Últimas Páginas (1912)/S. Christovam/XI
Longos dias Cristóvão errou pelos caminhos – até que uma tarde chegou ao sopé de uma montanha, cujas rochas o Sol poente cobria de cor-de-rosa. Um homem, com um hábito de frade, um longo capuz de onde saía uma braba branca, subia lentamente os córregos alcantilados, gemendo, sob um molho de lenha. Cristóvão pedira ao velho para carregar ele a lenha. O frade, receando um demônio, traçou no ar uma cruz, e como Cristóvão repetisse sobre o peito as linhas santas, o frade consentiu que ele tirasse o molho dos ombros. E limpando o suor com a manga esfarrapada do hábito enquanto caminhava ao lado de Cristóvão, perguntou-lhe se ele fugira dos homens que o mostravam numa feira: e como Cristóvão dissesse que vinha da cidade, de além, o frade compreendeu que ele vinha decerto atraído pela santidade daquela montanha povoada de ermitas. E pensava: “Aqui está um homem, decerto simples, e de força imensa, que poderia aliviar dos seus trabalhos os santos varões que ali habitam, deixando-lhes mais tempo para aperfeiçoar a alma, e dar batalha segura ao Tentador...”
Então foi guiando Cristóvão até que chegaram a uma choupana feita de ramos, ente pedras alcantiladas. À porta da cabana, cravada entre duas paredes, erguia-se uma cruz tosca, e ao pé, sob uma caveira, pousava, aberto, um grande in-fólio. Dentro da cabana havia só um leito de folhas secas, e uma bilha com a asa quebrada.
O ermita, tendo indicado a Cristóvão o sítio onde devia deixar o molho de lenha, tomou de uma buzina pendurada à porta da cabana, e afastando os longos pelos do bigode branco, lançou três sons roucos, que ecoaram nas quebradas. Cristóvão, tímido, considerava cada movimento do ermita como uma ação de santidade. Então, das sendas várias do monte começaram a aparecer, caminhando devagar, uns apoiados em bordões, outros com as mãos escondidas nas mangas, ermitas, a quem um longo capuz escondia a face. O primeiro que chegou, dando com Cristóvão, fez o sinal da cruz, e depois, com um gesto, chamou os outros, que, assim apressados, saíram de rocha em rocha. Quase todos tinham longas barbas, grisalhas e incultas, as túnicas esfarrapadas, e o lodo dos caminhos seco em crosta nas pernas. Com um gesto lento coçavam pelo corpo a vérmina que os cobria: e, se as pernas ou os braços se lhes tinham chagado, erguiam as túnicas como tirando contentamento daquelas misérias da carne. Alguns, porém, eram novos, ainda robustos, mas tão pálidos já, que as faces sob o capuz eram como uma cera na sombra. Todos se curvavam diante do monge que guiara Cristóvão; e depois ficavam mais calados e mudos que imagens sobre um túmulo. Mas então o ermita, que parecia ter a autoridade de um prior, explicou que, ao sopé da montanha, voltando de recolher a lenha, encontrara aquele homem de corpo imenso e de imensa força, mas tão simples que não sabia de onde viera, nem em que terra nascera. E logo lhe acudira, como inspiração de cima, a idéia de o recolher, e de o ocupar no serviço dos santos irmãos que habitavam a serra, à maneira do que praticara Santo Antão no Egito, que, para que os seus irmãos do ermo, e ele próprio, se absorvessem melhor na oração, e mais livres ficassem para dar combate ao Demônio, tomara um negro de muita força, que conduzia a água, rachara a lenha, segurava nas mulas dos peregrinos, transportava as coifas das provisões. Assim, de ora em diante, tendo quem os servisse, nas suas almas não haveria mais cuidados do que a conquista do Céu. Tendo findado, e baixando a face sob o capuz, como recolhido em oração – os ermitas, sem quebrar a sua mudez, retomaram os caminhos da serra, e um a um foram-se sumindo entre as rochas e os robles.
