Últimas Páginas (1912)/Carta a Camillo Castello Branco
Ex.mo Sr.
Um tardio correio trouxe-me ontem um número, já quase velho, das Novidades, com um artigo, Notas à Procissão dos Moribundos, em que V. Exª, resmungando e rabujando, se queixa ao Público de que eu e os meus amigos implicamos consigo, sempre que isso vem a talho de foice, e lhe assacamos aleivosias. Como exemplo deste indecoroso hábito, cita V. Exª um período da minha carta a Bernardo Pindela nos Azulejos, em que eu alegremente me rio dos discípulos do Romanticismo que, depois de clamarem contra certos escritores, como realistas e chafurdadores do lodo, apenas imaginam que o Público só esse lodo apetece, para seu consumo intelectual, se apressam a escrever na capa de seus livros: romance realista, para que o Público, aliciado pelo rótulo, os compre também a eles, e os leia também a eles... E V. Exª, meu caro confrade, acrescenta logo com a mais consciente certeza: «Ora isto é comigo!»
Suponha que um dia, numa novela, V. Exª descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda em Cacilhas... E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: «Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada... É comigo» Que diria V. Exª, meu prezado confrade?
V. Exª balbuciaria aturdido: «Eu não sei, eu vivo longe... Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância... Mas, na verdade, creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais ténue, remota intenção...». Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Exª. E assim eu digo. – V. Exª deve conhecer melhor que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos seus livros: se V. Exª, para atrair a multidão, nelas colou, ou consentiu que os seus editores colassem, esse rótulo: romance realista –por não poderem legalmente adorná-las com esse outro mais cativante: romance obsceno–então decerto aquilo é consigo. Mas a intransigente verdade me força a confessar que, escrevendo esse período da carta a Bernardo Pindela, eu não pensava no autor da Corja. Se eu quisesse acusar dessa abjecta concessão, às exigências da venda, um homem que há trinta anos é ilustre na literatura portuguesa – teria escrito o nome todo de V. Exª, sem omitir um só título. Há personalidades a quem por isso mesmo que são fortes, se não alude timoratamente e de longe. Já deste modo se pensava na corte de el-rei Artur. «Se queres falar de Percival, diz bem alto: Percival, e tira a espada». Assim gritava esse cavaleiro, flor dos bons, na velha cidade de Camerlon, uma tarde em que havia algazarra e ciúmes junto a Távola Redonda. Não se trata, decerto, aqui, de compridas espadas a desembainhar. Mas não deixa de ficar bem a um débil homem de letras, como eu, o seguir essa lição de lealdade e valor dada pelo possante homem de armas Percival.
Assim o exemplo aduzido por V. Exª, para demonstrar o meu escandaloso hábito de implicar consigo – é realmente mal escolhido. Mas permanece, todavia, a queixa, feita ao público com tanta rabuge e tanto azedume, de que – eu e os meus amigos, sempre que isso vem a talho de foice, lhe assacamos aleivosias.
Aleivosia é um termo formidável e sombrio que, se me não engana o vetusto e único Dicionário que me ampara nesta dura labutação do estilo, significa – «maldade cometida traiçoeiramente com mostras de amizade, insídia, perfídia, maquinação contra a vida e reputação de alguém, etc.». Tudo isto é pavoroso. Mas eu suponho que, sob essas vagas palavras de implicação e aleivosia, V. Exª quer muito simplesmente quei-xar- se de que eu e os meus amigos o não consideramos um escritor tão ilustre, com um tão alto lugar nas letras portuguesas como o costumam considerar os amigos de V. Exª. Ora aqui V. Exª se ilude singularmente.
Eu nunca tive, é certo, a oportunidade deleitável de apreciar, nem em copioso artigo, nem sequer em curta linha, a obra de V. Exª. Mas sou meridional, portanto loquaz. Por vezes, entre amigos e fumando a cigarette, tem vindo «a talho de foice» conversar sobre a personalidade literária de V. Exª. E, louvado seja Apoio aurinitente! sempre me exprimi sobre o autor do Esqueleto, de um modo que é irrecusavelmente mais digno dele e da sua obra, do que esse outro estranho modo por que o costumam decantar aqueles que se ufanam, já na palestra, já na imprensa, de serem seus amigos e seus discípulos.
