Viagens na Minha Terra (1846)/XII

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CAPITULO XII.

 

De como Joanninha desimbaraçou a meada da avó, e do mais que aconteceu. — Que casta de rapariga era Joanninha. — Dá o A. insigne próva de ingenuidade e boa fe confessando um grave senão do seu Ideal. Insiste porém que é um adoravel deffeito. — Em que se parece uma mulher desannellada com um Sansão tosquiado. — Pasmosas monstruosidades da natureza que desmentem o credo velho dos peralvilhos. — Os olhos verdes de Joanninha. — Religião dos olhos pretos strenuamente professada pelo A. Perigo em que ella se acha á vista de uns olhos verdes. — De como estando a avó e a neta a conversar muito de mano a mano, chega Frei Diniz e se interrompe a conversação. — Quem era Frei Diniz.

 

— 'Aqui estou, minha avó: é a sua meada?.. eu lh'a indireito:’ — disse Joanninha sahindo de dentro, e com os braços abertos para a velha. Apertou-a n’elles com innefavel ternura, beijou-a muitas vezes, e tomando-lhe o novello das mãos n’um instante desimbaraçou o fio e lh’o tornou a intregar.

A velha surria com aquelle surriso satisfeito que exprime os tranquillos gosos de alma, e que parecia dizer: ’Como eu sou feliz ainda, apezar de velha e de cega! Bemdito sejais, meu Deus.’

Ésta última phrase, ésta bençam de um coração agradecido, que spira suavemente para o ceo como sobe do altar o fummo do incenso consagrado, ésta última phrase trasbordou-lhe e sahiu articulada dos labios:

— 'Bemditto seja Deus' minha filha, minha Joanninha, minha querida neta! E Elle te abençoe tambem, filha!’

— 'Sabe que mais, minha avó? Basta de trabalhar hoje, são horas de merendar'.

— 'Pois merendemos'.

Joannninha foi dentro da casa, trouxe uma banquinha redonda, cubriu-a com uma toalha alvissima, pôs em cima fructa, pão, queijo, vinho, chegou-a para aopé da velha, tirou-lhe o novello da mão, e arredou a dobadoira. A velha comeu alguns bagos de um cacho doirado que a neta lhe escolheu e pôs nas mãos, bebeu um trago de vinho, e ficou callada e quieta, mas ja sem a mesma expressão de felicidade e contentamento socegado que ainda agora lhe luzia no rosto.

As animadas feições de Joanninha reflectiam sympathicamente a mesma alteração.

Joanninha não era bella, talvez nem galante siquer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em portuguez, mas era o typo da gentileza, o ideal da spiritualidade. N’aquelle rosto, n’aquelle corpo de dezeseis annos, havia por dom natural e por uma admiravel symetria de proporções toda a elegancia nobre, todo o desimbaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da côrte e da mais escolhida companhia vêem a dar a algumas raras e privilegiadas creaturas no mundo.

Mas n’esta foi a natureza que fez tudo, ou quasi tudo, e a educação nada ou quasi nada.

Poucas mulheres são muito mais baixas, e ella parecia alta: tam delicada, tam elancée era a fórma airosa de seu corpo.

E não era o garbo teso e aprumado da perpendicular miss ingleza que parece fundida de uma so peça; não, mas flexivel e ondulante como a hástea joven da árvore que é direita mas dobradiça, forte da vida de toda a seiva com que nasceu, e tenra que a estalla qualquer vento forte.

Era branca, mas não d’esse branco importuno das loiras, nem do branco terso, duro, marmoreo das ruivas — sim d’aquella modesta alvura da cera que se illumina de um pallido reflexo de rosa de Bengalla.

E d’outras rosas, d’estas rosas-rosas que denunciam toda a franqueza de um sangue que passa livre pelo coração e corre á sua vontade por artérias em que os nervos não dominam, d’essas não as havia n’aquelle rosto: rosto sereno como é sereno o mar em dia de calma, porque dorme o vento... Alli dormiam as paixões.