Só com Cristóvão, o ermita, voltando à cabana, trouxe um pedaço grosso de broa, de que deu uma parte a Cristóvão. Ambos beberam da bilha: - e tendo ordenado a Cristóvão que fosse com a lenha às costas, através da serra, para a distribuir pelas ermidas esparsas, estendeu-se em frente à cruz, e, pousando a cabeça sobre uma pedra, ficou mergulhado em oração.
Cristóvão partiu. Cada ermita lhe ensinava, sem falar, com um mover lento da mão, a ermida mais vizinha. Em todas, a mesma caveira alvejava ao pé da mesma cruz. E àquela hora da tarde todos estavam à porta da ermida partindo o seu pão, e tendo ao lado, interrompido, ou o livro que liam, ou o grande rosário que desfiavam, ou algum cesto que encanastravam, ou as estrelas que teciam. À porta de cada cabana pendia uma buzina e um molho de disciplinas, com pontas de ferro. Quando Cristóvão chegava, todos alçavam o olhar baixo: nalguns o olhar era sereno, de uma serenidade morta; noutros refulgia com um vago clarão de terror, ou uma viva luz, que parecia alongar-se numa curiosidade sem fim. Humildemente, Cristóvão depunha o molho de lenha com respeito, como junto de um altar: e os monges, tendo seguido o seu movimento, baixavam e novo a face sob o capuz. Quando Cristóvão voltou à ermida do prior – ainda o encontrou estendido, com a cabeça pousada na pedra, dando por vezes um suspiro. Então, calado, foi sentar-se a distância numa pedra.
O Sol descia ao longe, vermelho como uma amora. Nenhum rumor cortava a placidez do ar. Os homens pareciam estar muito longe: - e depois daqueles dias passados na cidade empestada, Cristóvão sentiu toda aquela serenidade entrar-lhe na alma como uma carícia sem fim. Mas lembrava todos aqueles que deixara, e mesmo lhe parecia ver certos detalhes – a casa da esquina onde ele ia levar pão às crianças abandonadas, o velho a quem ia chegar a bilha da água. Decerto sentia a falta desses seres que socorria: - mas naqueles ermitas havia tanta fraqueza, tanta necessidade, que decerto seria doce ocupar-se desse serviço. O sol desaparecera. Todo o vale de rochas estava negro. Por vezes um grande pássaro escuro esvoaçava. Uma estrela pequenina luzia, depois outra. O santo prior orava, com a face sobre a terra fria. E Cristóvão, cansado, estendeu o imenso corpo na terra, adormeceu.
Alta noite acordou: - um som lento, desolado, de buzina, caía de rocha em rocha pelo silêncio da serra. Era como o apelo de uma coração aflito: - e imediatamente o prior, correndo de dentro da cabana, se atirou de joelhos diante da cruz, rezando, com furor tumultuoso. De certo, longe, algum irmão estava sofrendo uma tentação do Inimigo, e já meio vencido, soprava a buzina avisando a todos os ermitas para que o ajudassem com as suas orações a rechaçar Belzebu. Sentado no seu rochedo, Cristóvão olhava, cheio de simplicidade, sem compreender, com as mãos pousadas sobre os joelhos – quando de outro lado da serra, lá no cimo, outra buzina soou, chamando socorro para outra alma atacada. Mais tumultuosas se precipitaram as orações do ermitão. Mas a buzina ressoava mais aflita! E então o santo homem, desesperado, gritou a Cristóvão que acendesse uma fogueira perto da cruz, para que ela, destacando em negro sobre o vermelho do lume, fosse vista pelos demônios, que nessa noite pareciam dar um ataque terrível à santa montanha.
Ferindo lume com duas pedras, Cristóvão, rapidamente, fez uma fogueira, soprando com as faces inchadas: a lenha nova estalou, uma chama subiu, outros lumes em breve apareceram na negrura da serra: - e os sons das buzinas decresciam como as ânsias de um coração que sossega. Um silêncio pesou então. Cristóvão cerrara as pálpebras. E o prior, um momento, aqueceu à chama as suas mãos trêmulas.
