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MONTEIRO LOBATO

— Outras vezes a Rainha Mabe faz cócegas nas ventas dum figurão que já ganha vinte mil cruzeiros por mês, e ele sonha com um emprego em que não faça nada e ganhe o dobro. E se rapidazinha passa Mabe pela nuca dum soldado, ele sonha com batalhas, rufo de tambores, clarinadas, inimigos passados a fio de espada e mais burrices da guerra.

— Muito bem, vovó. Tudo da guerra é burrice. E que mais?

— Diz ele também que é a Rainha Mabe quem emaranha noite a crina dos cavalos, e com isso anuncia desgraça.

— Nesse ponto Shakespeare está errado! — berrou Emília. — Quem mexe com a crina dos cavalos à noite é o saci. Só os ingleses não sabem disso.

— Que mais, vovó? — pediu Narizinho.

— Mais? Diz ele ainda que Mabe visita as meninas na cama e lhes transforma os sonhos em pesadelo de casamento...

— Sim senhora, vovó! Nunca pensei que houvesse uma rainha tão útil e trabalhadeira. Essa cá me fica. Mabe, Mabe, Mabe, a rainha que não descansa nunca e produz todas as coisas gostosas que há no mundo! Viva, viva a Rainha Mabe!...

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Isso foi numa tarde. Na tarde seguinte, indo ao pomar, Emília encontrou Pedrinho ferrado no sono debaixo da "mangueira grande", e viu qualquer coisa passeando sobre a testa dele. Emília vinha do sol, de modo que ao entrar para a sombra ficou sem ver bem. Pareceu-lhe que o que estava na testa de Pedrinho fosse uma cigarra. Aproximando-se mais, viu que era... que era a carruagenzinha da Rainha Mabe! Tal qual Dona Benta lera em Shakespeare: casca de avelã, toldo de transparente asa de cigarra, borrachudo vestido de libré marrom segurando o chicotinho de pêlo atado em osso de pernilongo. Tudo exato. A carruagem dava voltas pela testa de Pedrinho, pelo nariz, pelas orelhas, pelas faces, e ia e vinha, e durante todo esse tempo o menino sorria aquele mesmo sorriso de anjo das crianças novas. A ex-boneca ajoelhou-se diante dele e absorveu-se na contemplação do maravilhoso espetáculo. Estava vendo o que ninguém no mundo ainda vira: a Rainha Mabe a provocar sonhos numa