Quatro regras de diplomacia/Discurso preliminar

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DISCURSO PRELIMINAR

 

Dos diversos ramos do serviço publico, o diplomático é sem duvida aquelle em que ao agente é concedida maior liberdade no modus operandi. O que sobretudo se lhe pede é dar boa conta de si e dos negocios que lhe são commettidos. Isto depende em grande parte dos expedientes que adoptar, e das qualidades da sua pessoa. Aqui pois não ha campo para regras absolutas.

Os deveres, esses são definidos, sendo de todos o primeiro, bem servir a patria; mas no modo de os cumprir dá-se ampla margem; e, excepto no tocante ao estilo dos escriptos, póde ser questão para alguns se a palavra regra é applicavel aos argumentos fundamentaes em que se divide deste trabalho, cujo fim é meramente suggestivo, não doutrinal, e sem ideia de esgotar a materia.

Quanto á primeira regra, poderiam objectar que houve tempo em que alguns soberanos eram tão ciosos da exclusiva dedicação dos seus agentes, que bastava qualquer indicio de haverem grangeado mais do que uma formal benevolencia na côrte onde fossem acreditados, para serem mandados recolher.

Lembrariam, quanto á segunda, que o Cardeal Mazarin não fôra o unico a desconhecer semelhante regra. Finalmente, quanto a terceira, diriam, talvez, que em ponto sujeito a circumstancias tão variaveis, e a ser apreciado tão diversamente, não póde haver regra.

Sem anticipar o que opportunamente se dirá, cumpre todavia reflectir que as regras estabelecem-se pela pratica observada nos bons exemplos; e que outros em contrario não destroem a solidez de preceitos que serviram de norma de proceder á maior parte d’aquelles que tiveram bom exito nas suas emprezas. De resto, prœcepta dantur de mediis, non de finibus.

Salvas raras excepções, o talento e o estudo não bastam para formar um chefe de Missão que esteja á altura do seu cargo; é-lhe ainda necessario ter passado por certo tyrocinio. Qual seria o Governo que confiasse o seu exercito ou a sua armada a um General ou Almirante sem pratica especial da respectiva arma, e escolhido ad hoc dentre os cidadãos distinctos do paiz? Se n'aquelle as consequencias da inexperiencia são geralmente menos para temer do que n'estes ultimos, nem porisso deixam de se traduzir em complicações que muito convém evitar, e que as vezes podem ser de summa gravidade.

Dizemos, com raras excepções; porque de certo um verdadeiro genio não está no mesmo caso que o commum dos mortaes. Um dos seus caracteristicos é participar da essencia do fogo, que, em determinadas condições, alias variaveis, se atêa e sobe em labaredas por forma inesperada, sem evolução apparente. Como essas plantas tropicais que pelo seu rapido crescer, parece estarem fóra da lei da gradação, a que todavia obedecem, assim nos surpreende o genio na independencia que se nos afigura, das condições ordinarias do progresso. Não foi d'outro modo que o Padre Antonio Vieira, ainda Seminarista, assombrou seu mestre e os seus condiscipulos, quando, tido até ali por de mediana intelligencia, se mostrou um dia gigante na argumentação.

É que n'esses privilegiados da natureza humana, a operação do desenvolvimento intellectual faz-se n’uma esphera superior (se até o proprio vocabulo genio nol-o esta lembrando!), entre a qual e a nossa, se faltam limites definidos, ha comtudo um abysmo que nos é vedado transpôr.

A homens d'este quilate, seria dispensavel um tyrocinio regular, fosse qual fosse o ministerio a que os impellisse uma provada vocação. Dar-se-hia pelo menos alguma cousa de semelhante ao que se conta do celebre negociador Cardeal d'Ossat, que, nascido de paes humildes e pobres, e entrando ao serviço de um joven fidalgo, começou com elle os estudos; mas com tal proveito, que de condiscipulo passou em breve a preceptor de seu amo. Ou qual outro Abélard que, offuscando pela propria superioridade, a fama d’aquelle mesmo de quem recebia as lições, teve de supportar a malevolencia de um Guilherme de Champeaux; emquanto que o seu successor, de animo mais sincero, se convertia em discipulo do joven impugnador do realismo escolastico.

Os athletas da intelligencia são devéras tão raros que, em logar de inveja, deveriam merecer a estima dos seus conterraneos, e acharem franco accesso aos cargos cujo desempenho, pela sua capacidade excepcional, fizessem redundar em proveito e gloria da patria. Mas isso é ainda mais raro do que a propria raridade d’esses espiritos superiores; ao passo que o que se impõe como gigante, estribado nos hombros dos correligionarios politicos, não passa muitas vezes de insigníficante pigmeo, ou de modestissimo talento.

