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A esperança

 

Maria Isabel não perguntára o nome d'este amigo que tanto se interessava por ella, e por sua mãe. Se o perguntasse, sabel-o-ia. Alfredo, ardia em desejos de dizel-o, apesar da prohibição que tinha de nomeal'o.

O delirio da viuva de Ricardo d'Oliveira, era quasi continuo. Um dia, porém, em que estava n'um curto intervallo de lucidez, disse ao medico:

― Isto está a acabar, snr. doutor, e bom é que acabe. Não posso soffrer mais tempo... Só me custa deixar este valle de tormentos, por deixar cá a minha filha... Se eu podesse abraçal-a e leval-a commigo...

― Não pense n'isso, replicou o medico. Se tiver fé na medicina e coadjuvar os meus esforços...

― Já não tenho fé em nada!... em nada!.. excepto na misericordia divina... e nem sempre!.. Ha momentos em que sinto o inferno dentro do peito! Agora... emquanto a rasão se me não torna a offuscar, quero pedir-lhe que não volte cá. Não quero mais remedios. Só quero vêr se posso receber os remedios da alma: os do corpo nada fazem e sòmos pobres... muito pobres! Já fòmos ricos... ao menos eu cuidava que o eramos.

E continuou com a exaltação delirante:

― Sabe em quanto montam os roes das nossas modistas?!

― Não pense n'isso. O passado já lá vai.

― Sim, já lá vai!.. Já não tem remedio!.. E elle morreu afogado com valores que não eram seus; mas nós não trouxemos nada!.. nada!.. absolutamente nada. Trouxeram-nos algumas roupas e não sei que mais... deram-me isso, creio que por caridade; e eu não merecia caridade... Gastei o que não era meu, e o que hoje me falta... Não posso pagar-lhe, snr. doutor... mas é casado?.. Póde levar um vestido de moire que me custou vinte libras... ou...

― Socegue. Não lhe peço nada. Peço-lhe só que não esteja a pensar em coisas passadas.

― Vinte libras por um vestido!.. Doze moedas por uma cachemira... duas libras por um lenço... vinte mil reis por um chapeu... oitenta mil reis por uma capa... duas libras por um regallo, uma libra por umas botas, oito libras por outro vestido; e que mais? Eram muito mais coisas!..

― Minha mãe, disse entre lagrimas Maria Isabel, pelo amor de Deus, esqueça isso...

― Vem cá minha filha, diz-me ao ouvido em quanto sommam todas essas inutilidades, mas que o não saibam os credores...

― Minha mãe, fallemos antes de Deus! [o medico lhe dissera baixo, que chamasse as idéas da enferma para a religião, a ver se esquecia tudo isso que a desesperava.] Não disse ao snr. doutor que queria confessar-se?

― Queria, mas Deus não quer. No baptismo prometteram por mim, que eu despresaria as pômpas do mundo; e sabes emquanto importam os gastos que tenho feito com ellas?..

― Deus perdôa tudo, minha mãe. Tenhamos fé na sua infinita misericordia. Elle não quer que nos desesperemos.

O medico sahiu profundamente commovido.

Depois veio um sacerdote, homem verdadeiramente evangelico. A enferma ficou mais consolada, mas aproximava-se a hora extrema. Olhou compungida para sua filha, e balbuciou:

― Pobre filha... Teus paes legaram-te a miseria e a deshonra... Essa tua parenta que por ahi tenho visto...

O fim do discurso não se ouviu; mas Carolina se incumbiu de terminal'o, dizendo:

― A snr.a D. Ermelina, é excellente pessoa, ha de proteger sempre a snr.a D. Maria Isabel.

Horas depois, estava a D. Maria Carlota na eternidade. A dôr de sua infeliz filha não se póde descrever. Carolina, mesmo que não tinha grande sensibilidade, chorou com ella. Francisco parecia doido.