenio de Mello era crynico bastante para não pensar em matar-se, fossem quaes fossem as desgraças que o acabrunhassem. Em segundo logar, João Lazaro é sufficientemente preverso para induzir a loura, de quem deseja apoderar-se, a praticar este assassinato por vingança. Tenho, pois, a certeza, quasi iria jural-o, que Eugenio de Mello não se suicidou.

— O que de resto pouco deve importar-nos... A sociedade não perdeu nada com a eliminação d'aquella existencia...

— Absolutamente nada. Pelo contrario, lucrou. Agora, quanto a Paulo, partiu hoje para fóra do Porto, a juntar-se á sua mãe adoptiva, á madre Paula, que o mandou chamar de S. Martinho de Campo, onde se encontra, a pretexto de que precisa que elle lhe vá fazer companhia.

— Paulo partiu para S. Martinho de Campo? — perguntou o homem dos occulos, frazindo o sobr'olho.

— Partiu.

— É singular! — disse elle — E que genero de negocio retem madre Paula n'esse logar?

— Não sei. Em uma das suas primeiras cartas, madre Paula explicava que tinha sido chamada alli por uma amiga intima, que já não via ha muitos annos, e que se encontrava perigosamente enferma...

O Mestre ficou silencioso por algum tempo, como que buscando uma explicação para este facto.

— É extraordinario! — disse elle por fim, quasi fallando comsigo mesmo — é extraordinario que madre Paula mande chamar o seu protegido para lhe fazer companhia, quando sabe que a sua ausencia de junto da noiva importa para o pobre moço um verdadeiro sacrificio...

— Tambem me quiz parecer isso.

— Bem! — concluiu o Mestre — o verdadeiro motivo d'esse estranho chamamento ha de saber-se...

— Se o Mestre entende que devemos proceder a averiguações...

— Sim. Convem saber quem é e como se chama essa amiga que retem junto de si madre Paula.

— É coisa facil. A Mão Negra está de tal modo ramificada, que em toda a parte encontramos irmãos a quem recorrer em casos extremos. O Mestre bem o sabe, pois que a obra é sua e á grande energia e profundo saber com que nos tem guiado deve a nossa Associação o rapido impulso e a prodigiosa importancia que conquistou.

O homem dos oculos fixou por alguns instantes, atravez dos vidros, os olhos no seu interlocutor e disse:

— Jorge, a Mão Negra póde ser um instrumento do Bem, como póde ser um instrumento do Mal, conforme o pensamento do seu supremo dirigente fôr alevantado e nobre ou mesquinho e vil. As bases em que assenta a nossa mysteriosa aggremiação permittem concentrar na mão de um só homem a vontade e as energias de muitos; e d'aqui resulta uma cohesão e um poder de tal modo irredutivel, que força alguma da terra ousará combatel-o ou destruil-o. A nossa principal força está no mysterio em que ella se exerce. Todos os demais poderes vivem publicamente, á luz do dia; os seus menores movimentos, as suas mais occultas intenções poderão ser observadas e surprehendidas. Nós, pelo contrario, trabalhamos na sombra, e a nossa acção, exercitando-se livremente, faz-se sentir sem deixar conhecer a origem. Isto torna-nos invulneraveis como a propria divindade. Assim, podemos dizer: «Os homens propõem e a Mão Negra dispõe».

— É certo — confirmou Jorge — Mas que outro cerebro, senão o do Mestre, poderia conceber e realisar o maravilhoso plano da nossa Associação, de modo a prender nos fios subtilissimos de uma grande teia de interesses communs o destino de todos e de cada um? Confesso, Mestre, que só um espirito superior e uma sciencia profunda como a sua poderiam levar a cabo tamanha e tão extraordinaria empreza.

O homem que dava pelo nome de Mestre fitou Jorge com interesse, e n'um tom repassado de extraordinario carinho, disse-lhe:

— Tu, meu amigo, és novo, és forte e és intelligente. A ti está reservada a alta missão de continuares um dia a minha obra, que é realmente grandiosa.

— Eu, Mestre — replicou Jorge — tenho os hombros extremamente debeis para tamanha empreza.

