Para ler nas férias/A desobediente

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A DESOBEDIENTE
 

 

Mariana tinha oito anos e já sabia lêr muito bem. Era, além de inteligente, estudiosa, e punha o maior cuidado e atenção em aprender quanto lhe ensinavam. Mas tinha um grande defeito: queria governar-se pela sua cabeça. E, segundo afirmava nos seus momentos de franqueza, obedecer era a cousa mais desagradável que conhecia.

O pai, que era muito amigo dela, procurava convéncê-la da necessidade que todos temos, pequenos e grandes, de obedecer aos nossos superiores. Ela sorria incrédula e, imitando um palhaço que vira no Coliseu dos Recreios, gritava num tom muito desafinado:

― Viva a independência!

O pai não podia resistir ao riso e acabava o sermão; mas a mãe contraía as sobrancelhas em sinal de desagrado e dizia para o marido:

― Não sei como podes rir, Ildefonso. O feitio desta criança ha de dar-nos sérios desgostos.

― E's uma péssimista, respondia rindo o pai de Mariana.

Desenho a preto e branco de uma menina sentada a uma secretária a desenhar
Mariana

E, pedindo o chapeu e a bengala, despedia-se da mulher, beijava a filha e ia flanar pelas ruas da Baixa em companhia dos amigos, emquanto a mãe, mal umorada, curvava a cabeça sôbre a costura e se quedava longas horas silenciosa.

Então a pequena Mariana discorria assim:

―O meu paizinho é que é mais meu amigo: não ralha nunca, e acha-me graça. Mas a mãe!... Passa horas e horas sem dizer nada e ralha-me por qualquer coisa...

Como a maioria das pessoas, Mariana, em vez de reparar que eram os seus actos que mereciam censura, achava que a mãe é que era injustamente severa.

D. Amália ― era o nome da mãe de Mariana ― percebeu os pensamentos que se agitavam no espírito da filha e, chamando-a brandamente para junto de si, disse-lhe com meiguice e tristeza.

― Não julgues que eu sou menos tua amiga do que o pai, Mariana; o repreender-te é uma prova do muito afecto que te tenho. Tu és muito pequenina, não percebes isto por ora; mas, mais tarde, has de agradecer-me.

E Marianinha, de olhos baixos, envergonhada por ter sido adivinhada, retorcia entre os dedos a ponta do bibe, dizendo de si para si, como uma menina malcriada e ignorante:

― Espera por isso! Hei de mesmo agradecer aquilo de que não gosto!... Só se eu fôsse tola!

No dia seguinte, vieram as primas de Mariana busca-la para irem dar um passeio. O pai, antes de sairem, deu-lhe cinco tostões para comprar bolos para ela e para as primas. A mãe acompanhou-as á escada e recomendou :

― Não comprem tremoços

― Esteja socegada, tia, não compramos, respondeu Ernestina, a mais velha das primas.

Mariana, ouvindo esta afirmação, não retorquiu cousa alguma; mas, ao chegar á rua, disse a sua prima, com modo altivo e sobranceiro:

 

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― Olha lá: ¿com que direito respondes tu pelos outros?

― ¿Pelos outros?! perguntou Ernestina, admirada.

― Sim, pelos outros, volveu Mariana. Não prometeste á mãezinha que eu não compraria tremoços?

―Sim, a tia disse que não queria...

― Pois fizeste mal. E a prova é que vou já compra-los, ali no lugar. ― Mas a tia não quer...

― Isso agora não vem para aqui; o que vem, é que tu não estás de modo algum no caso de responder por mim porque eu só obedeço a quem quero.

A criada das primas julgou prudente intervir.

― Então, menina Marianinha, isso não é bonito.

As meninas devem ser amigas e não andarem ás brigas.

― Eu sou para os outros o mesmo que êles são para mim; ¿quem mandou esta lambisgoia dar-me sentenças?

― Olha que, se me chamas lambisgoia faço queixa ao tio.

― ¡Ai que susto! morro de mêdo! disse Mariana, soltando uma gargalhada.

E, deitando a correr, parou á porta do lugar e pediu:

― Quatro centavos de tremoços.

O' menina, isso é muito! exclamou aflita a criada das primas.

Então, com modo gaiato, Mariana perguntou-lhe:

― ¿Tu não gostas? ¿Ou imaginas que, por eu estar proibida de os comer, tambem vocês estão?

― Lá isso não, volveu risonha a criada, eu gosto muito dêles, e não me fazem mal.

― Nem a mim, disse Claudina, cujos olhos brilha- vam de cobiça.

― Pois eu não quero, disse Ernestina amuada.

