Sonhos D'ouro/IV

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Por entre duas linhas de cafezeiros aparecia a porta da casa; e em pé na soleira, uma velhinha de cabelos brancos em carrapito, com vestido de chita amarela e um lenço vermelho de Alcobaça, cruzado ao peito.

Era D. Joaquina Sampaio, tia de Fábio e senhora da pequena propriedade. Passava ela entre todos os parentes como rica, porque possuía esses dois palmos de terra e uns três escravos. Com a sua rocinha, como ela lhe chamava, ia vivendo, pobremente sim, mas tranquila e feliz.

Tudo ali era velho: a casa, as árvores, a dona e os escravos. A mocidade só brilhava no renovo das plantas e no semblante dos dois amigos, que passavam habitualmente o domingo em companhia da velha.

— Vocês hoje não têm muita fome! disse D. Joaquina apenas avistou os dois moços.

— Ao contrário, minha tia, trago duas fomes em vez de uma, respondeu Fábio.

— Pois não parece. Já o sol está entrando pela casa, replicou a senhora mostrando a réstia no pavimento da sala.

— É tarde com efeito! disse Ricardo.

O moço levara maquinalmente a mão ao bolso do colete para tirar o relógio; mas reprimiu o movimento involuntário, enquanto um sorriso triste lhe fugia dos lábios. Tivera há dias necessidade de pagar algumas dívidas impertinentes. Era preciso vender o cavalo ou o relógio; preferiu desfazer-se deste último traste. Que lhe importava saber com exatidão as horas, se elas não lhe traziam nenhuma felicidade?

O almoço era frugal como de costume. Café com leite muito bem feito, três pães, um para cada pessoa, e excelentes bananasmaçãs. Todos os domingos punha-se invariavelmente no meio da mesa uma grande manteigueira de louça azul, como era o resto do aparelho. Fábio nos primeiros tempos destampava sem cerimônia a manteigueira e empastava a fatia; mas acabou-se a primeira porção e só restava a crosta ligeira que fica aderente às paredes da louça. Ricardo fez-lhe compreender que não deviam se tornar pesados à excelente senhora, cuja hospitalidade era oferecida de tão bom coração. Desde esse dia a tampa da manteigueira caiu como a lousa de um túmulo, para não mais se abrir. Posta no meio da mesa ela não era mais do que um símbolo ou um emblema; atestava a decência do almoço, pois na opinião da dona da casa não havia mesa capaz sem manteiga.

No domingo em que estamos, D. Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes. Havia quatro ovos quentes.

— Oh! exclamou Fábio alegremente. A Nanica brilhou desta vez.

— Estes sobraram de uma dúzia que estou guardando para tirar uma ninhada.

— É verdade, minha tia. Havemos de fazer uma sociedade para ficarmos ricos de repente. Conheço um americano que inventou uma máquina de chocar ovos...

— Já sei; para tirar os pintos sem galinha.

— Ora! Isto não vale nada. A minha máquina é cousa mais sublime; olhe, minha tia: mete-se um ovo, um ovo só. Três dias depois abre-se a porta da máquina, e enche-se a capoeira de galos, galinhas e frangos.

— Grandes?

— Pois então? Manda-se vender à cidade a primeira capoeira. Mas como as galinhas antes de saírem da máquina puseram lá os ovos, e estes já estão feitos galinhas, é um não acabar!

A velha ria-se às gargalhadas das pilhérias do sobrinho; e assim iam temperando o almoço com o sal da alegria e do prazer, que é sem dúvida o melhor adubo.

A ligação íntima e sincera que havia entre os dois moços era mais do que amizade, era uma afeição fraternal, que o casamento de Fábio e Luisinha devia mais tarde consagrar. Pela idade, como pela gravidade do caráter e superioridade da inteligência, Ricardo exercia sobre o amigo a doce autoridade de um irmão mais velho: a autoridade do exemplo e do conselho.

Estas relações tinham começado havia seis anos na cidade de São Paulo, onde habitava Ricardo com sua família. No ano em que o talentoso estudante ia concluir o seu curso e formar-se, Fábio, muito mais moço, matriculou-se na faculdade. Apesar dessa circunstância que os devera separar logo no princípio de seu conhecimento, a amizade estreitou-se entre os dois. O meigo sorriso de Luisinha foi naturalmente o fio dourado que teceu essa mútua afeição.

Havia três meses que Fábio se tinha formado. Para ele o prazer que sempre desperta esse dia no coração do estudante, veio travado de saudades. Sua pobreza não lhe permitia realizar o voto mais querido de sua alma; tinha de separar-se de Luisinha, para recolher à corte, ao seio da família. Ia trabalhar na esperança de adquirir uma posição modesta, mas decente, para oferecer à companheira de sua existência. Os dois corações sofreram com a ausência, mas resignaram-se.

