Quem conta um conto/IX

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— Que mandam nesta sua casa? perguntou o capitão Soares.

O bacharel usou da palavra:

— Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do sr. major Gouveia.

— Não me lembra; que foi? disse o capitão com uma cara tão alegre como a de homem a quem estivessem torcendo um pé.

— Disse-me você, continuou o bacharel Plácido, que o namoro da sobrinha do sr. major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...

— Perdão! interrompeu o capitão. Agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.

— Não foi?

— Não.

— Então que foi?

— O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. S. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.

— Sim, há alguma diferença, concordou o bacharel.

— Há, disse o major deitando-lhe os olhos por cima do ombro.

Seguiu-se um silêncio.

Foi o major Gouveia o primeiro que falou.

— Enfim, senhores, disse ele, ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o sr. capitão dizer-me a quem ouviu isso?

— Pois não, disse o capitão; ouvi-o ao desembargador Lucas.

— É meu amigo!

— Tanto melhor.

— Acho impossível que ele dissesse isso, disse o major levantando-se.

— Senhor! exclamou o capitão.

— Perdoe-me, capitão, disse o major caindo em si. Há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado por culpa de um amigo...

— Nem ele disse por mal, observou o capitão Soares. Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa...

— É verdade, concordou o major. O desembargador não era capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.

— É provável.

— Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.

— Agora!

— É indispensável.

— Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?

— Sei; iremos de carro.

O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.

— Não podíamos adiar isso para depois? perguntou o capitão logo que o bacharel saiu.

— Não, senhor.

O capitão estava em sua casa; mas o major tinha tal império na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão ceder.

Preparou-se, meteram-se num carro e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.

O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.

Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que em menos de uma hora lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava... figuradamente falando, e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.

O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes.

— Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.

— Vamos, tenha paciência, dizia-lhe o coadjutor. Vá, vá ver o que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção corrija a sorte dos dados.

— Tem razão, é possível, concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.