― Tambem tens razão, volveu-lhe rindo Mariana.

Foste a única que fizeste promessas de não comprar tremoços; por isso tos não ofereço.

― Os bons propósitos devem cumprir-se, afirmou a criada rindo.

Ernestina, vendo comer as outras, disse:

Mas a minha mamã não me proibiu de comer tremoços... A tua é que...

― Vá lá, disse Mariana, eu sou bôa rapariga e passo-te por esta com a condição de não ires tôlamente dar parte em casa de que comi tremoços. A mamã tem a mania de que me fazem mal: é preciso respeitar-lhe as caturreiras e... fazer a minha vontade.

― Eu não sei, disse a criada com a bôca cheia de tremoços, como a menina se atreve assim a desobedecer á sua mãezinha que é uma senhora tão boa.

― Se não sabes, é porque és tôla. Diz o tio padre que, se a experiência dos pais servisse para os filhos, toda a gente no mundo tinha juizo.

― Lá isso é verdade, concordou a criada, ven- cida pelo argumento.

― Agora o que eu não percebo, e talvez tu saibas, é para que os pais teimam em querer impingir aos filhos o saber da sua experiência, quando por sua vez não quizeram aproveitar a dos pais dêles.

― ¡Tu sempre discorres cada coisa com oito anos que eu com os meus doze nunca pensei! observou Ernestina com admiração.

― E' natural... Eu sou muito mais esperta do que tu.

Entretanto a criada reflectia no comentário de Ma- riana e acabou por lhe dizer:

― A resposta ao que a menina pergunta não é difícil.

― Então dize lá.

― E' que, vendo os pais como lhes foi prejudicial não escutarem os conselhos que os mais avisados lhes deram, querem influir nos filhos para que êles tenham melhor sorte.

―Deve ser isso. Mas deviam estar convencidos, em vista do que diz o tio padre, de que é perder tempo sem proveito.

― ¿Tu comes os tremoços com casca? perguntou Claudina com pasmo a Mariana.

― Pudéra! A casca ainda é melhor do que o tre- moço.

Emquanto assim conversavam, tinham entrado na Tapada da Ajuda e chegado á fonte que está situada a meio caminho da calçada, que fica á direita de quem entra pelo portão de baixo. Pousando os lábios na verde folha de piteira que estava metida na bica, Mariana bebeu a largos sorvos.

― Isso faz-te mal, Marianinha...

― Deixa fazer que é por minha conta. Não é por teres mais quatro anos que te admito sentenças.

― A menina Ernestina faz mal em dizer nada a sua prima. Ela capricha em não fazer caso do que se lhe diz...

A poucos passos, em cima duma carreta de calceteiro , junto da qual se amontoavam grandes maços de madeira, pás, enxadas, e outros utensílios próprios para compôr calçadas, estava uma grande e grossa corda de esparto.

Marianinha soltou, vendo-a, um grito de alegria.

― ¿Que é? perguntaram as primas.

― Um achado magnífico.

E, voltando-se para a criada, ordenou, apontando- lhe um banco de madeira que ficava próximo.

― Sente-se ali, Hermínia; nós vamos brincar aqui.

E, dirigindo-se para a carreta, disse a Claudina:

― Ajuda-me tu a pegar na corda.

― O' menina, isso não, pediu a criada: pódem vir os homens e zangar-se de lhes andarem a mexer nas cousas.

As primas, a esta razão de Hermínia, pararam; mas Marianinha, continuando a puxar pela corda, troçou-as.

― Vocês são realmente umas meninas exempla- res! Até a criada lhes dá ordens! Que amôres de crianças!

Claudina, mais travêssa, não resistiu á censura, e dentro em pouco Ernestina, arrastada pelo exemplo, correu tambem a auxilia-las a tirar a corda.

A criada, contrariada, resmungava:

― Hei de dizer á senhora que a menina é uma péssima companheira para as suas primas: torna-as más, desobedientes...

― Perversas! ajuntou Mariana rindo. Olha, dize-lhe também que tenho artes para levar as criadas a comer os tremoços que me proíbem de comprar.

E deu uma gargalhada tão cheia de troca e mal- dade, que Hermínia calou-se como por encanto.

― ¿Vêem vocês a vantagem de ter feito comer os tremoços á Hermínia? Está mansa como um bor- rêgo. Não que, se ela falar, tambem eu falo!

― ¡Tu não és rapariga, és o diabo!

― O tio padre diz que eu sou o diabo de saias... talvez tenha razão.

― Mas para que queres tu a corda? Ainda não percebi.

