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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

ção que se estabelece entre esse “ver” e o tema da viagem, o que não é incomum em narrativas heroicas, bastando recordar que Ulisses, na Odisseia, é por igual apresentado como alguém que “muito vagou” e “de muitos homens viu as cidades e a mente conheceu” (Odisseia 1, 2-3). Contudo, a leitura vertical do sentido de naqbu parece preferível porque o saber adquirido por Gilgámesh em sua grande viagem tem um sentido não só espacial, como também e sobretudo temporal, já que o principal conhecimento que ele adquire diz respeito ao que existia “antes do dilúvio”:

Ele - - - - da mesma maneira,
De todo saber, tudo aprendeu,
O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu,
Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era.
De distante caminho volveu, cansado e pacificado,
Numa estela pôs então o seu labor por inteiro. (1, 5-10)

Ora, como mais à frente se afirma que ele, Gilgámesh, “repôs os templos arrasados pelo dilúvio” e “instituiu ritos para toda a humanidade” (v. 43-44), essa restauração de templos e ritos, que restabelece os laços entre as eras ante e posdiluviana, parece ser o “todo saber” por ele adquirido e apresenta-se como o seu maior feito, que depende do contato com Uta-napíshti, o qual, com sua mulher, foi o único a sobreviver ao dilúvio na arca que construíra de acordo com as instruções dadas por Ea. A narrativa do dilúvio que Uta-napíshti faz a Gilgámesh na tabuinha 11 de Ele o abismo viu representa, portanto, um ponto de chegada de toda a trama, aquilo que transforma o rei famoso por seus feitos guerreiros no sábio que teve acesso aos segredos dos deuses e da condição humana.

Foi o fato de Ele o abismo viu conter essa narrativa do dilúvio que antecede a da Torah em pelo menos 500 anos que provocou grande interesse desde quando, em 3 de dezembro de 1872, George Smith apresentou essa parte do texto numa conferência na Society of Biblical Archaeology, em Londres. Mais interessante, contudo, que essa relação intertextual a posteriori – o relato da Bíblia não precisando nem parecendo depender diretamente de Ele o abismo viu, mas da vasta tradição mesopotâmica sobre o dilúvio de que este também se origina[1] – mais importante que isso é observar como o poema de Sîn-lēqi-unninni incorpora a narrativa do dilúvio, tomando-a de outro poema mais antigo, o chamado Atrahasis (Supersábio), cujo tema são as origens da humanidade.[2]

Mas o que mais interessa é o fato de que tomar uma parte de outro texto não contradiz em nada a técnica de composição babilônica e, em especial, a do próprio Sîn-lēqi-unninni, que, em Ele o abismo viu, incorporou de modo variado também a versão arcaica da saga de Gilgámesh, intitulada Proeminente entre os reis (šutur eli šarri). Isso fica suficientemente claro quando, no proêmio, se procede a uma espécie de poemofagia explícita – e com o neologismo o que pretendo é sublinhar que não se trata da antropofagia oswaldiana, nem propriamente das técnicas de intertextualidade a que estamos acostumados, em que sempre se supõe alguma digestão e ruminação, mas propriamente de engolir o poema anterior, sem mastigá-lo e digeri-lo, deixando-o como que exposto no fundo da garganta.

De fato o proêmio mostra duas partes: a primeira, que inicia com os versos acima citados, estende-se até o verso 28 e deve ser da autoria de Sîn-lēqi-unninni; a segunda se abre com o primeiro verso da versão antiga – Proeminente entre os reisestendendo-

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e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Ver Heidel, The Gilgamesh epic and Old Testament parallels, p. 224-269.
  2. A tradição relativa ao dilúvio (abūbum) é bastante característica da Mesopotâmia (ver Agostino, Gilgameš o la conquista de la imortalidad, p. 169-185). Na produção acádia, o relato clássico do cataclismo encontra-se no poema antropogônico intitulado Atra-hasīs (Supersábio), cujo manuscrito mais antigo é assinado pelo copista Kasap-Aya, que executou o trabalho sob o reinado de Amim-ṣadûqa (1646-1626 a. C.), cf. Bottéro e Kramer, Lorsque les dieux faisaient l’homme, p. 528-529. Tudo leva a crer que Sîn-lēqi-unninni se valeu desse texto na tabuinha XI, pondo o relato na boca de Ūta-napišti, ainda que Silva Castillo, La estructura literaria como guía para la traducción, p. 14, considere o episódio do dilúvio uma “interpolação tardia”.