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"Doida não!" Antes vítima/Justificando o Snr. Dr. Alfredo da Cunha

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Justificando o Snr. Dr. Alfredo
da Cunha
 

 

Principiei êste livro atacando na pessoa de um homem ilustre ó prejuízo dos preconceitos decadentes. É justo que acabe por justificar os actos sem desprimor para o individuo.

Não há incoerência nesta dupla apreciação. A dualidade ou a complexidade de cada ser, admite para cada um sua forma de julgamento relativo e especial. A tolerância é o fio da justiça. Ambas devem prevalecer no julgamento profundo, consciencioso e nobre das pessoas, dos seus actos e da origem que os precipita.

E desde que essa origem não é, afinal, da responsabilidade exclusiva dos individuos, fica cada qual restituido á consideração merecida pelos atributos que públicamente o distinguem.

 
 

Uma tése carece sempre de um sólido fundamento. E um sólido fundamento tem de partir de factos positivos. O que torna positivos os factos, são as realidades. E as realidades, revestidas de circunstancias emocionantes, são as que chamam a si as atenções, que fixam os espíritos, que despertam as curiosidades e, emfim, obrigam as massas sociais a pensar e a profundar causas e efeitos.

É difícil fazer interessar o nosso público por coisas profundas e graves. A gente portuguesa agita-se muito e pensa pouco, ou pensa mal, em maioria. As questões profundas não prendem o seu espirito que é tão volúvel como ligeiro. Só envolvendo essas coisas profundas em frioleiras, escândalo, casos ruidosos, é que se forçam a entrar no campo que mais necessário se torna cultivar.

Poderia este caso ser discutido indirectamente, disfarçá-lo em novela ou romance. Há quem tema as consequências a que me sujeito, expondo-me à indignação e á revolta de uma individualidade de alto prestigio financeiro, jornalístico e intelectual que poderia desencadear qualquer perseguição sobre uma combatente destemida, mas indefeza.

Realmente a tarefa é arriscada. Mas é por isso mesmo que mais me atrai. E assim o temperamento genuino dos combativos. Desde que se convencem de que tiram maior partido da sementeira idealista, não vacilam em fazer seja de quem fôr o alvo do seu apostolado.

 
 

Não me rejubila antes me confrange referir-me a pessoas que um lance de dôres conflituosas lançou na onda dos comentários públicos. Mas vou provar como tantos prejuízos são afinal compensados, sem submergir o valor e consideração a que cada qual tem direito.

A discussão dêste caso agita curiosidades. Essa curiosidade vai ao encontro das ideias que o caso suscita. Sendo o seu efeito de proveito social, promove reacções de justiça que aperfeiçoa o espírito da época presente e futura. E se a vida intima das pessoas é em parte sacrificada, é um holocausto que resgata pelo beneficio alheio que representa.

Fiz dêste drama uma tése social levando um pouco de luz e interesse a milhares de consciências. Quais os autores indirectos dessa reacção? Os personagens discutidos. Logo, portanto, cabem-lhe honras e aprêços especiais.

O principal intérprete é a snr. Dr. Alfredo da Cunha. Posto o facto no seu verdadeiro valor de contribuição humanitária, é motivo de homenagem e consolo para o contribuinte. E se é certo que existem formulas de preconceitos a que se chama brio e pudor pessoal, é tambem verdade que se transforma em virtude todo o sacrificio do ègo quando dêle emana uma luz. Tanto mais nobre é um homem, quanto menor é o seu orgulho. « Quem mais se humilha, mais se exalta », diz a palavra Biblica.

E aqui está porque eu entrei nesta peleja, convicta de que a capacidade intelectual, moral e sentimental do snr. Dr. Alfredo da Cunha, ligadas aos seus vastos conhecimentos e moderno pensar de jornalista, eram incapazes de perseguir ideias e deliberações que esclarecem a humanidade, expostas com desassombro, lealdade e expontaneidade.

A audácia é um mérito.

E mesquinho seria que um homem notavel se apoucasse na pequenez de uma vingança contra a verdade, cultivada com audácia.

 
 

Quais as razões que servem de ponto à acusação aqui formulada contra os preconceitos e que são origem de hábitos e rude proceder da maior parte dos chefes de família?

Egoísmo e absolutismo.

Nenhuma dessas causas é defeito exclusivo ou caso isolado, Alarga-se em uso e abuso quási geral. Ás vezes, estas disposições abrem nos lares azas negras de enervamento que matam a alegria e a paz. E há dentro dos corações tesouros de sentimento. O semblante carrancudo, o gesto brusco, a palavra hostil e dura, formam o eclipse das expressões afáveis que nada custaria a cultivar.

Mas medra na alma de cada homem um infinito de orgulho e intolerância. A máscara glacial torna-o agreste. Como se enganam todos os que exercem essa espécie de domínio!... Quanto mais nobre é dominar pela brandura e pela fôrça diamantina do coração!