Que se levante a mais ligeira brisa, basta o seu macio bafejo para increspar a superficie espelhada do mar.

Sussurre o mais ingenuo e suave movimento d’alma no primeiro acordar das paixões, e verão como se sobresaltam os musculos agora tam quietos d’aquella face tranquilla.

O nariz ligeiramente aquilino: a bôcca pequena e delgada não cortejava nem desdenhava o surriso, mas a sua expressão natural e habitual era uma gravidade singela que não tinha a menor aspereza nem doutorice.

Ha umas certas boquinhas gravesinhas e espremidinhas pela doutorice que são a mais abhorrecidinha coisa e a mais pequinha que Deus permitte fazer ás suas creaturas femeas.

Em perfeita harmonia de côr, de fórma e de tom com a fina gentileza d’estas feições, os cabellos de um castanho tam escuro que tocava em preto, cahiam de um lado e outro d Em perfeita harmonia de côr, de fórma e de tom com a fina gentileza d’estas feições, os cabellos de um castanho tam escuro que tocava em preto, cahiam de um lado e outro da face, em tres longos, deseguaes e mal inrolados canudos, cuja ondada spiral se ia relaxando e diminuindo para a extremidade, até lhe tocarem no collo quasi lisos.

Em stylo de arte — no stylo da primeira e da mais bella das bellas artes, a toilete — este é um defeito; bem sei.

Que votos, que novenas se não fazem a San’Barometro nas vésperas de um baile para lhe pedir uma atmosphera sêcca e benigna que deixe conservar, até á quarta contradança ao menos, a preciosa obra de carrapito e ferro quente, de macassar e mandolina que tanto trabalho e tanto tempo, tantos sustos e cuidados custou!

Bem sei pois que é defeito, é, será... mas que adoravel defeito! Que deliciosas imagens que excita de abandôno — passe o gallicismo — de confiança, de absoluta e generosa renúncia a todo o caprixo, de perfeita e completa abdicação de toda a vontade propria!

Em geral, as mulheres parecem ter no cabello a mesma fé que tinha Sansão: o que n’elle se ia em lh’os cortando, cuidam ellas que se lhes vai em lh’os desannellando? Talvez; e eu não estou longe de o crer: canudo inflexivel, mulher inflexivel.

Os peralvilhos negam a existencia do tal canudo in rerum natura, dizem que é como a ave phenix que nasceu de nossos avós não saberem grego. Eu não digo tal, porque tenho visto descuidar-se a natureza em pasmosas monstruosidades.

Emfim suspendâmos, sem o terminar, o exame d’esta profunda e interessante questão. Fica addiada para um capitulo ad hoc, e voltemos á minha Joanninha.

Cahiam d’um lado e de outro da sua face gentil aquelles graciosos anneis; e o resto do cabello, que era muito, ia intrançar-se, e inrolar-se com singela elegancia abaixo da coroa de uma cabeça pequena, estreita e do mais perfeito modêlo.

As sobrancelhas, quasi pretas tambem, desenhavam-se n’uma curva de extrema pureza; a as pestanas longas e assedadas faziam sombra na alvura da face.

Os olhos porêm — singular capricho da naturesa, que no meio de toda esta harmonia quiz lançar uma nota de admiravel discordancia! Como poderoso e ousado maestro que, no meio das pbrases mais classicas e deduzidas da sua composição, atira derepente com um som agudo e stridulo que ninguem espera e que parece lançar a anarchia no meio do rythmo musical... os dillettantes arripiam-se, os professores benzem-se; mas aquelles cujos ouvidos lhes levam ao coração a musica, e não á cabeça, esses estremecem de admiração e enthusiasmo... Os olhos de Joanninha eram verdes... não d’aquelle verde descorado e traidor da raça felina, não d’aquelle verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate.