Não é só n’estes reinos que (como observa o Conde da Ericeira, no Portugal Restaurado, dando o motivo por que o governo republicano não conviria aos Portuguezes), não é só aqui que os homens se incommodam mais com a boa fortuna alheia, do que com as proprias desgraças. As mediocridades têem em toda a parte campo mais seguro e duradouro. A culpa porém nem está sempre, nem somente na sociedade. « Un homme d'esprit, » diz Montesquieu, « est ordinairement difficile dans les sociétés. Il choisit peu de personnes; il s'ennuie avec tout ce grand nombre de gens qu’il lui plait d’appeler mauvaise compagnie; il est impossible qu'il ne fasse un peu sentir son dégout: autant d'ennemis. Sûr de plaire quand il voudra, il néglige très souvent de le faire. Il est porté à la critique, parcequ’il voit plus de choses qu’un autre, et les sent mieux. Il ruine presque toujours sa fortune, parceque son esprit lui fournit pour cela un plus grand nombre de moyens. ll échoue dans ses entreprises, parcequ’il hasarde beaucoup. Sa vue, qui se porte toujours loin, lui fait voir des objets qui sont à de trop grandes distances. Sans compter que, dans la naissance d’un projet, il est moins frappé des difficultés qui viennent de la chose que des remedes qui sont de lui et qu’il tire de son propre fonds. Il néglige les menus détails, dont dépend cependant la réussite de presque toutes les grandes affaires [1]. L'homme medíocre, au contraire, cherche à tirer parti de tout: il sent bien qu'il n'a rien à perdre on négligonces. L'approbation universelle est plus ordinairement pour l’homme médiocre. On est charmé de donner à celui-ci; on est enchanté d’ôter à celui-lá. Pendant que l’envie fond sur l’un et qu'on ne lui pardonne rien, on supplée tout en faveur de l’autre: la vanité se declare pour lui »[2]

Cicero dizia a Appio Pulchro: « muitos homens sem merecimento têem conseguido as insignias do merito[3] »; o que é mais certo e frequente do que a sentença que Tito Livio põe na bocca dos sediciosos: « por grandes honras se sublimam os espiritos » [4]. Outro rival do talento são as riquezas: ainda hoje se vê, como no tempo em que Antonio Ferreira escreveu a sua comedia Bristo, que « não ha rocha tão ingreme, e tão áspera, por onde não trepe um asno carregado de ouro ».

Cumpre porém insistir no que ja se apontou acima; exige-se no diplomata uma circumstancia que o maior talento não poderá supprir, isto é, a educação; e sobre tudo para o desempenho de missões permanentes. É muito raro que uma educação tardia possa ageitar-se a novas condições de existencia, de modo a encubrir esse defeito que o mundo dos gabinetes e dos salões, com sagacidade implacavel, descobre logo e não perdoa sem grandes compensações, e assim mesmo simuladamente. Falta-lhe aquelle não sei quê que se adquire só pelo habito, não por força de vontade, e que se traduz pela naturalidade. Em pessoas n’essas condições a facilidade degenera muitas vezes em presumpção ou desembaraço atrevido, a modestia em mero acanhamento, o respeito em submissão, a gravidade em arrogancia, o trato intimo em familiaridade de mau gosto; estão desprovidas em summa do instincto das conveniencias e da opportunidade, em quanto que o esforço se está denunciando a cada passo no gesto e nos actos. É por isso, como alias mostra a experiencia, que homens de inferior capacidade, mas acostumados desde a puericia ao trato da boa sociedade, dão geralmente melhor conta das missões diplomaticas que lhes são confiadas, do que aquelles que, embora favorecidos de grandes dotes intellectuaes, não tiveram a vantagem d’aquella disciplina na epocha da vida em que deixa a sua impressão indelevel. Isto porém não quer dizer que não haja conjuncturas especiaes em que os talentos d’estes ultimos seriam aproveitados com vantagem do serviço.

Attribue-se a Frederico o Grande o dito de que « a melhor diplomacia é uma bateria de cem peças ». Não é menos terminante do que a doutrina que Schiller põe na bocca de Franz: « o direito está no vencedor, e as nossas leis são os limites da nossa força »[5]. Seria apenas uma variante da resposta dos Gaulezes aos Legados Romanos, isto é que nas armas traziam o seu direito, pertencendo tudo aos mais fortes »[6]; o que não differe essencialmente do que já os Athenienses, em plena assembléa, tinham dito aos Enviados da ilha de Melos: « que competia aos fortes dominar os fracos, sendo essa a vontade celeste »[7].