Mas os seus olhos fixavam-se na chama, com uma atração crescente: um clarão de cobiça iluminava-lhe a face, e a sua língua apareceu à beira da boca seca, como adiantando-se para uma grande peça de carne tenra, vermelha, chiando ainda no largo prato onde fora assada... Chegou mesmo a estender a mão aberta. Mas deu um grito. Onde tinha ele os espíritos que não reconhecera uma ilusão do Inimigo, que o vinha tentar pela gula?! Furioso, ordenou a Cristóvão que apagasse a fogueira.
Com os braços em cruz, passeou então no estreito terraço bordado de pedras. A sua boca seca mascava com um ruído contínuo: - e ia balbuciando orações. Os olhos de Cristóvão, fixos no brasido vermelho que restava do fogo, iam-se cerrando. Toda a montanha se calara. E como insensivelmente atraído, o ermita voltou a olhar o brasido, que vermelhava numa brasa viva. O que ele agora via eram montões de dinheiro, ducados de ouro, montes de rubis escarlates que se esboroavam, numa infinita rutilação de tesouros. Bastava baixar a mão, e teria tesouros para comprar um condado, erguer catedrais, assalariar mercenários, comprar jóias às rainhas, ter todas as satisfações do poder, e do amor, e do orgulho eclesiástico. E todavia o ermita sorria, sacudia a barba branca, murmurando: “Bem vejo a tua ilusão, oh Maldito, que me julgavas desprevenido! Mas a minha alma está forte, e nela, como o arqueiro na torre, a oração vigia, cheia de força!...” E com o pé espalhou os carvões ardentes. E Cristóvão pensava na sua simplicidade: “Quantas coisas vê este homem, que eu não vejo! Decerto é por causa da sua sabedoria ou da sua santidade”.
No entanto, o ermita recolhera à sua cabana: mas, apenas entrara, soltou um grito, e saiu recuando, com os braços abertos, que pareciam sacudir uma visão. Era uma mulher, de esplêndida brancura e toda nua, que ele encontrara deitada de costas sobre o seu catre de folhas, com braços abertos que o esperavam e o chamavam. E durante um momento, as suas mãos, como impelidas por força oculta, tinham-se estendido para ela irresistivelmente: mas nos pés, tão brancos, reconhecera um pé de cabra – e tendo-se benzido freneticamente, a mulher evaporara-se, como um fumo negro, através dos ramos da cabana. Mas quase cedera à temerosa ilusão – e se no momento em que lhe estendia os braços tivesse morrido, era o Inferno, a danação completa! Então agarrou violentamente as disciplinas,e arrancando a túnica, gritou: “À obra, à obra santa!” As duas correias de couro de boi, armadas de unhas de ferro, cingiamlhe a cinta, rasgavam-lhe a pele do dorso. A cada golpe, dava um gemido rouco: mas, pouco e pouco, de duros e aflitos os gemidos tornaram-se lentos e lânguidos: - e o pobre ermita, a cada vergastada, murmurava: “Socorro, meu Senhor, socorro, que estes golpes que dou em mim começam a ser com um contato delicioso!... Faz que eu sofra, Senhor! Dá ardor infinito aos vergões que sulcam a minha carne! Sopra para dentro das feridas a tua cólera! Que ela me queime e arda, como um pez inflamado!...” E, de repente, caiu como morto, com os braços estendidos.
Cheio de piedade, Cristóvão ergueu-o do chão, e empurrou-o como um corpo morto para dentro da cabana, e onde ele ficou estirado, com algum lento gemido que por vezes o sacudia.
A manhã clareava. Cristóvão adormeceu.