Ricardo de seu lado reconhecera que em São Paulo não poderia, apesar de seu talento, obter os recursos indispensáveis para assegurar o futuro da numerosa família que pesava sobre ele, depois da morte de seu pai. Aproveitando a ocasião, veio com Fábio para a corte tentar fortuna.

Estabeleceram-se ambos como advogados. Obtido o escritório, posto o nome na porta e feitos os anúncios, esperaram pelos clientes. Nos três meses decorridos, conseguira Ricardo quatro causas gratuitas, que por grande obséquio lhe arranjara um procurador. Apenas lá de tempos a tempos, uma inquirição, ou algum requerimento, ia ajudando a compensar as despesas.

Os dois amigos suportavam sua pobreza nobremente. Às vezes Fábio, mais desabusado, sustentava umas ideias materialistas, como aquelas que exprimira durante o passeio; mas Ricardo, que não transigia em matéria de escrúpulo e honestidade, combatia tais aberrações do espírito de seu amigo, e destruía a influência nociva que o mal poderoso e laureado exerce sobre as almas cuja têmpera não é bastante forte para resistir-lhe.

A semana passava-se na expectativa ilusória dos clientes que não vinham, ou na meditação de um estudo obrigado e sem estímulos. No sábado, os dois amigos tomavam a gôndola de Andaraí, com o fim de aceitar de D. Joaquina uma hospitalidade oferecida com o maior gosto e satisfação. Para a excelente senhora, enterrada viva naquele retiro, a chegada de Fábio e seu companheiro era uma visita do mundo àquela solidão, donde não saía senão de ano em ano. O contacto daquela mocidade a remoçava; ela escutava com admiração a palavra inspirada do talentoso advogado, ou ria das graças do sobrinho.

Ricardo possuía em São Paulo um cavalo, o Galgo, ao qual muito se afeiçoara. Mudando-se para o Rio de Janeiro não se animara a vendê-lo; trouxe-o consigo. Ignorava quanto é dispendioso na corte o trato de um animal. Sem dúvida seria obrigado a separar-se do Galgo, se Fábio não pedisse à tia para conservá-lo na sua rocinha da Tijuca. Assim pouco se aproveitava o dono do seu cavalo; porém obtinha conservá-lo, esperando melhores tempos.

Os dois amigos partilhavam igualmente os serviços do cavalo, e o Galgo parecia compreender essa comunidade, porque os considerava a ambos como senhores, embora respeitasse mais a Ricardo.

No sábado, quando subiam a serra, um por seu turno montava o Galgo, enquanto o outro ia a pé com a fresca, até que o cavalo tendo chegado à casa, vinha-lhe ao encontro para poupar-lhe um resto de caminho. Na segunda-feira pela manhã, voltando para a cidade, revezavam igualmente.

O domingo era repartido da mesma forma: um desfrutava o passeio da manhã, o outro o da tarde. Se pois o Galgo descansava durante os quatro dias da semana, nos outros fazia sofrível exercício.

Fábio, de gênio descuidado e folgazão, às vezes abusava, fazendo proezas com o Galgo; mas Ricardo coibia as travessuras, moderando o ardor do amigo. Disto nunca resultava a menor desconfiança entre ambos. Nessa boa e verdadeira amizade, um punha em comunhão o sorriso, o outro o conselho; um era a alegria e a esperança, o outro era a consolação e a fé.

Depois do almoço, enquanto a velha foi rezar, como de costume, Fábio tomou a espingarda, Ricardo, sentando-se à janela, abriu o álbum e entreteve-se a desenhar. Primeiramente coloriu a figura do pequeno arbusto, parte de memória, e parte à vista do galho que tinha quebrado.

Enquanto se ocupava com esse trabalho, a mente repassava as recordações da cena recente e da posição em que o surpreendera a moça a cavalo; com essas lembranças vinham de envolta as saudades das pessoas a quem amava, e de quem se achava ausente. Quando as veria para contar-lhes todos esses pequenos incidentes de sua vida, para referir-lhes essa longa história de uma esperança tão ansiada!

Como não se haviam de rir aqueles entes por quem se estremecia, quando soubessem dos beijos ardentes que ele dera na florinha agreste, e da risada desdenhosa que de repente o chamara à realidade!

Passou-lhe pela ideia traçar o quadro de Guida como ele a vira. Sua família teria curiosidade de conhecer essa moça de que Fábio naturalmente havia de contar as travessuras. Insensivelmente o lápis começou a traçar no papel o primeiro e leve esboço do quadro que lhe ficara gravado no espírito plástico.

Ricardo nunca aprendera desenho com mestres da arte. Sentira em si a intuição da forma, e cultivara essa disposição natural, guiado pelas próprias observações. Não teve necessidade de que lhe ensinassem as regras da perspectiva, pois as tinha diante dos olhos nas paisagens que se desdobravam pelas lindas várzeas de São Paulo.