Fôra devéras reduzir o direito das gentes a sua formula mais singela, e concentrar no arauto as attribuições do embaixador. Este pelo menos iria coroado de uma aureola de ferro e fogo de effeito tão imponente, que bastaria prover a missão em qualquer alferes ou capitão; como aquelle Popillius de que Polybio da noticia[8], o qual, descrevendo com a bengala um circulo em volta do rei Antiochus, e prohihindo-lhe que d’alli sahisse emquanto não significasse a sua resposta, que este pretendia adiar, obteve o que queria; isto é, a «obediencia do monarcha ao decreto do Senado Romano, que lhe ordenava abster-se da guerra contra Ptolemeu, alliado da republica. E com tanta sobranceria se condena o Enviado, que, tendo primeiro recusado tomar a mão que lhe oderecera o rei, deu-lhe a sua depois de receber a desejada resposta. Isto faz lembrar uma anecdota occorrida ha poucos annos, n'uma das cortes da Europa, com referencia ao representante de uma republica. Na audiencia de recepção offerecera-lhe logo -o monarcha a sua mão ; mas em vez de a tomar o diplomata disse: «Esperae um momento, senhor»; e tirando da algibeira um papel e a sua luneta, pôz-se a ler o discurso, deixando o shake-hands para depois. É certo, porem, que o intento foi diverso; e dizem que o novo Popillius fizera uma libação aos deuses antes da audiencia.

A força dá com effeito um prestígio que nenhuma habilidade póde supprir. Assim é, talvez, pela magestade que cercava o nome romano, que se deva explicar a libera legatio, singularidade de que nos não consta haver memoria em outros povos[9]; e expressão que se não deve confundir, como tem acontecido, com a mais moderna de mandatum cum libera, significando esta «plenipotencia». A libera legatio era uma delegação, que, sahindo de Roma para tratar negocios de natureza particular, ás vezes privativos do proprio delegado, ia revestida, segundo parece, das immunidades de uma embaixada, privilegio que por impetração de pessoas influentes, lhe era conferido pelo Senado; mas sem caracter publico. Em summa, o Senado, como se deprehende, tomava esse agente ou procurador debaixo do seu amparo em quanto pendia a commissão que desempenhava em seu proprio beneficio, ou de outrem. Era mais alguma cousa do que as immunidades virtualmente ligadas ao Civis Romanus sum[10].

Muito póde na verdade o respeito tributado a um Estado poderoso, e «vale mais o somno de seus embaixadores, que as diligencias e correos dos outros homens», segundo a expressão de D. Miguel da Silva escrevendo a el-rei D. Manuel, em 1 de julho de 1517, a proposito de uma mercê que lhe fizera o papa[11].

E muito póde o prestigio da nomeada, ainda mesmo desacompanhado do vigor correspondente. Vemos até onde elle póde chegar, pelo que nos conta um nosso chronista a respeito do Çamorim de Calecut, a quem, sendo vencido, bastava mandar tocar em certo tambor que na guerra sempre levava comsigo, para que o inimigo, parando logo, deixasse de ir em seu alcance[12].

Quanto mais não poderá, portanto, o prestigio reunido ao imperio da força! Confere tanta auctoridade só de per si, que facilita muito o andamento dos negocios, dependendo menos, n'este caso, o bom exito da missão, das qualidades e habilitações do encarregado d'ella, do que quando este representa uma Potencia cuja energia está só no direito e nas allianças. Em tal hypothese, pois, para fazer valer aquelle, e manter illesas estas ultimas, com menos risco de se expôr a sentença epigrammatica de um historiador ing1ez[13], muito importa não admittir aos cargos mais elevados do serviço diplomatico senão pessoas idoneas, e de provada capacidade; e salvas as excepções, d'onde ha de o Governo escolher com segurança os seus agentes, senão d'entre aquelles que ao sahirem dos bancos da Universidade, abraçam a respectiva carreira, dando, nas successivas categorias por onde hajam de passar, a necessaria prova de si mesmos? Ter esses cargos em conta de commissões sujeitas à mera conveniencia da politica partidaria, é meio pouco seguro ou vantajoso para fomentar as relações diplomaticas. Se prevalecesse o costume da antiga Athenas, onde o Presbeis era mulctado ao regressar á patria, quando por culpa sua não dava boa conta da missão, talvez houvesse menos candidatos aos cargos de Enviado.

Em regra, não vão buscar os seus representantes fora do quadro, as grandes Potencias como Inglaterra, Allemanha, e a Austria ; nem as de ordem secundaria como Hollanda, Belgica, Dinamarca, e a Suecia.

