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182. A CASA DOS MORTOS

Indo o pagem de um fidalgo que tinha fama de rico, comprar uma moeda de rábãos para a cêa de todos, encontrou uma grande procissão de religiosos e clerigos, que levavam a enterrar um defunto, e de traz da tumba se ia carpindo a mulher, e lamentando a sua desgraça; e ouviu que dizia entre lagrimas e suspiros:

— Aonde vos levam, meu mal logrado? Á casa onde se não come, nem bebe; nem tereis cama mais que a terra fria.

Em ouvindo isto o rapaz, voltou para casa como um raio fugindo, trancou as portas e disse espavorido a seu amo:

— Senhor, ponhamo-nos em armas, que nos trazem cá um homem morto.

— Tu deves vir doudo, disse o amo, pois cuidas que a nossa casa é egreja?

— Entrei em suspeitas se viriam cá enterrar aquelle finado; e confirmei-me de todo, porque a gente que o traz vem dizendo que o levam á casa onde se não come, nem bebe, nem ha cama mais que a terra fria; fiz bem em fechar as portas, pois assás bastam os defuntos, que cá jazemos mortos de fome, que he peor que maleitas.

(Idem, ib., p. 328.)




183. AS BOTAS FIADAS

Um fidalgo, tomou por materia de riso calçar todo o anno sem pagar nenhum par de obra aos sapateiros, que vieram a dar-lhe na trilha, levantando-se ás maiores com palavras, que correu entre todos que nenhum se fiasse d'elle, nem lhe desse calçado sem lhe pagar primeiro.