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Maria Isabel

por

Maria Peregrina de Sousa

Dedicado á memoria de minha irmã

Não dá quem tem,
senão quem quer bem
.

Rifão


II
Um bemfeitor

No entanto Maria Isabel respondia com mansidão e dignidade ao seu interpellante:

― Disseram-me que v. exc.a queria fallar a minha mãe, e como ella não podia vir....

― E porque não póde? Está aleijada? Replicou arrebatado, o colerico credor.

― Senhor, tenha compaixão della!... Teve horas de tanta desesperação... e depois chorou tanto que, extenuada de forças phisicas e moraes cahiu em somno.

― Ah!... sim!... Ella dorme, tendo-nos tirado o somno, a mim e aos mais credores!... Sabe aonde ha-de achar os valores que nos subtrahiu. Póde dormir socegada. Os tolos dos credores que se arranjem como poderem com meia duzia de farrapos e de cacos. Os nossos contos podem comer-se em paiz estrangeiro, se os portuguezes voltarem as costas aos ladrões. Mas não voltarão não! são muito humanos para quem fica rico. Passado o primeiro momento em que nos dirão na cara a verdade nua, só pelas costas, e a medo, nos alcunharão d'infames espoliadores.

Custodio da Cunnha passeiava agitado d'um para o outro lado do meio d'este discurso para o fim, sem attender á infeliz menina, e como falando comsigo em voz alta. Maria Isabel estava immovel, com a cabeça inclinada sobre o peito, as faces incendiadas e as lagrimas a marejarem-lhe nos olhos. Ergueu a cabeça por fim e disse com voz tremula:

― Tem rasão, meu senhor... tem rasão de estar agoniado; mas minha mãe não teve culpa de nada: e juro-lhe, pela salvação da minha alma, que nem ella nem eu temos nada senão os vestidos que nos cobrem.

― Sua mãe não teve culpa?!... Não ajudou ella e mais a senhora a desbaratar o que tinham e o que não tinham deitaram á rua, pela janella, os dinheiros que lhes não pertenciam, e agora dizem: «não tivemos culpa!» Não vimos nós os seus guarda-vestidos cheios de sedas, veludos, pelles e rendas? as gavetas amontoadas de nigromancias que custaram um dinheiro tolo? os quartos e salas amontoadas de inutilidades d'alto preço?..

― E' verdade!.. Gastamos mais do que deviamos. Temos só a desculpa de ignorarmos que não podiamos com essas despezas escusadas.

― Sim, sim! Gasta-se, desperdiça-se e depois diz-se: «nós não sabiamos.» E a gente hornada e modesta, que vive com a maior economia que veja engolido o fructo do seu trabalho em um abrir e fechar d'olhos n'esse sorvedouro que nos preparam com arte diabolica.

― Tem rasão em estar agoniado; mas.... e ella ergueu as mãos, perdôe-nos... perdôe-nos pela boa sorte de seus filhos.

― De meus filhos que os senhores roubaram!... Mas não me queixo da menina; era muito nova e não governava: e tambem nos seus guarda-vestidos e gavetas não era onde se encontravam mais bagatellas de grande preço; mas