Histórias diversas (anos 70)/6

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UMA PEQUENA FADA



DONA BENTA e Narizinho foram à horta ver o tio Barnabé plantar mudinhas de morango numa leira muito bem estercada.

— Não estão juntas demais, José? perguntou Dona Benta, que não gostava de plantas muito juntas. O negro velho endireitou o corpo, botou as mãos na cintura e, depois de correr os olhos pelas três carreiras de mudinhas já plantadas, disse:

— A mó que não, Sinhá. Como este ano eu botei "menas" esterco, a folharada vai ser menor; por isso juntei um tiquinho mais as mudas.

Dona Benta, que sempre teve muita confiança no tio Barnabé, deixou que ele fizesse como entendia. Depois da visita à horta, ela e Narizinho foram ao pomar e sentaram-se no banco tosco que Pedrinho e o Visconde haviam feito junto ao tronco da pitangueira da Emília.

— Por onde andará aquela diabinha? — indagou Dona Benta. — De manhã passou por mim como um corisco e afundou no laboratório do Visconde. Andam tramando qualquer coisa.

Narizinho não disse nada; estava distraída, a espantar com uma palhinha um grupo de formigas ruivas que se tinham atracado a uma pobre minhoca. Sem interromper a "salvação", disse:

— Vovó: ando desconfiada de uma coisa...

— De que, minha filha?

— Ando cismando que Emília é uma fada que veio a este mundo sob forma de boneca e depois virou gente. Tudo em Emilia são disfarces — até a vara de condão de todas as fadas.

— Não estou entendendo, minha filha — disse Dona Benta erguendo os óculos para a testa.

— Pois eu estou; e estou cada vez mais convencida de que o "faz-de-conta" de Emília é uma varinha de condão disfarçada. Que diferença há entre o "faz-de-conta" e uma vara mágica? Preste atenção nisso, vovó. Naquela aventura de Hércules com o javali do Erimanto[1], por exemplo, Hércules estava perdido. Quando o javali avançou contra ele com ímpeto de avalancha, o coitado só dispunha duma arma: as cinco flechas de ponta de bronze que tinha no carcás. A senhora sabe o que é carcás, não?

Dona Benta riu-se.

— Sei, minha filha; é o canudo, ou recipiente, que os antigos arqueiros levavam à cintura para o transporte das setas. E você sabe o que é arqueiro?

Narizinho não sabia.

— É o flecheiro antigo o homem, ou o soldado, armado de arco e flechas, nos tempos em que ainda não havia arma de fogo. A palavra arqueiro vem de arco, como espingardeiro vem de espingarda, carabineiro vem de carabina, etc. Mas continue a história. Hércules estava só com cinco setas no carcás...

— ... e todas "humanizadas", isto é, sem pontas. Em certa ocasião Emilia deu de ter dó das vítimas de Hércules e "humanizou" todas as suas flechas, isto é, quebrou-lhes a ponta. De modo que quando o javali investiu contra Hércules e ele o recebeu com a clava e a clava rachou em vinte pedaços e o grande herói teve de recorrer às flechas, estaria irremediavelmente perdido se não fosse o "faz-de-conta" de Emília. O Visconde me contou tudo exatinho como foi. Assim que se viu sem a clava, Hércules deu tremendo salto para trás e botou uma flecha no arco e atirou. A flecha bateu no peito da fera, plaf, e caiu no chão, não entrou na carne. Hércules deu outro pulo para trás e desferiu segunda flecha — e foi a mesma coisa: a flecha bateu no javali e caiu no chão. Com quatro flechas aconteceu a mesma coisa, e só quando ele ia lançar a quinta e última flecha, é que Emília recordou que havia "humanizado" todas as cinco e portanto o grande herói estava perdido, ali diante do mais feroz javali que ainda apareceu no mundo e sem nenhuma arma para enfrentá-lo, nem um canivete! Vê que situação horrível, vovó?

Dona Benta achou que realmente a situação de Hércules não era nada boa, e que a ex-boneca havia cometido uma grande imprudência. — Tudo neste mundo tem limites. Emília excedeu-se. Hei de fazer-lhe um sermãozinho sobre os perigos do excesso. E depois, que aconteceu?

— Aconteceu que quando Hércules ia lançar a quinta e última flecha, Emília teve a sorte de lembrar-se da "humanização" e gritou, no instantinho em que a flecha ia escapando do arco: "Faz de conta que essa tem ponta!" e a flecha adquiriu ponta e matou o javali!... Não acha isso maravilhoso, vovó? Não acha que coisas assim só as fadas conseguem por meio de suas varas de condão?

Dona Benta franziu a testa e ficou pensando; depois disse:

— Você tem razão, minha filha. Coisas assim só as fadas conseguem realizar. Não há dúvida...

— Logo, Emília é uma fada, vovó! Logo, o tal "Faz-de-conta" que ela tanto usa é uma vara de condão disfarçada...

— Sim, uma vara verbal...

— ... porque as varas de condão podem ter todas as formas, e não só a de vara — pelo menos eu penso assim.

