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A esperanca
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mo quando me dizias: ― Minha Ermelinda, meu amor, morro por ti! ― Tratante!.. Agora morres por outra!.. O que me consola é que não tardará o dia em que tu a trates como agora me tratas. Não receies nada; servir-te-hei como sempre. Manda dinheiro, já que hoje cá não vens: só se quizeres vir ás horas d'hontem. Repito-te o que hontem te disse á saída, corres risco de te apaixonares, como te apaixonaste por mim, a tua primeira victima ― Ermelinda

 

 

Memorias d'um beijo

[Romance original de F. M. de Sousa Viterbo]

Vinte e cinco annos entredouravam a primavera de seus dias. Vinte e cinco fructos a penderem-lhe da arvore da vida, vinte e cinco estrophes a murmurarem-lhe no coração o poema da sua mocidade!

Chamava-se Emilio. Tinha o cabello quasi tão ruivo como o primeiro homem. Era uma figura mais que tudo sympathica. Ria-se poucas vezes e com melancholia não affectada. Caminhava sereno e com a cabeça algum tanto pendida sobre o coração. Porisso tudo o que dizia era verdadeiro. Nunca lhe foi necessario mentir. Já mais corava quando á flôr dos labios assomava um pouco da candura, que lhe trasbordava na alma. Risonho punha a vista no futuro, mas sentia-se enlanguecer, quando volvia os olhos para o passado. E' porque tinha a soletrar no horisonte dos dias findos um epitaphio, e esse epitaphio era o de sua mãe.

O seu viver era na aldeia. A cidade com pouca influencia o dominava. No labyrintho das selvas perdia-se mais á vontade o seu olhar incauto e cheio de timidez. Quando o vento açoutava os pinheiraes, quando a rajada destelhava as cabanas, quando as torrentes desciam caudalosas do cimo das montanhas, assentava-se ao pé da janella e presenceava solitario aquelle magnifico espectaculo, soltando, de vez em quando, monossyllabos, cheios de arrebatamento e commoção, como um protesto digno á descrença do mundo, que, em nada, vê Deus.

Mas a primavera se dava a conhecer no primeiro gorgear de passaro na deveza, que lhe assombreava o quarto, eil-o que se tornava peregrino todo o dia, andando, colhendo, pela margem dos regatos, mimosas flôres, que, parte desfolhava no atrio da capella, parte no tumulo de sua mãe.

Duas trepadeiras, uma de flôr branca, outra de cachos roixos, se apegavam ao muro, e acostando-se ás janellas do seu quarto lhe formavam exteriores cortinas de verdura. Na beira do telhado algumas andorinhas entreteciam seu ninho, de modo que o primeiro bater d'azas n'aquelles thalamos d'amor, ao erguer da alvorada, lhe servia de relogio natural, para o fazer acordar.

Lia de continuo no livro da naturesa. Ao ajuntar os caracteres brilhantes, dispersos no firmamento, creava novas amenidades á poesia mais intima de seu coração. Depois d'este, as paginas, que mais lhe roubavam o zelo do entendimento eram as da Biblia, que sua mãe lhe tinha ensinado a soletrar. Raras vezes, antes de pouzar a cabeça no travesseiro, deixava de ler algum trecho, e todo se deliciava, quando os singelos canticos de Salomão lhe vazavam na alma os suaves devaneios d'um amor cheio de castidade, e o episodio de Ruth lhe principiava a encher um vacuo, que sentia aberto no seu peito.

Era triste de per si. A melancholia era a parte mais essencial do seu coração. Quem o visse em certas occasiões havia de o julgar anjo em busca d'um ceu, ou poeta, scismando na harmonia das strophes. Scismava, coitado, sem revelar jámais o resultado do seu caprichoso delineamento. Parece que as estrellas lhe tinham confiado um segredo, ou proposto um enigma, que sem cessar procurava, com suas forças re-