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Olham-se estas centenas de milhares, estes milhões de pessoas que acorrem docilmente para cá de todo o globo terrestre, pessoas que vieram com um pensamento único, que se aglomeram plácida, obstinada e silenciosamente neste palácio colossal, e sente-se que aqui se realizou algo definitivo, que assim chegou ao término (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 116).

O palácio a que o escritor faz referência, segundo Boris Schnaiderman, tradutor da edição brasileira de Notas de inverno..., era na verdade um grande edifício de vidro, com armação de ferro, construído em 1851, quando da Exposição Internacional de Indústrias. O que impressiona Dostoiévski não é somente a grandiosidade da obra arquitetônica, que seria destruída durante a Segunda Guerra Mundial, mas, especialmente, a heterogeneidade das pessoas que visitavam o local: “... em Londres pode-se ver a massa humana em tal dimensão e ambiente como não se encontra em parte alguma do mundo, a não ser em sonho” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 117). Na assombrosa cidade europeia, milhares de pessoas de todo o mundo travavam contato umas com as outras já com alguma naturalidade, como se isso não fosse mais excepcional, mas algo corriqueiro em uma cidade desenvolvida como aquela. Sem dúvida, os novos meios de transporte, as vias férreas cujo nascimento fora ensejado pela modernidade tecnológica, permitiram um contato mais próximo entre pessoas e culturas antes tão distantes. Atentemos ainda, no trecho em destaque, para o que Dostoiévski diz sobre o Palácio de Cristal, onde “algo definitivo” acontecera. Ato contínuo nos perguntamos a que o escritor russo faz referência ao mencionar este “algo definitivo”. Se considerarmos que o escritor russo se refere à direção que escolhemos seguir, a opção pelo moderno seria um caminho sem volta, o que hoje parece ser algo óbvio e indiscutível.

Nos capítulos finais de Notas de inverno..., Dostoiévski dará atenção especial às relações sociais surgidas com o advento da modernidade e a consequente modernização dos meios de produção. No Manifesto do Partido Comunista, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820 – 1895) já haviam notado que todas as revoluções nos meios de produção implicam, necessariamente, transformações nas relações sociais entre os indivíduos (MARX; ENGELS, 2007). Sem afirmar que Dostoiévski está fazendo uma leitura calcada no pensamento do filósofo alemão, que não sabemos se chegou a ler, é interessante perceber como o escritor enxergava a figura do homem burguês nessa nova sociedade emergente em meados do século XIX: “Este burguês é uma pessoa estranha: proclama francamente que o

dinheiro constitui a suprema virtude e a obrigação humana, e, ao mesmo tempo, gosta terrivelmente de aparentar a mais elevada nobreza de caráter” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 128129). Mais uma vez, o olhar de Dostoiévski desnuda uma contradição, desta vez de caráter. A partir do que nos diz o escritor, é possível compreender que o dinheiro como virtude humana

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 70-80, 2016. ISSNe 2175-7917