Página:Prosas bárbaras (1912).djvu/77

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E no entanto, quando ela passa, o olhar perde-se na contemplação perigosa daquele busto forte, daqueles braços de aço, daquela testa que tem reflexos de opala, daqueles cabelos poderosos de um negro flamejante, daquele seio de forma bárbara. E então abre-se na alma, como uma grande flor do mal, um desejo, negro e reluzente. Aquele olhar atrai como uma profundidade cheia de ecos, de vapores húmidos e de mugidos de águas. E a alma, esquecida da justiça e do bem e dos pudores da piedade, quer atravessar as brumas do mal que cercam aquela mulher, e palpar os brocados luzentes e recamados que a vestem, destrançar-lhe os cabelos pelas moles sombras e dissolver-se naquele olhar negro, como uma flor se dissolve num vinho forte. O coração ri-se dos gemidos da Escócia e do último high-lander, que morre contemplativo, tocando as árias da sua montanha na última cabana, e lastima unicamente Macbeth porque tem para matar — só um Duncan. Sufoca o peito a negra lembrança de um desfalecimento lascivo, naqueles braços de mármore pálido, salpicados de sangue. A contemplação daquela terrível Lady Macbeth, em Shakespeare, deixa o corpo frouxo e trémulo, como se sobre ele se estendesse a nudez de uma deusa.

Foram estas figuras tenebrosas, que Verdi quis revelar no seu poema musical de Macbeth.

Há, sem dúvida, na obra imensa de Shakespeare, criações que devem dar a sua alma, a sua vida, a sua paixão, a esta música moderna, vestida de sensualidades pesadas, coberta com veludos de pregas moles e silenciosas. Porque em Shakespeare há tudo: há os corpos disformes