Histórias diversas (anos 70)/7

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O PERISCÓPIO


O VISCONDE DE SABUGOSA era um sábio; mas que também fosse um inventor, isso o mundo só ficou sabendo no dia em que ele apareceu com uma "surpresa". Emilia bem que desconfiou, e o andou espionando para ver se descobria por que motivo ele se fechava em seu laboratorinho durante horas e horas, isso durante semanas. Mas afinal o mistério se esclareceu: o Visconde estava trabalhando na invenção dum periscópio para enxergar o invisível!...

— Que história é essa?

— Ah, uma coisa muito séria e importante. O Visconde havia partido de uma idéia muito original, que era a seguinte. O mundo que nos rodeia está cheio de coisas visíveis e invisíveis. As visíveis nós as vemos com os nossos olhos; mas as invisiveis só poderão ser vistas por meio de um invento — e pôs-se a inventar o tal periscópio. E inventou-o, e um dia em que todos estavam na varanda apareceu com um embrulho debaixo do braço. Chegou, tossiu o pigarrinho e disse:

— Respeitável público: aqui tenho comigo a mais prodigiosa invenção que já se fez neste mundo: o Periscópio do Invisivel, ou o instrumento que nos permite ver as mil coisas invisíveis que nos rodeiam, — e começou a desembrulhar o pacote. Saiu uma caixa de papelão. E de dentro da caixa de papelão, um instrumento com forma de canudo.

— Aqui está a minha invenção — disse ele. — Compõe-se deste canudo, que eu largo perto do que quero ver; e deste fio de arame que eu desenrolo e ligo a este binóculo...

— O meu binóculo! — exclamou Dona Benta. — Tinha desaparecido. Onde o encontrou, Visconde?

— No galinheiro. Mas estava sem vidros e eu apenas aproveitei a armação. O que há dentro dele são coisas feitas por mim e fazem parte do invento.

Pedrinho, que não estava ali, chegou nesse instante, muito vermelho de sol, chupando uma cuia de laranja-lima. Ao ver o binóculo gritou:

— O meu binóculo! Onde estava? Há quanto tempo ando procurando o meu binóculo...

— Seu, não! Dobre a língua. O binóculo é de vovó — protestou Narizinho.

Dona Benta interveio para evitar celeuma: — Pedrinho está certo. O que é meu é dele também."

— Mas onde estava? — insistiu o menino, e quando soube que o Visconde o havia encontrado no galinheiro, debaixo da palha de um ninho de galinha, fulminou Emília com os olhos. Quem poderia ter escondido lá o binóculo senão ela? Sempre que brigava com alguém, a vingancinha de Emília era essa: esconder os objetos de mais estimação do "inimigo".

O Visconde falou meia hora sobre a sua invenção, e ia entrar na parte puramente científica quando Emília o interrompeu:

— Isso fica para depois. Agora o que queremos é a demonstração na batata! Mostre-nos uma coisa invisível, senão eu já escangalho com essa joça.

— Vê, Sinhá, como está ficando esta "rainha do mundo"? — disse tia Nastácia, que acabava de entrar com dois frangos na mão, para saber qual deles matava. "O plimu ou o rode?"

Dona Benta escolheu o frango que ia ser vítima da fome de seus netos e a negra se retirou, fazendo para Emília o gesto de chinelada no traseiro, enquanto a ex-boneca lhe punha a língua. Em seguida, voltando ao assunto do periscópio, a diabinha berrou: — Demonstração! Queremos a demonstração do invento!

O Visconde pediu que escolhessem o que queriam ver, e cada qual quis uma coisa. A idéia vitoriosa foi a de Narizinho.

— Já ouvi falar que onde há chapéu-de-sapo há também por perto anõezinhos invisíveis.

— Essa idéia é minha — reivindicou Emília. — Eu tive a intuição disso e agora podemos tirar a prova. Resta que haja algum chapéu-de-sapo no pomar.

— Perto da cocheira da vaca mocha nasceram muitos esta noite — disse Pedrinho. Passei por lá ainda agorinha e vi.

— Pois vamos ver isso — disse o Visconde, arrumando o canudo, o binóculo e o fio na caixa de papelão.

E lá se foram todos rumo à cocheira da vaca mocha, que ficava no fim do pomar. De passagem Pedrinho apanhou e descascou várias laranjas-limas, cortou-as e ofereceu uma cuia a cada um.

— Como Pedrinho está amável! — observou Dona Benta, mas Emília desmascarou incontinenti a amabilidade do menino: "Ele gosta da cuia da ponta, por ser mais doce, por isso é que é tão oferecido em descascar laranjas: meio de se regalar só com as cuias da ponta."