Então começou, desde esse dia, o seu serviço entre os ermitas. Todas as manhãs ia buscar um tonel à fonte, que brotava em cima, de entre rochas, e ia enchendo de ermida em ermida, as bilhas de barro. Depois cortava a lenha, amassava o pão, que se cozia num forno de tijolo, junto de uma capela onde os santos homens ouviam missa e comungavam. Era ele quem tocava o sino, punha giesta sobre o altar – e , por ordem do prior, espalhava seixos sobre o chão da capela, para que os joelhos dos ermitas se macerassem. Pela tarde, tendo reunido as esteiras, as alpercatas, os cestos, que os ermitas fabricavam, descia a uma povoação do outro lado da serra, onde trocava aquelas obras das santas mãos pela farinha, por ervas, e pelo vinho das galhetas. Todos estes serviços eram fáceis e doces. Mas, pouco a pouco, Cristóvão sentia como uma melancolia e um desejo das cidades e da vida dos homens. A montanha era triste e sem verdura; - mas a sua tristeza vinha sobretudo do silêncio, da amargura, da desolação dos santos que a povoavam. Todo o dia era por eles consumido a gemer, mesmo quando trabalhavam – e o seu esforço constante era a martirização dos corpos, onde se instalava o Inimigo. Mesmo imóveis, quietos, se estavam mortificando: uns traziam um cinto de pregos, que lhes rasgava a carne; outros introduziam debaixo do hábito formigas ou vespas que os picavam; outros suspendiam do pescoço uma pedra enorme, e caminhavam arquejando e tropeçando. Toda a doçura humana lhes era alheia. Ao pão que coziam misturavam terra; a água, só a queriam já envelhecida e pútrida. Por vezes alguns permaneciam, dias e dias, imóveis, de pé sobre uma pedra, com as mãos espalmadas, sob a chuva, e, quando o sono ou a fome os iam a vencer, enterravam uma espinha aguda no peito; outros dormiam com a cabeça sobre uma pedra, outra pedra sobre o estômago, outra sobre as pernas juntas, e eram como cadáveres de justos lapidados. Por vezes, Cristóvão oferecia-se para lavar as chagas, tirar os espinhos dos pés, curar com cinzas e água a mordedura dos insetos. Mas todos o repeliam, e para tornar as feridas mais irritáveis expunham-nas ao sol ardente, ou deitavam-lhes areia fina. Um imenso sofrimento cobria a montanha; e sobre ela o Sol parecia uma lâmpada triste, através dela o vento um gemido angustiado.
Era, porém, de noite, que ela se tornava terrível. Animados pela escuridão, os demônios subiam por cada caminho, para atacar os santos homens. Em cada cabana era uma luta temerosa. Os santos tinham a oração, as suas longas disciplinas armadas de unhas de ferro; mas os demônios, por seu lado, tinham as coisas deliciosas a que as almas sucumbem. Aos ermitas que vinham esfomeados, os diabos ofereciam longas mesas, cobertas de flores, onde os pavões assados arqueavam as penas entre os montes de frutas e os blocos de gelo; aos que tinham sido cavaleiros, mostravam montes de ouro, armas invencíveis, longos exércitos para ir conquistar reinos e saquear cidades ricas; aos velhos faziam ofertas de mitras, que lhes dariam entre os homens a suprema autoridade das coisas santas; - e a todos a tentação suprema, a Beleza, a Mulher, ora magnífica, desenrolando as tranças, erguendo uma túnica de gaze, ora delicada, escondendo com os braços o peito nu, e sorrindo fragilmente.
Mas quando as seduções não bastavam, os demônios, furiosos, tentavam o terror. Então eram serpentes pavorosas, surgindo de entre as rochas; vastas asas moles e fétidas que, com um golpe, derrubavam; figuras colossais, listradas de branco e negro, que brandiam forquilhas, vertendo uma baba de fogo. Os gritos dos ermitas atroavam a serra; as buzinas ressoavam; uma furiosa rajada de orações subia para as nuvens; as correias das disciplinas voavam no ar, com gotas de sangue: - e, espantados pela grandeza da penitência, os demônios cediam, abalavam, limpando o suor, esfalfados.
