Versos da mocidade (Vicente de Carvalho, 1912)/Ardentias/Canto dos corsarios

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CANTO DOS CORSARIOS

O’ vasto mar perdido no horizonte,
Movel planicie onde em tumulto as vagas
O alvo lençol de espumas dezenrolam!

Por sobre a tua solidão sem termos
Nossa bandeira, simbolo da força,
Paira com vôos triumfantes de aguia.

O’ mar, dezerto palpitante e enorme,
Patria de nossas almas erradias!

Sobre teu dorso movediço corre
Nossa vida selvajem, repartida
Entre o furor sangrento das batalhas
E os descuidos da paz no mar varrido;
Entre o raivar dos temporais desfeitos
E o preguiçar das longas calmarias...
E sempre, á vista de infinitos ermos,
O imenso orgulho de sentir-nos fortes,
O altivo gosto de saber-nos livres...

Certo não podes tu, mizero escravo
Que empalideces ante o horror das ondas
Batidas do tufão; nem tu, por certo,
Crapulozo fidalgo esmorecido
Ao pezo das orjías; — compreendel-as
As emoções com que sacodem a alma
Os perigos da luta; nem sentil-o,
O capitozo encanto desta vida
Passada entre as procelas rugidoras
Nas brutas contorções do mar sanhudo...

Aos caprichos do vento entregue o rumo,
Velas abertas como grandes azas,
Proa cortando as aguas em tumulto,

Assim vogamos, nómades e livres,
Pela infinita solidão dos mares
— Chão movediço onde nem ficam pégadas...

Que é que buscamos? O perigo e a luta;
O estrondo, o fumo, a gloria das batalhas,
O sibilar sinistro dos pelouros,
O coriscar das laminas de espada;
E os grandes golpes de que o sangue espirra,
E sobre os ais planjentes dos que morrem
O trovejar dos cantos de vitoria!

A morte, vista frente a frente, a meio
Da aceza furia do combate, certo
Assusta o mole coração dos fracos,
Descóra o rosto anciozo do cobarde...
A nós, porém, aviva o sangue e os olhos,
Enrija o coração, dá força ao braço.

Não tememos a morte que afrontamos
Cantando e rindo no fragor da luta,
Lutando a braços com o furor das ondas.

Si tantas vezes de tão perto a vemos!
Vemol-a tal qual é, tal qual se mostra:
Continuação do descuidado sono
Que dormimos depois de uma batalha,
Os fatigados membros descançando
Sobre os trofeus sangrentos da vitoria...
Nela, um dia, por fim, descançaremos
Sobre os louros da vida...

       E é bom, e é belo
Nas derradeiras convulsões, morrendo,
Matar, vencer ainda! E, como a rocha
Que se despenha do alcantil de um morro
Róla arranhando o chão, lascando troncos,
Para a sombra do abismo onde se afunda
Arrastando um cortejo de destroços;
Assim, é belo sucumbir lutando,
Morrer vibrando um derradeiro golpe,
E, ao cair, arrastar na propria queda,
O corpo e a vida do inimigo morto!

Pois cumpre-nos morrer, pois que devemos
Pagar um dia esse tributo ao nada,
Venha quando quizer a incerta morte:
Nós, sem medo, esperamol-a a pé firme.

E é bem melhor a morte quando fere
De chofre, em cheio, o peito de um valente
Do que quando se achega rastejante
Do solitario leito de um enfermo.

Emquanto o enfermo, estenuado e pávido,
Gota a gota distila o fel da vida
E suspiro a suspiro o alento ezala,
Num largo sopro e num arranco heroico
Nossa vida se esvái, e nosso espirito
O vôo eleva para a eternidade.

Do que inutil morreu no fôfo leito
— Escravo sempre — o livido despojo
Na estreita cova ficará cativo
Té que o liberte a lama, apodrecendo-o.

A nós, quando caimos, na surpreza
De um belo golpe, de uma bala rapida,
Na gloria do combate, na apoteóse
Dos clarões da metralha; a nós, vencidos,
Como rubra mortalha, o proprio sangue,

Por sepultura, o seio azul do oceano,
Por adeus e oração, estas palavras
Dos que deixámos sobre as ondas: Bravos,
Eles morreram como os bravos morrem!