Página:Obras completas de Luis de Camões III (1843).djvu/240

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Sendo parte da noite ja passada,
A virgem lá no seu retrahimento,
Quando estava dormindo toda a frota,
A Christo orou assi, branda e devota:

Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor, que amando vou toda rendida;
Com quem não ha na vida pena grave,
Sem quem glória real não ha na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que d’amor cheio e de brandura,
D’amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e formosura,
Não póde nunca haver cousa formosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Huma vida tão fraca e duvidosa,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que por amor te dispuzeste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do ceo desceste;
Amor, que por amor á Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida déste;
Amor, que por amor a glória abriste,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que mais e mais sempre te augmentas
No coração que lá comtigo trazes;
Amor, que d’amor puro te sustentas