Porque eu, falando de V. Exª, considero sempre a sua imaginação, a sua maneira de ver o mundo, o seu sentimento vivo ou confuso da realidade, o seu gosto, a sua arte de composição, a fraqueza ou a força do seu traço; e, pelo menos, admiro sem reserva em V. Exª o ardente Satírico, neto de Quevedo, que põe ao serviço da sua apaixonada misantropia, o mais quente e o mais rico sarcasmo peninsular. E os seus amigos, esses, admiram apenas em V. Exª, secamente e pecamente, o homem que em Portugal conhece mais termos do Dicionário!
Sempre, «a todo o talho de foice», em artigo, em local, em anúncio de partida, em felicitação de dia de anos, V. Exª é pelos seus discípulos e amigos louvaminhado e turibulado – como o grande homem do Vocábulo, esteio forte de Prosódia, restaurador da Ordem gramatical, supremo arquitecto das frases arcaicas, acima de tudo castiço, e imaculadamente purista! E ainda mais na intimidade, os amigos de V. Exª o celebram como o homem que melhor sabe descompor o seu semelhante! E isto tão obstinadamente murmurado ou clamado, que esta geração mais nova, para quem já vou sendo um velho e V. Exª quase um fantasma, não tendo como eu e os do meu tempo rido e chorado sobre os seus livros de paixão e de ironia, o imaginam a V. Exª um intolerável caturra, de capote de frade, debruçado sobre um sebento Léxicon, a respigar termos obsoletos para com eles apedrejar todos os seus conterrâneos!
A V. Exª, crítico sagaz de si mesmo, melhor compete avaliar o que, neste vale de prosa e lágrimas, tem feito para merecer que os seus amigos, como os amigos de César no dia das Lupercais, teimem em lhe enterrar até aos ombros esta dupla e pesada coroa da vernaculidade e da descompostura.
A mim só me compete lamentar que a estas mofinas proporções tenha sido reduzida, pelo zelo crítico dos seus amigos, a larga individualidade que nos deu o Amor de Perdição. Mas ao mesmo tempo adquiro o direito de rogar a V. Exª que, quando se queixar aos ventos e ao Chiado das pessoas que implicam consigo, como V. Exª diz, ou que desdouram a sua glória, como eu traduzo, não se volte para mim e para os meus amigos – mas olhe em torno de si para os seus admiradores, e para dentro de si mesmo, talvez.
A guerra de realistas e idealistas, causa primordial destas explicações, tornou-se já quase tão desinteressante e sediça, meu prezado confrade, como a guerra dos Clássicos e Românticos, a das Duas Rosas, ou essa outra que, para vantagem única dos livreiros que editam Homero, dois povos semibárbaros tiveram a paciência de arrastar dez anos em torno de uma vila da Ásia Menor murada de adobe e tijolo. Renovar tão antiquada guerra nas Gazetas, é já um acto imperdoavelmente provinciano: mas mais provinciano ainda é estarmos nós aqui, com grãos de incenso nas mãos, e pedras nas algibeiras, fazendo, através do grande mar, mútuas e lentas mesuras. V. Exª, de lá, de entre os seus sinceros arvoredos minhotos, ajanota as suas frases pelos figurinos de Filinto Elísio, para me dizer gaguejando, e com agridoce generosidade: «O meu caro amigo tem muito talento, com excepção de escrever muita tolice». E eu de cá, mais pérfido, porque habito as cidades, grito sem gaguejar, e com polida efusão: – «E o meu caro amigo tem ainda muito mais, sem excepção absolutamente nenhuma».
É infantil. Antes desperdiçássemos o nosso tempo, preguiçando patriarcalmente, neste doce calor de Junho, sob a figueira e a vinha... Mas quê! V. Exª, que estava brincando funebremente, a fazer no soalho, com tochas de fósforos, uma procissãozinha de moribundos, ergue-se de repente, corre para o Público, mesmo sem tirar o babeiro, e acusa-me, entre lágrimas de furor, de estar sempre a implicar consigo! Que havia eu de fazer, eu inocente e justo? Corro também para o Público, mesmo de jaquetão de trabalho, e brado profusamente com as mãos sobre o peito: «Nunca! É falso! Jamais impliquei com ele, e não lhe quero senão bem!»
A culpa de toda esta inútil prosa é portanto toda sua; e para que ela se não prolongue mais, apresso-me, prezado confrade, a dizer-me
De V. Exª
Sincero e antigo admirador
EÇA DE QUEIRÓS.