Se hoje, em que as grandes dominações, á semelhança das da antiguidade, não parecem felizmente poder tomar pé; se hoje, em que a preponderancia exclusiva se não verifica em nenhuma das Potencias de primeira ordem, estas, por se acharem frente a frente com outras de egual pujança, reconhecem a conveniencia, senão a necessidade de formar e manter um quadro de pessoas exclusivamente habilitadas para o serviço diplomatico - e que, além d’isso, têem à sua disposição as taes «baterias de cem peças», — com quanta maior insistencia não deveria ser seguido esse louvavel exemplo pelos Governos a quem falta tão vigoroso apoio ao seu direito; a quem é vedado aquelle ultimo argumento!

Lord Palmerston formulou a maxima: The right man in the right place; o que se pede traduzir em vulgar pelas palavras de uma rainha de Portugal: «Tão bem parece o ladrão na forca, como o sacerdote no altar»[14].

  1. « Non sunt contemnenda quasi parva (i. e. initia literarum), sine quibus magna constare non possunt », diz também S. Jeronymo, a proposito do ensino das letras, onde, seja dito de passagem, desenvolve um systema que não fica atraz dos mais liberaes, querendo principalmente que á puericia se poupe o risco de tomar os estudos em odio, « no amaritudo eorum prœcepta in infantia, ultra rudes annos transeat.» S. Hieron. ad Lætam (Epist., de instit. filiæ).
  2. Lettres Persanes, Lett. 145.
  3. «Insignia enim virtutis multi etiam sine virtute assecuti sunt.» Ad FAM., Lib. III Epist. 13.
  4. « Magnos animos magnis honoribus fieri » Lib. IV c. 35.
  5. « Das Recht wohnet heim Ueberwältiger, und die Schranken unserer Kraft sind unsere Gesetze ». Die Ræuber, A. I Sc. 1.
  6. « Se in armis jus ferre, et omnia fortium virorum esse ». Tit. Liv., L. V c. 36.
  7. Cantu, Hist. Univ., L. III c. 13.
  8. L. XXIX § 11.
  9. Embora haja, talvez, uma tal ou qual analogia na idea fundamental d'essas legações, com a que induzia alguns negociantes Hollandezes a impetrarem, de príncipes estrangeiros, titulos que os constituíam seus residentes (ao que allude Vattel, L. 4 c. 8 § 112), assim como hoje se obtem a nomeação para os consulados no paiz da nacionalidade ; as circunstancias comtudo eram bem diversas no caso de que tratamos.
  10. Cicero falla de um d'esses legados, C. Anitius, que, «negotiorum suorum causa legatus est in Africam, legatione libera,» recommenda, como amigo seu, a Comiticio (Ad Fam. L. 12 ep. 21). Diz Ulpianus: «Qui libera legatione abest, non videtur Reip. causa abesse: hic enim non publici commodi causa, sed sui abest» (Corp. Jur. Civ. Digest. L. 50 tit. 7 c. 14.). Veja-se tambem Sueton. L. 3, c. 31; e a respectiva nota de Budœus, que lembra serem taes delegações probibidas pela lei das doze taboas, segundo a citação de Cicero. Esta é a seguinte: «Imperia, potestates, legationes, cum Senatus creverit, populusve jusserit, ex urbe exeunto.... rei suœ ergo ne quis legaltus esto.» (De Legib. L. 3 c. 3; vejam-se ainda as observações do proprio Cícero, sobre a ultima parte d'este texto, ibid. c. 8).
  11. Rebello da Silva, Corp. Diplom. Port. T. l p. 473. Em carta de 30 de junho precedente, escrevera o dito embaixador, sobre o mesmo assumpto, o seguinte: «Faço saber ysto a vossa anexa... porque veja que seus embaixadores nam ham mister despesa de correos nem vagantes, antes o que os outros com mil correos nam ham, lhes dam chamando-os de suas casas pera ysso.» Ibid. p. 468.
  12. Andrada, Chron. de D. João III, tom. 3 pag. 403., ed. de 1796.
  13. «A government which has generally caused more annoyance to its allies than to its enemies» MACAULAY, Hist. of Engl., ch. 20.
  14. Ha bastantes annos que parte da imprensa dos Estados Unidos, e outras vozes auctorisadas tem advogado a conveniencia de se estabelecer um quadro com pessoal fixo, ou seja uma carreira para o serviço diplomatico da Republica. As innovações são porém difficeis de adoptar, e levam seu tempo. Aliás as Legações são premios que geralmente se dão aos dilectos e afilhados, depois de cada eleição presidencial; e apesar dos reconhecidos inconvenientes d'este systema, é provavel que a desejada reforma ainda se faça esperar.