São os mais raros e os mais fascinantes olhos que ha.

Eu, que professo a religião dos olhos pretos, que n’ella nasci e n’ella espero morrer... que alguma rara vez que me deixei inclinar para a heretica pravidade do ôlho azul, soffri o que é muito bem feito que soffra todo o renegado... eu firme e inabalavel, hoje mais que nunca, nos meus principios, sinceramente persuadido que fóra d’elles não ha salvação, eu confesso todavia que uma vez, uma unica vez que vi dos taes olhos verdes, fiquei halucinado, senti abalar-se pelos fundamentos o meu catholicismo, fugi escandalizado de mim mesmo, e fui retemperar a minha fé vacillante na contemplação das eternas verdades, que so e unicamente se incontram aonde está toda a fé e toda a crença... n’uns olhos sincera e lealmente pretos.

Joanninha porêm tinha os olhos verdes; e o effeito d’esta rara feição n’aquella physionomia á primeira vista tam discordante — era em verdade pasmosa. Primeiro fascinava, halucinava, depois fazia uma sensação inexplicavel e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: porfim pouco o pouco, estabelecia-se a corrente magnetica tam poderosa, tam carregada, tam incapaz de solução-de-continuidade, que toda a lembrança de outra coisa desapparecia, e toda a intelligencia e toda a vontade eram absorvidas.

Resta so accrescentar — e fica o retrato completo, um simples vestido azul escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas em cothurno. O pé breve e estreito; o que se adivinhava da perna admiravel.

Tal era a ideal e espiritualissima figura que em pé, incostada á banca onde acabava de comer a boa da velha, contemplava, n’aquelle rosto macerado e apagado, a indicivel expressão de tristeza que elle pouco a pouco ía tomando e que toda se reflectia, como disse, no semblante da contempladora.

A velha suspirou profundamente, e fazendo como um esfôrço para se distrahir de pensamentos que a affligiam, buscou incertamente com as mãos o novêllo da sua meada:

— 'O meu novêllo, filha: não posso estar sem fazer nada, faz-me mal.'

— 'Conversemos, avó.'

— 'Pois conversemos; mas dá-me o meu novêllo. Não sei o que é, mas quando não trabalho eu, trabalha não sei o que em mim que me cansa ainda mais. Bem dizem que a ociosidade é o peior lavor.'

Joanninha deu-lhe o novêllo e pôs-lhe a dobadoira a geito.

A velha sentiu o que quer que fosse na mão, levou-a á bôcca e pareceu beija-la, depois disse:

— 'Bem vi, Joanninha!'

— 'O quê, minha avó? que viu?'

— 'Vi, filha, vi.., sem ser com os olhos que Deus me cerrou para sempre — louvado seja Elle por tudo! — vi, sentindo, ésta lagryma tua que me cahiu na mão, e que ja ca está no peito por que a bebi, Joanna. Oh filha, ja! é muito cedo para começar, deixa isso para mim que estou costumada: mas tu, tu com deseseis annos e nenhum desgôsto!'

— 'Nenhum, avó! E estamos sosinhas nós duas n'este mundo, minha avó n’esse estado, eu n’esta edade, e...’

— 'E Deus no ceu para tomar conta em nós... Mas que é? olha, Joanna: eu sinto passos na estrada vê o que é.'

— 'Não vejo ninguem.'

— 'Mas oiço eu... Espera... é Fr. Diniz; conheço-lhe os passos.'

Mal a velha acabava de pronunciar este nome, surdiu, de traz de umas oliveiras que ficam na volta da estrada, da banda de Santarem, a figura sêcca, alta e um tanto curvada de um religioso franciscano que abordoado em seu pau tosco, arrastando as suas sandalias amarellas e tremendo-lhe na cabeça o seu chapeo alvadio, vinha em direcção para ellas.

Era Fr. Diniz comeffeito, o austero guardião de San’Francisco de Santarem.