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A esperança

 


Que! mancebo! recuas aterrado?!...
Meus crimes inda aqui não fazem termo!...



E o Bardo empallidece, treme, fixa
O velho que elle afasta horrorisado
E não sabe se dorme, vela, ou sonha,
Ou se vive sem tino, delirado..

Eremita

Ficou do mal-faldado um gentil filho,
Que herdou do nobre pae altas virtudes,
Que de saudade em breve viu finar-se
A mãe mais carinhosa e desgraçada,
Da qual assassinei o esposo caro!...
(Triste do que encetou do crime a estrada
Que ao crime se habitua e cala n'alma
Essa voz da consciencia que não ouve!)
Ao mancebo infeliz nova desgraça
A minha crueldade preparava!
D'um cortesão a filha bella e rica
Para esposa lhe estava destinada;
Mas eu que por orgulho a ambicionava,
O monarcha empenhei para obtel-a
E o cortezão gostoso cumpriu logo
Desejos que o seu rei manifestava.
Chama a candida filha e faz saber-lhe
Do sob'rano os projectos vantajosos...

Bardo

Basta! sombra maldita! não prosigas,
Não mais surjas do inferno a perseguir-me!
Assás da vida minha sei a historia,
Não venhas do sepulchro repetir-m'a,
Não venhas aggravar profunda chaga
Que incuravel abriste na minh'alma!..
Ah! foge sombra errante, pavorosa,
D'esse que assassinou, marquez infame!
Meu desditoso pae, o conde Alfredo!...



E convulso o ancião ao céo os olhos
Levanta, erguendo as mãos agradecido
E eurvando-se, as plantas quer beijar
Do Bardo mui irado, enfurecido.

Eremita

Piedade, Sabino! ah! piedade
Para o homem contricto e desgraçado!
Piedade ao peceador que vida austéra
Ha longo tempo busca n'estes ermos!
Fui teu perseguidor, fui teu flagello,i
Roubei-te o que mais caro te era á vida!
Emmureheci dos annos teus a flôr,
Quebrei o teu encanto escurecendo
A estrella que ditosa te sorria!
Teu triste coração dilacerei,
Roubando-lhe os affectos mais queridos,
Deixando em seu logar o fel d'angustial
Ah! não fujas, Sabino! ao moribundo
O teu perdão vem dar-lhe generoso!
Vem; não é sombra vã que t'o supplica;
E' o homem que afastado longo tempo
Dos caminhos do céo, errava longe!...
Aquelle que peccou, porque era um homem!..
Escravo das paixões, fragil mortal,
No bulicio do mundo, entre grandezas,
Sem outro guia mais que a vil lisonja
Exercida por vis aduladores
Que o peito juvenil lhe corromperam,
Nas orgias seu ouro descipando,
Conseguindo banir d'esta minh'alma
Os germens da virtude, honra, deveres!
Dotado de valor, brios, coragem,
Cumpria-te vingar tão vis affrontas
E no dia aprasado em que devia
Ante as aras Olinda desposar-me,
Este seio feriste criminoso,
Deixando-o mal ferido, mas não tanto
Que á merecida morte succumbisse.
Ah! pensaste talvez que esse consorcio
Se tinha consummado n'esse dia!..