— E pensa muito bem, minha filha. A vara de condão de Aladino era uma lâmpada, a de certos mágicos é um anel, a dos sacis parece que é a carapucinha...

Calaram-se as duas. A minhoca já estava livre das formigas, mas continuava ali mesmo, a revolver-se em movimentos morosos. "Parece que está ferida" — disse Narizinho. "Deve estar envenenada" — observou Dona Benta. "Estas formiguinhas, quando mordem, injetam ácido fórmico. Para nós, gente, a dose de ácido fórmico duma picada de formiga não causa mais que um ardor na pele; mas para uma minhoca deve ser algo terrível, e com certeza mortal. Observe bem essa minhoca, Narizinho, para ver se ela morre.

Narizinho voltou ao assunto do "faz-de-conta" da Emília.

— E há ainda uma coisa, vovó, que me faz crer que Emília é uma fadinha disfarçada. Às vezes deita-se aqui debaixo desta árvore e fica horas lidando com um bichinho — paquinha, vaquinha, besouro e até lagarta. Conversa com eles como se fossem gente; entende tudo quanto dizem. Ora, isso é coisa de fada. Eu também brinco e falo com os insetos — mas eles não me entendem, nem eu entendo nada do que eles dizem. Emília entende tudo! Ela é fada, vovó, e eu estou começando a ter medo ...

— Por que medo, minha filha? Emília nasceu aqui e aqui se desenvolveu, e hoje é a minha neta número 3. Não há razão nenhuma para termos medo dela.

— Tenho medo de que fique poderosa demais...

Estavam nesse ponto da conversa quando Emília apontou lá adiante; vinha arrastando o Visconde pelas barbas de milho. O pobre sábio resistia como cabrito levado para a feira.

— Que será aquilo? — murmurou Dona Benta. — Judiação, tratar o pobre Visconde assim...

Ao dar com Dona Benta e Narizinho sentadas na raiz da sua pitangueira, Emilia largou das palhas do Visconde e este deixou de resistir à moda dos cabritos — aproximaram-se os dois.

— Que é isso, Emília? Que judiação é essa com o pobre Visconde?

Emília botou as mãos na cintura e, muito vermelha e empinadinha para trás, disse:

— Pois é este estupor que me está escondendo qualquer coisa. Cada vez que me aproximo do seu laboratório, fecha uma gaveta e disfarçadamente diz: "Olhe que nuvem bonita lá no céu, com forma de elefante!" Elefante é o nariz dele. E eu então resolvi trazê-lo perante a senhora para que me confesse. Como dona do sítio, a senhora não pode tolerar que alguém ande aqui com atitudes misteriosas.

Narizinho deu uma grande risada.

— Ora, Emilia! Pois então uma criatura que possui uma verdadeira vara de condão, como é o "faz-de-conta", não consegue descobrir o que um pobre viscondinho anda fazendo?

— É que o meu "faz-de-conta" não anda funcionando muito bem agora. Parece que se desarranjou por dentro, como a bota de sete léguas de Polegar ...

E você quer que vovó arranque do Visconde a confissão do que ele está fazendo?

— Exatamente...

Dona Benta riu-se do caso e com o seu ar bonachão interpelou o sabugo.

— Vamos, Visconde, conte à Emília o que está fazendo, já que não está fazendo nada de mal. Se há no mundo uma criatura incapaz de fazer qualquer coisa de mal, é o Visconde de Sabugosa. Todos sabemos disso.

O Visconde não ofereceu nenhuma resistência; e com a maior naturalidade foi contando que havia descoberto o "Periscópio do Invisível"; e que guardara segredo apenas por desejar fazer uma surpresa a todos.

— Que história de "Periscópio do Invisível" é essa, Visconde?

— Ah, é uma invenção deveras maravilhosa. Por meio do meu periscópio qualquer pessoa pode ver as mil coisas que há ou que se passam neste mundo e nossos olhos não vêem.

— É verdade mesmo, Visconde?

Dona Benta, apesar de afeita às maravilhas que se passavam em sua casa, não deixou de sentir um pequeno frio na espinha, quando o Visconde, um sábio incapaz de mentir, respondeu com voz firme: "É!" E voltando-se para sua neta disse:

— Você descobriu hoje uma fada aqui no sítio — e agora aparece-me um mágico ...

— Fada aqui? — berrou Emília. — Narizinho descobriu alguma fada aqui? Duvido!... Duvido e não admito! Ela que venha com sua vara de condão, que eu ...

— Que eu o que, Emilia?

— Que eu... Não digo. Ela que venha para ver! Fada aqui! Olhe o desaforo!...

Narizinho cochichou ao ouvido de Dona Benta: "Está vendo, vovó? Esse acesso de ciúme de Emília é prova absoluta de que ela é mesmo o que eu digo: uma fada, e das boas. Não quer saber de nenhuma rival por aqui."

Desde esse dia Dona Benta passou a olhar para a ex-boneca com certo ar de desconfiança. Quem sabe se Emília não era realmente uma fada?

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Leia os 12 Trabalhos de Hércules.