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A esperança
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Coisas
 
 

Amigo Agostinho Albano

Não sei ha quantos mezes anunciou o Jornal do Porto a proxima apparição d'um livro seu, cujo titulo veio fazer-me cocegas na bossa da curiosidade.

Antes que me taxe de sobejamente mulheril este enteiriçamento de animo movido por quatro palavras, appreso-me a declarar-lhe que não concebo como se póde pôr em escriptura, depois de dormir, o que revoluteou pela imaginacão antes de dormir. Veja lá se tenho ou não rasão á farta para anciar a vinda do seu livro, em que cuido que pretende contar o que lhe lembra antes de soprar á vela.

Ou o meu amigo não faz mais do que tomar nota de visões muito risonhas que lhe acodem á cabeceira do leito com os derradeiros amrimentos de boca das onze da manhã, ou tem uma memoria que resiste aos enguiços do ultimo charuto fumado, e d'uma ceia de hospedaria em noite duplice. Eu tenho pensado em bonitas coisas antes de adormecer; mas ordenar com esses pensamentos dez linhas de folhetim, isso não posso, Não posso. Depois de acordar, só me lembra que pensei em coisas bonitas, quando não me lembra que tenho de pensar em coisas feias, como são almoçar para poder trabalhar, e trabalhar para poder almoçar no dia seguinte.

Se o meu amigo adormece a pensar, invejo-lhe a tranquillidade de animo que vai por essas meditações dos primeiros alvores do dia. Eu que não posso dormir quando penso, salvo se penso em dormir, constumo lêr para adormecer. E que resulta d'estes dois modos tão diversos de chamar o somno? Eu perco uma vela que fica a arder, e não ganho nome, em quanto que o meu amigo não perde a vela, por que a apaga, robustece a nomeada que já tem cobrado no barafustar do folhetim, e folga com a esperança de agenciar dinheiro pela ve―nda dos seus apontamentos de meditações matutinas. Só esta esperança ― quanto não vale esta esperança?

Agora olhe. Eu já ia deixando cahir da memoria o fim com que embebi no tinteiro uma penna metallica de Birmingham, e tirei a tinta para as primeiras d'esta linhas.

Sem mais. Não sei porque é que tive honten dôr de dentes, dôr pouco mais estupida do que a de barriga. O caso é que não pude lêr. Soprei á vela e lembrou-me pensar. A gente tambem póde lembrar-se de pensar. Em Lisboa...

Deixe-me cortar aqui o fio ás idéas.

(O fio ás idéas! Pois ellas tem tido um fio n'este labyrintho de trapalhices?)

Mas com esta segunda interrupção já nem sei o que lhe queria dizer. Ah, sim: era a respeito de Lisboa.

Não sei se sabe que fui a Lisboa ha quatro annos. Depois das minhas excursões a Gaya, á Foz, a Mathosinhos e á ponte da Pedra, é a maior extenão que tenho percorrido.

Foi ha quatro annos. Repare bem: ha quatro annos. Levou-me o Lusitania. Hoje vai a gente a Lisboa pelo caminho de ferro mais de vagar do que então, o que já é um grande progresso, porque não se consommem algumas horas da vida em corridas sem tom nem som, com reprehensivel desacato ao nosso velho dictado: ― de vagar se vai ao longe. ― E depois, no vapor por terra não cahe um homem, nem mesmo uma mulher, em graves inconveniencias como no vapor por mar. Em maré de nauseas morder uma casca de limão na presença da grandeza do oceano! aferrar as mãos ao estomago perante a immensidade dos ceus!! desconcerta-se o interior da gente á vista do infinito!!! Antes de vagar pelo caminho de ferro. Abençoado progresso que forra a nossa fragil natureza ao desgosto de fazer uma triste figura na presença do que é verdadeiramente grande e magestoso no mundo physico!

Mas, como ia dizendo, em Lisboa contaram-me certas coisas debaixo de segredo. Como era segredo, nunca mais me lembraram até hontem, e lembraram-me talvez por causa da dôr de dentes. Soprei á vela e puz-me a refle-