Pois não é difícil: para fazer um belo balouço. Vocês agora passam-me a corda á cintura, eu trepo àquela árvore e ato-a bem, lá em cima, a dois ramos dos mais grossos; depois balouçamo-nos de pé na corda. Passa-se-lhe em baixo um troncozinho, para dar largura, e vamos duas em pé de cada vez ; isto é, eu vou sempre para fazer ir alto o balouço.

Aceite o programa, ràpidamente foi posto em prática. Mariana, marinhando como um gato, prendeu a corda, e, instantes depois, Hermínia gritava aflita :

― ¡Tão alto não! As meninas partem a cabeça! Eu não dou nada por que a corda, atada pela Maria- ninha, tenha firmeza...

E, quanto mais a criada gritava, mais Mariana e Claudina, insubordinada por ela, davam ao balouço fundo impulso. Por fim, os gritos da criada foram secundados por todos: a corda desatara-se dum lado e, emquanto Mariana conseguia agarrar-se ao outro com unhas e dentes, Claudina, menos enérgica e desembaraçada, era projectada a distância e, caíndo, abria a cabeça numa pedra.

A criada correu a erguê-la aflitíssima e, á vista do sangue que lhe corria da ferida, ela e Ernestina fizeram tal espalhafato, que Claudina quasi desmaiou de terror. Mariana deixou-se escorregar ao longo da corda e, chegando ao chão, molhou o lenço na fonte e disse á prima que a criada amparava:

― Isso dóe, mas não vale nada. Deixa lavar.

Como não sabiam melhor, a ferida foi lavada, e depois puzeram o lenço de Ernestina, que felizmente ainda não servira, a fazer de parche e ataram-lho sô- bre a ferida com a fita de setim branco com que Ma- riana prendia a trança. Terminado o curativo, Her- mínia disse a Mariana com modo desabrido:

― Ora veja agora se tem juizo e se não vem com mais alguma idea que nos dê triste resultado. Bem basta o que eu vou ouvir ralhar por causa de isto.

― Não te amofines, disse-lhe Marianinha com um sorriso amarelo, a culpa não foi tua.

― Isso não impede que eu oiça ralhar.

Mariana curvou-se de novo sôbre a bica e bebeu mais agua. Quando terminou, disse:

― Os tremoços fizeram-me sêde. Não ha água que me farte.

― ¿Eu não to dizia? observou-lhe Ernestina, não sem certa satisfação.

― ¿A que vamos brincar?

― Sentem-se e descansem um bocadinho que eu conto-lhes uma história.

― ¡Historias na rua! Isso é uma estupidez! ¿Ouvir histórias na tapada e correr e pular em casa? ¡Olhem que idea!

― ¿Então que havemos de fazer?

― Uma brincadeira que não faz mal e tem graça. Eu meto-me naquela carreta: a Ernestina, que é mais velha, faz de cavalo e puxa, e tu és o trintanário, recebes as minhas órdens, e tomas conta do cavalo quando eu me apear em qualquer parte.

― Isso é má brincadeira. A carreta é pesada e a menina Ernestina é muito fraca.

― ¡Fraca, eu! disse Ernestina, ferida na sua vaidade. Não sou tal. Olha, continuou, voltando-se para Mariana, o cavalo chama-se Terrivel: é o nome do que ganhou as corridas o ano passado.

― Pois sim, concordou Mariana: a Claudina é o João e eu sou o senhor marquês da Pena de Oiro.

A criada observou-lhe sorrindo:

― O' senhor marquês, parece-me que, como o cavalo é desinquieto e ainda não está habituado a puxar o carro, que é muito pesado para êle, seria prudente, ja que teima em o atrelar, não se meter nêle senão nas subidas : não vá o carro atropelar o cavalo.

― Não ha perigo. O cavalo vai atrás e anda-se de- vagar...

A primeira volta foi dada com prudência. Na segunda , o cavalo sentia-se mais fogoso e desinquieto, ameaçando morder o trintanário, quando o marquês se apeou para ir visitar uma senhora das suas relações. E na terceira volta, esquecendo as admoestações do marquês e os conselhos de Hermínia, o cavalo tomou o freio nos dentes, desatando numa corrida louca. O marquês queria moderar-lhe o andamento, mas não era possível porque o cavalo vinha atrás e, apesar dos esforços dêle e do trintanário, tentando ambos suster o veículo, nada conseguiram, sendo arrastados pelo carro contra o seu querer.

Então o trintanário lembrou ao cavalo:

― Deixemos o carro: talvez êle pare.

E, sem reflectirem, foi dito e feito.