— Não. Tu és o unico de entre tantos que deverá succeder-me. Como sabes, eu sou o poder occulto que tudo dirijo e tudo governo dentro da nossa Associação. Em meu nome, poderás governar, mandar e dirigir, mesmo depois da minha morte.

— Pensa em morrer? Mestre! — exclamou Jorge surprehendido.

— A ideia da Morte deve estar sempre presente ao homem que, podendo tanto, só não póde prolongar a vida uma hora, um instante mais alem d'aquelle que marca o fim da sua existencia sobre a terra. Ha muito que eu penso, Jorge, na maneira de triumphar da Morte continuando a viver na vida e no pensamento da nossa Associação; e, sendo assim, eu não podia deixar de pensar em ti como meu continuador...

— Oh, Mestre! — fez Jorge commovido.

— És o unico que ha muitos annos privas particularmente comigo; és o unico que bem conhece os fios occultos que movem a nossa Associação; és, portanto, o unico no caso de me succeder e de sustentar com honra e brio, com dignidade e consciencia, as tradicções já gloriosas da Mão Negra. Não esqueças, meu filho, que ella é a ingente força, o supremo poder, e terá no futuro em suas mãos os destinos da humanidade.

— Mas a sua sciencia, Mestre, esse espirito investigador e profundo, essa intelligencia privilegiada, esse cerebro potentissimo que tudo pensa, tudo prevê e tudo resolve, como poderei eu substituil-o?

O Mestre sorriu.

— Quando eu faltar — disse elle — virás a esta casa, encerrar-te-has n'esta sala, sentar-te-has n'esta cadeira, tal como eu estou agora, e consultarás o archivo secreto da nossa Associação. Ha aqui — accrescentou — todos os elementos de que careces para proseguir desassombradamente o caminho que encetei.

Depois abriu uma gaveta da meza, tirou um enorme livro encadernado a preto e com fechos de metal.

— Este livro — disse elle, abrindo-o — está em branco. Quando eu morrer, basta que lhe passes por cima de cada folha uma lamina de ferro, aquecida, para que a tinta sympathica em que está escripto se revele e te permitta fazer a leitura. Então encontrarás aqui a historia d'este homem mysterioso a quem tanto te affeiçoaste e cuja origem desconheces. Este livro que é toda a minha vida e toda a minha sciencia, é tambem toda a vida da nossa Associação. Sê prudente, sê sabio e sê justo, meu filho; e se a historia da minha vida puder merecer-te uma lagrima de compaixão, que essa lagrima se crystalise e se transforme na perola dos nobres intuitos, como symbolo do Bem com que eu quiz redimir tanto mal feito e recebido da mão da perfidia e da traição humana.

Jorge ouvia o velho sem o comprehender, mas sentia-se singularmente commovido.

— Mestre! — exclamou elle com voz tremula e repassada de ternura — afastemos para longe de nós a ideia da morte. Não me assusta a perda da propria vida, mas aterra-me o pensamento de que posso ver morrer aquelle que tem sido o meu melhor amigo, o meu verdadeiro e unico Mestre.

Os dois calaram-se e permaneceram mudos e silenciosos por alguns instantes.

Evidentemente, uma profunda commoção embargava n'esse momento a voz áquelles dois homens energicos, tão fortes e tão activos que, consubstanciados no mesmo pensamento, tinham conseguido organisar, dominar e dirigir com superior intelligencia uma das mais poderosas e terriveis associações secretas dos nossos dias.

— Meu amigo — disse por fim o mysterioso personagem dos oculos — era indispensavel que eu te manifestasse a minha ultima vontade, antes de partir para a grande romagem. Não é que eu pense realisal-a breve; mas como a vida é um thesouro de que apenas somos depositarios, um valor á ordem que pode ser-nos reclamado de um momento para o outro, o meu dever é prevenir. Aqui tens e aqui ficam n'este livro todas as indicações precisas para poderes continuar a minha obra. Se eu faltar, repito, assume a direcção suprema da Mão negra, e o meu espirito será comtigo.