Deus criou três linguagens para o artista: a linguagem da forma, a pintura; a linguagem dos sons, a música; e a linguagem da palavra, a poesia, de todas a mais sublime porque fala não só ao coração, como à inteligência.

Ricardo era um poeta da forma; ele fazia versos com as cores. Suas impressões, debuxava-as sobre o papel em imagens, retratadas ao vivo. Copiava-as da memória, onde ficavam estampadas como em uma lâmina fotográfica; depois a imaginação bordava a lápis com essas recordações algum soneto ou alguma ode, corretos no desenho, brilhantes no colorido.

Os contornos gerais do quadro já estavam delineados; via-se em traço quase desvanecido a moldura da folhagem entrançada de grinaldas amarelas, a estampa do soberbo cavalo isabel, e o lindo perfil da amazona cujo véu se enrolava ao sopro da brisa.

Sentindo que Fábio se aproximava, Ricardo voltou a página do álbum, e disfarçou esboçando figuras grotescas em uma folha solta. Se o amigo visse o quadro, adivinharia quem era a moça; seria necessário referir a cena dos beijos. Ora, Ricardo tinha vexame de contar essa infantilidade de seu coração; e sobretudo a Fábio, que ele considerava como um irmão mais moço. À sua mãe não duvidaria contar, em um momento de ternura, e depois de decorrido algum tempo. Um coração de mulher compreende certas delicadezas, que parecem ridículas ao espírito de um homem; ainda mais quando esse homem é um moço de gênio prazenteiro, como era Fábio.

O resto do dia passou como de costume, repartido entre a conversa, a leitura, o banho, o jantar, e o jogo da paixão de D. Joaquina, a bisca-cega.

À tarde, Ricardo, a quem tocou a vez, arreou o Galgo e foi dar um passeio, enquanto Fábio saía a pé sem destino, em busca de alguma companhia para passar a noite.

Seriam 6½ horas da tarde. Apenas um doce reflexo de ouro tingia o cume das mais altas montanhas. A suavidade do crepúsculo derramava-se na atmosfera. É encantador esse adeus do dia quando se despede da formosa serraria da Tijuca. O céu, despindo o fulgor da luz, mostra a limpidez e transparência do puro azul, seio infindo onde a alma se embebe, como o filho no colo materno.

Ricardo vinha entregue ao enlevo da contemplação da tarde, quando ao dobrar uma volta do caminho achou-se diante de um rancho de moças, que andavam passeando. Entre todas distinguia-se, pelo talhe esbelto e gracioso, uma, vestida de seda escocesa, desde a botina até as fitas do cabelo.

Diante dela corria, saltando e latindo, uma cachorrinha felpuda, muito alva, com brincos de ouro e uma coleira de veludo; mas apenas percebeu o cavaleiro, atirou-se ao Galgo para mordê-lo no jarrete.

Ricardo, tendo reconhecido a Guida, supôs que a cachorrinha era a mesma da história contada por Fábio, a Sofia. Mais aborrecido ficou ainda com o impertinente animal, que investia furioso contra as pernas do cavalo.

A situação nada tinha de agradável; o caminho era estreito; de um lado o despenhadeiro, do outro a montanha cortada a pique. O Galgo, fogoso, e irritado com a insultante ameaça do cão, encrespava-se, lançando fogo pelas narinas. Ricardo, excelente cavaleiro, conseguiu dominar o primeiro ímpeto, e tocando no chapéu, disse para as moças que se tinham posto ao abrigo subindo a ribanceira da montanha:

— Acho bom chamar o cãozinho!

A Guida deu um estalo com os dedos:

— Cá, Sofia.

— Deixe! disseram as outras rindo.

Pensavam que Ricardo tinha medo do cavalo, e queriam divertir-se com a queda. Não se lembravam, que naquele lugar, à borda de um despenhadeiro, podia ser fatal.

Sofia ouvira a voz da senhora; mas com o seu privilégio de cão mimoso desobedeceu; e investiu contra o Galgo com maior sanha. Ela estava acostumada àquele brinquedo; já tinha mordido o jarrete de muitos cavalos, atirando ao chão os cavaleiros, para divertimento da senhora e suas amigas.

Ricardo, vendo a inutilidade de sua recomendação, deu largas à cólera do Galgo. O brioso cavalo juntou, e atirando-se para a frente de um salto, arremessou o couce. A cachorrinha foi cair no fundo do precipício, sem tempo sequer de soltar um gemido de dor.

— Sem dúvida morreu! disse uma das moças.

— A culpa é dela. Se não fosse tão teimosa! observou Guida.

Passando pelas senhoras, Ricardo cortejou:

— Queiram desculpar, minhas senhoras; este cavalo é um provinciano; ainda não tem maneiras cortesãs.

À noite, antes de dormir, Fábio dava risadas gostosas ouvindo o episódio do passeio.