 
 

Interrogado um dia um certo filósofo sôbre o que era preciso para ser feliz, respondeu: «Em primeiro lugar, bom humor, em segundo lugar, bom humor, e em terceiro lugar, bom humor». E diz Smille no « Caracter »: «O bom humor robustece a bondade e a virtude; dá vivacidade ao coração e elasticidade ao espírito, é companheira da caridade, alimento da paciència, mãe da sabedoria, e o melhor dos tónicos morais, mentais e fisicos. »

 
 

Conheço um caso singular que demonstra bem claramente quanto o homem tem a lucrar impondo-se ás simpatias e ao coração da sociedade e da família pelo bom humor, que se reflecte em agrados de semblante e se desdobra em disposição de jovialidade, de doce e aprazivel calmaria de concórdia.

Passou-se esse caso com um cavalheiro que conheci. Possuia um semblante de traços finos e atraentes quando bem disposto no seu estado real de expansão afectiva e simpática. Mas recebera um legado paterno de rispidez e egoismo que o tornava agressivo e mal humorado frequentemente.

Cá fóra, no convivio social, era afavel e delicado, sem artifício, porque herdára esse mérito do lado materno.

Travára-se um dia ardente discussão sobre um dos seus actos agressivos que muito maguára uma pessoa bondosa. Alguem que tinha por esse homem uma fanática simpatia, duvidava de que êle fosse capaz de praticar a violência que lhe era atribuída. No meio da discussão surge entre vários papeis uma fotografia sua que o reproduzira numa hora de mau humor, com uma expressão carrancuda, dura, colérica. « Quem é este semblante furibundo? » — exclama jucosamente a sua fanática admiradora. E atira longe com a fotografia.

Sorriu a sua interlocutora, e foi buscar uma segunda fotografia de expressão insinuante e afavel que pôz ao lado da primeira. « Repara bem se êste furibundo se parece com esta pomba » ― disse para a companheira.

« Mas é impossivel que sejam do mesmo » retorquiu a segunda deveras confundida.

« É que te esqueces que na nossa raça predomina uma dualidade de pomba e de chacal. No dia em que a pomba vencer o chacal, cultivando a mansidão e sufocando os impulsos da arrogância e das iras, seremos a gente mais gloriosa e feliz do mundo. »

Estava presente uma criança filha da pessoa discutida e para quem o pai era terno e brando. Viu a fotografia do mal humorado. Mirou-a e remirou-a. E por fim disse veementemente: « Este não é o Papá » !

 
 

O mesmo se pode dizer de certos aspectos exteriores que são expressão instável e não linha anatómica em pessoas cuja substância fundamental do caracter é sujeita a frequentes exaltações.

 

Costumes barbaros disseram em tempos idos ao homem :« Sê omnipotente e soberano impondo-te pela severidade e pela arrogância, pela soberbia e pelo despotismo ». E o homem, que viera das selvas e do convivio das feras, acreditou que assim como o mais feroz era o que vencia, também ele venceria pela ferocidade. E carregando o sobrôlho, descendo a viseira da brutalidade, pretendeu conquistar pela força, pela rispidez e pela supremacia do mando.

Por isso mesmo, debalde tem querido voar no espaço das glórias e dos triunfos, sepultando-se afinal em mares de sangue e ódios, de felonias e traição, vencido pelo mal que cultiva.

Mais livres e felizes do que êle, são os rouxinois gorgeando nos salgueiros balouçantes, como interpretes divinos da harmonia, como herois do espaço e da beleza que vibra em ritmos de melodia, e se esparge em trinados enebriantes de poesia e de ternura, perfumando as almas de sentimento e amor.

 
 

Falha na prática da vida, tanto social como doméstica, a imitação do homem das selvas. E triunfará na aurora das idades civilisadas, o cântico amoroso do rouxinol que ensina a brandura, o carinho, a ternura conjugal aos humanos, embalando no sonoro idílio dos ninhos o hino da bondade a desprender-se em harmonias cariciantes, emquanto a consorte vai acalentando a mimosa prole entre o ritmo dos arrulhos e a macieza tépida das plumagens.

Bemdita sejas, ó poesia dos ninhos, das brisas, dos luares e dos arroios, que ensinas à gente brutalisada de prosaismos sépticos e ásperos, a via lactea da brandura capaz de conduzi-los á felicidade pela tolerância, pela concórdia doméstica e universal.

 
 

Bradai em vão contra os poetas, ó almas áridas e estéas incandescentes stépes de Sinai trilhadas pelas tribus desoladas que em vão buscam o Eden sonhado. Classificai-os de lunáticos, ó prosaicos materialistas coniventes no mal que vos atormenta! Que emquanto os poetas cantam odes de amor no espaço das idealidades precursoras, vós ireis rosnando á lua os vossos sarcasmos e os vossos despeitos que a não atingem, porque paira alto no seu mundo de poesia onde é alma de toda a perfectibilidade.