O carro então aumentou de velocidade. O pobre marquês pedia socôrro e ninguêm lhe acudia. Por fim, por uma diferença de nível resvalou para a valeta, lançando ao chão o pobre marquês que, indo bater no grosso tronco dum carvalho, ficou com uma perna e um braço em muito mau estado.

Então o trintanário e o cavalo vieram ajuda-lo a levantar-se, e o primeiro perguntava com cerimonioso respeito:

― ¿O senhor marquês fez-se mal?

E o cavalo relinchava desinquieto.

Então Mariana, apoiando-se ao tronco da árvore, erguia-se cheia de cólera, bradando enfurecida :

― ¡Qual marquês, nem qual diabo! Agora é que ha de ser bonito! Não posso andar... Vocês, com a estupidez de largarem o carro, por um triz que me não partiram a perna!

Claudina retorquiu sem dó:

― É bem feito: tu só é que és marquês... quiz trocar comtigo, não quizeste... Os outros só te servem para cavalos e trintanários...

E tudo isto era dito com grande verbosidade e com os olhos inundados de lágrimas prestes a soltarem-se-lhe pelas faces.

Então Mariana, apesar das dôres que sentia, desatou a rir:

― ¿Então eu é que caio e tu é que choras?

E mostrando-lhes a perna ensanguentada e o braço todo pisado, afirmou-lhes:

― Vêem vocês os contras de ser marquês da Pena de Oiro? Por um triz me não fizeram em fanicos! Vá, façam uma padiola, ou melhor, uma cadeirinha com as mãos para levarem o pobre marquês a lavar a sua ferida na fonte.

As primas, condoídas, acederam e trouxeram-na de cadeirinha para cima.

Hermínia, muito contrariada, lavou-lhe e cuidou-lhe a perna, e todos verificaram com mágua que a travessa Marianinha não podia andar sem um grande esforço.

Bebeu mais água e afirmou de novo:

―¡Que sêde! Julgo que nem bebendo toda a água da fonte ficaria satisfeita!

― Não estará bem do estómago, aventou a criada.

―¡Qual! Estou optimamente.

Nisto, voltaram os operários para pegar no trabalho e ficaram muito pasmados de não vêrem a carreta nem a corda.

 

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... voltaram os operários...
 

Hermínia pediu-lhes desculpa, dizendo que as meninas eram desobedientes e mostrando-se muito contrariada de que mexessem no que lhes não pertencia. Um dêles disse amavelmente que não fazia mal e, subindo àgilmente á árvore, desatou a corda.

Um outro, mais malcriado, desceu em procura carreta, resmungando:

― Quem tem crianças assim não as traz para os passeios; fecha-as em casa. Os outros não têem obrigação de lhes aturar as partidas.

Um momento depois, quando Hermínia e as meninas já pensavam em se retirar em vista da impossibilidade de Mariana poder associar-se aos seus jogos, o homem voltou furioso. A carreta, batendo com a roda de encontro ao tronco da árvore, partira o eixo. Tinham de lhe pagar o concêrto: não sairiam dali sem isso.

Felizmente, como só haviam comprado os tremo- ços, ainda tinham os trinta e quatro centavos que êle exigia para concêrto do carro. Marianinha pagou, bebeu mais água e, amparando-se dum lado ao braço de Hermínia e do outro ao de Ernestina, alcançou a rua onde passavam os eléctricos, com muitas dôres na sua perna e grande custo. Meteram-se no carro e regressaram a casa de Marianinha. Hermínia ia muito apoquentada. Mariana consolava-a:

― ¡Deixa lá! A mamã não se zanga. Em eu lhe dizendo que a culpa foi minha, é quanto basta. Mas nem as primas nem Hermínia se sentiam socegadas com esta afirmação.

D. Amália, vendo a filha chegar naquêle estado não disse nada a Hermínia por ela não ser sua criada; mas censurou-se por ter deixado saír a filha sem ela, e declarou que escusavam de lhe tornar a pedir a companhia da filha porque não tornaria a cometer a insensatez de a confiar a ninguêm. Não queria ter a desgraça de ficar sem o seu anjo adorado, etc.

As sobrinhas e a criada, logo que ela fez uma pausa nas suas lamentações, despediram-se e retiraram-se vexadas, e jurando nunca mais irem buscar Mariana.

Esta sentara-se amuada a um canto da casa e ali adormeceria se a mãe lhe não perguntasse:

― ¿Então não te vais despir?

― Custa-me a andar e dóe-me muito a cabeça... Tenho sêde...

A sr. D. Amália auxiliou a filha a erguer-se, e depois foi ela própria dar-lhe água e despi-la.

