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O Livro de Esopo destinava-se evidentemente á edificação moral dos leitores, como o provam a 2.ª parte do prologo e os epimythios, ás vezes muito desenvolvidos. De fabulas de origem pagã, — tão vária E tão remota —, pretendia tirar-se ensinamento christão para a vida usual.

Não foi esta a unica vez que obras antigas se adaptaram a intuitos novos, — obras pertencentes de mais a mais a civilizações que a propria Igreja combatia. Sem sair da nossa propria litteratura, lembrarei o Orto do Esposo, manuscrito alcobacence do sec. XIV[1], onde ha contos que correspondem a contos indianos. Particularmente notavel a este respeito é a lenda de Barlaam e Joasaph, tambem relacionada com o Oriente, e de que temos em português uma redacção do mesmo seculo com o titulo de Vida do honrrado iffante Josaphat[2]. A Historia do cavalleiro Tungullo e o Conto de Amaro, ambos igualmente do sec. XIV[3], desenvolvem themas que na origem são extranhos ás crenças do christianismo. Assim como as superstições pagãs se transformavam de modo insensivel em práticas piedosas, tambem as lendas experimentavam incessantes metamorphoses.

Afasta-se, porém, O Livro de Esopo das obras religiosas que mencionei agora, e de muitas mais que poderia mencionar, sobretudo vidas de santos, meditações, traducções biblicas[4], porque, se é certo que em alguns epimythios ha ideias mysticas, as fabulas propriamente ditas mantém a sua independencia artistica, e formam como que um oasis em meio da aridez e insipidez da litteratura do tempo, absorventemente devota.

  1. Isto é, originario da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça. Está contido no cod. n.º 266, que existe hoje na Biblioteca Nacional de Lisboa. — Deu extractos d’elle Th. Braga nos Contos tradicionaes do povo port., II (1883), 38 sqq.; cfr. as notas de p. 132 sqq. O Sr. J. Cornu, hoje professor da Universidade de Graz, fez uma copia do ms., e o Sr. F. M. Esteves Pereira, a quem a Revista Lusitana deve já a publicação de importantes textos portugueses antigos, está fazendo outra.
  2. Vid. supra, p. 120.
  3. Vid. supra, p. 120.
  4. Vid.: Th. Braga, Curso de hist. da litterat. port. (1885), p. 112-116; D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Geschichte der portug. Litterat. (no Grundriss der rom. Philol., II-2, p. 212).