Pedrinho apenas disse: "Peste!"

Chegados lá perto da cocheira da vaca mocha, viram logo um bonito grupo de chapéus-de-sapo muito perfeitinhos, brotados naquela noite.

— Ótimo! — exclamou o Visconde. — Se a idéia de Emília está certa, havemos de ver por aqui muitos anõezinhos — e desembrulhou o pacote; colocou o canudo no chão, apontado para os cogumelos, e estirou o arame por uns vinte metros de distância. Não podemos ficar muito perto, senão o invisível se espanta. — Acomodaram-se todos debaixo duma árvore, e Pedrinho fez uma armação de dois paus de gancho, onde colocou o binóculo na altura mais cômoda para o observador. E ainda arrumou uns tijolos empilhados, para o observador sentar-se — ou ficar de pé em cima, no caso de ser do tamanhinho da Emília.

— Pronto! Podemos começar, e quem vai ver primeiro sou — gritou a ex-boneca.

— É vovó! — protestou Narizinho. — Primeiro os mais velhos. Venha ver, vovó.

Dona Benta espiou pelo binóculo e não viu coisa nenhuma; o mesmo sucedeu com tia Nastácia. "Nossa vista está tão estragada, que nem com invenções do Visconde não vemos nada." Chegou a vez de Narizinho, que era a mais velha depois de tia Nastácia — mas Emília já estava grudada no binóculo e a berrar que nem uma louca: — Estou vendo o número dos números! Sete anõezinhos — não! Sete sacizinhos de carapuça vermelha e pito aceso na boca, sentados, de pernas cruzadas, debaixo dos chapéus-de-sapo, que também são sete. Estão fumando e conversando. Há um que parece o chefe. Usa faixa na cintura — deve ser o distintivo. Que amorecos!...

Todos estavam ardendo por ver também, mas Emília não largava do binóculo, e às vezes até sapateava de gosto. — Briga! O chefe agarrou um pelas orelhas e sacudiu-o, e ele reagiu. Está começando um fecha. Parece que se dividiram em dois partidos — três dum lado e quatro do outro. Não consigo ouvir o que dizem, mas deve ser desaforo do bom. O chefe bate com o pé no chão e pede ordem...

— Como consegue bater com o pé, tendo um pé só? — perguntou Narizinho.

— Dá pulinhos — explicou Emília, sem largar o binóculo. — E agora o chefe agarrou um e enfiou-o dentro dum chapéu-de-sapo. Ah!... Estou entendendo. Os chapéus-de-sapo são as casinhas deles. O chefe está trancando todos, um por um, nas respectivas casinhas. Já trancou cinco, faltam só dois. Trancou o último...

— Isto também é demais! — gritou Narizinho arrancando Emília do binóculo. — Tudo no mundo é para ela, só para ela...

Mas Emilia não queria largar do binóculo, de modo que a ele se agarrou com unhas e dentes. E como o menino também viesse ajudar Narizinho, o puxa-que-puxa escangalhou com o periscópio. Quando conseguiram desgrudar Emília e foram espiar, não viram coisa nenhuma, "e me vai dar um trabalhão para reconstruí-lo" — disse o Visconde.

— Que pena! — Exclamou Pedrinho muito desconsolado. — Tanto que eu queria ver também e a "peste" não deixou...

Emília, com medo da indignação geral, tinha subido à pitangueira como uma macaquinha, e lá estava a comer pitangas e a jogar os caroços na cabeça dos outros. O caso era de uma boa surra, mas como só a ex-boneca havia visto os sacis e todos estavam ansiosos por ouvir todas as informações possíveis sobre essas invisíveis criaturinhas, o remédio foi engolir a "gana de esganá-la" e vieram com agradinhos.

— Emília, desça, venha ver que linda borboleta azul sentou aqui — gritou Narizinho.

— E este vaga-lume dos grandes que eu achei — gritou Pedrinho.

Até o Visconde adulou-a, dizendo: Em menos de meia hora conserto o periscópio. O estrago foi menor do que pensei.

Emília afinal desceu, ainda com uma pitanga na boca. Desceu e começou:

— O remédio, agora que não há mais periscópio, é se contentarem com o que eu vi.

— Conte, conte o que você viu, amor! — pediram todos, trincando os dentes.

E ela, muito lampeira:

— Eram sete sacizinhos que moravam em sete chapéus-de-sapo, cada qual mais espertinho, e marotinho, e engraçadinho...

Tia Nastácia, que ia passando com os temperos colhidos na horta para o jantar, sacudiu a mão em gesto de palmada.

— E não vai também umas palmadinhas no traseirinho?

Emília botou-lhe um palmo de língua.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.