Como ela se queixasse de novo de dôres de cabeça, apalpou-lhe a testa e, sentindo-a a escaldar, meteu-a na cama. Vendo o seu estado, não se atreveu a dar-lhe de jantar e, á noite, como a febre aumentasse, mandou chamar o médico.

O Dr. Xavier, grande amigo da família ha muitos anos, e de Mariana desde ela que nascera, examinou-a com cuidado e, pedindo uma colher para lhe vêr a garganta, fez um imperceptivel sinal a D. Amália para que o deixassem só com a filha. A mãe de Mariana saíu, como para ir ela própria buscar a colher, e o médico perguntou-lhe:

― ¿Que comêste tu?

― Nada.

― Não mintas. Dize-me o que comêste que eu prometo guardar segrêdo.

― ¿Palavra? perguntou ela receosa, pegando-lhe na grande mão.

― Palavra. ¡Estás com imensa febre! ¿Que co- mêste ?

 

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― Tremoços com casca bebi água, muita água; depois subi muito alto no balouço, e como realmente me não faz bem, fiquei com a cabeça azamboada... Depois caí do carro e isso é que foi pior: tenho o corpo que o não sinto.

― Acredito-te. E, voltando-se para D. Amália, que entrava com a colher pedida, o doutor informou :

― Havendo cuidado, não é caso de gravidade: um pouco de sol, complicado com um incómodo gástrico...

― Mas ela não comeu nada que...

― Bem sei, bem sei, apressou-se a concordar o doutor; mas hoje não come nada e amanhã toma um purgante e não sái do quarto. Eu venho quando forem tres horas.

E despediu-se ternamente de Mariana.

A doente passou uma noite agitadíssima, cheia de pesadêlos, parecendo-lhe que a todo o momento estalava a corda do balouço e caía por terra, ou, dentro do carro, ia esbarrar de encontro á árvore. O suor colava-lhe o cabelo ás fontes, atirava fóra a roupa cama, e pedia constantemente:

― ¡Água, mais água!

A mãe levou toda a noite a pé, chorando e maldizendo o momento em que deixara a filha saír com as primas.

De manhã, Marianinha tomou o purgante que o médico receitara, e no dia seguinte, já melhor, teve licença para se assentar na cama e brincar com as bonecas.

Ernestina foi vê-la com sua mãe.

Quando D. Amália e sua irmã saíram do quarto, deixando-as a jogar o assalto, Ernestina disse baixo a Mariana:

― ¿Então tinha, ou não tinha razão a tia, quando não queria que tu comêsses tremoços?

Mariana concordou:

― Tinha, mas não me convencia, Ernestina. Olha, custa a confessar, mas é verdade: as raparigas teimosas,

 

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como eu, só aprendem á sua custa, mas o que aprendem nunca mais o esquecem. Eu não sei o que me fez pior. O que te garanto é que nunca mais cómo tremoços, nem ando no balouço, nem quero ser marquês da Pena de Oiro, por mais que para isso instem comigo.

Realmente, passados tres mezes, estando a banhos em Cascais, D. Amália passava as tardes na praia com a irmã, a filha e as sobrinhas. Ernestina e Claudina andavam no balouço e Mariana fazia castelos na areia.

 

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Tendo pena da filha, D. Amália disse-lhe em tom quem fazia uma grande concessão: ― Se queres, Mariana, dá uma voltinha no balouço.

― Muito obrigada, mamã, não gosto do que me faz mal.

― ¡Esta criança sempre tem um juizo! exclamou envaidecida D. Amália.

Ernestina e a irmã riam á socapa e murmuravam ao ouvido da prima:

― ¿Tu não esqueceste a lição da tapada ?

― ¡Isso esqueceu ela! ¿Vocês não têem ouvido o tio padre dizer que o que arde cura?

― Temos.

― Pois, meninas, é o mesmo que acontece a quem aprende á sua custa: o prêço da lição nunca lhe esquece.

Ernestina comentou rindo:

― É por isso que ela serve.

― ¿De que ris tu? perguntou D. Amália.

― Do juizo da Mariana.

― Pois, em vez de rir, devias imita-lo e não andar tanto no balouço que te não faz bem...

O riso tornou-se convulsivo na pequenada e D. Amália e a irmã olhavam-se interrogadoramente, quando Marianinha afirmou entre gargalhadas:

― ¡Deixe-a apanhar uma indigestão de balouço, minha tia. Não ha como isso para não querer mais!

É o meu caso.

E, realmente, Mariana, vendo os contras da desobediência, preferiu não aprender mais á sua custa para não ter de que se emendar.