Uma grande piedade enchia então o coração de Cristóvão. Por que sofriam assim aqueles homens bons, que encanastravam as vergas, caminhavam com a face baixa, não faziam nenhuma ofensa e só pertenciam ao Céu? O seu desejo era ajudá-los, rechaçar ele só, com a sua grande força, as turbas negras do Inferno. Então, ao menor apelo da buzina, corria para o lado do ermita atacado. Arquejando, com os imensos punhos fechados de santa cólera, avançava na escuridão. Mas onde estava o Demônio? Ele via o santo ermita recuar com pavor, via o escuro lugar para onde ele estendia a cruz, como uma lança... Mas se se arremessava para lá, os seus braços vingadores só encontravam a noite negra. Quantas vezes ele encontrava o ermita, que tremia todo, e murmurava: “Oh, como é branca, e doce à vista, e cheia nas suas formas!...” Cristóvão compreendia: era decerto uma mulher, a temida Mulher, que arqueava os braços, descobria o peito... Para a empolgar, a esganar, ele quase rastejava no chão, colhendo o hábito. Mas as suas mãos indignadas só agarravam o tojo, os musgos de uma pedra fria. Então ele próprio clamava para os demônios: “Vinde para mim, vinde para mim!” E, arrancando um tronco, atirava tremendos golpes, ou arrancando uma imensa lasca às penedias, arremessava-a através da noite. Os troncos batiam contra os troncos; as rochas, com estridor, quebravam sobre as rochas. E diante dele, nada havia, senão a montanha; Pois era impossível que ele nunca ferisse um dos demônios inumeráveis, que ali vinham de noite? Ia então, mal clareava a madrugada, procurar, com a cabeça baixa, as pegadas dos diabos fugidos, algum chifre que lhes tivesse partido, ou sobre a terra chamuscada alguma gota do sangue maldito. Encontrava apenas as violetas lustrosas de orvalho. E então recolhia à sombra dos seus robles, bocejando com lentidão.
Pelas festas do ano, o povo da aldeia subia à montanha, vinha visitar os ermitas. Uns, doentes, aflitos com males, amparados pelos parentes, vinham implorar a saúde àqueles amigos do Senhor. Outros pediam a sua intervenção para obter uma colheita abundante, ou a herança perdida. As mulheres traziam os filhos para que eles, tocando-os na cabeça, lhes dessem vida forte e próspera: - e as que eram estéreis vinham implorar as doçuras da maternidade. A montanha era como um arraial de peregrinos. As crianças, correndo, tropeçavam nas muletas dos coxos. As raparigas, com uma flor metida na orelha, formavam danças no adro da capela. Os que tinham feito promessas arrastavam-se de joelhos sete vezes em torno das cruzes, ou penduravam no altar pés de cera, laços de fita e cestos de frutas. Como voltariam tarde para a aldeia, quase todos traziam provisões, e, dependurando os mantéus nos troncos da árvores, faziam grande círculo em torno das melancias abertas, bebendo dos pichéis de vinho.
Os ermitas iam por entre a turba, e por vezes, mal podiam mover os passos lentos, envolvidos, suplicados pelos feridos que, fartos de ungüentos, pediam que lhes tocassem nas chagas com o rosário, pelos mendigos que queriam que lhes sarassem a sarna, pelas velhas hidrópicas que descobriam o ventre, esperando um remédio do Céu. Outros queriam apenas a benção. Havia faces inquietas que pediam uma profecia sobre as vindimas. Outros estendiam os rosários para eles os benzerem. E os ermitas tocavam as feridas, prometiam boas colheitas, sossegavam as mães dos endemoninhados.
Depois o prior subia ao púlpito rústico, feito de pedras, e enumerava as obras gloriosas da montanha. Onde houvera, mesmo na Tebalda, no tempo sublime dos Antãos, dos Pacómios, uma penitência mais alta? E mostrava as suas faces emagrecidas pelos jejuns, as suas carnes rasgadas pelas flagelações. Uma imensa admiração arrebatava as turbas piedosas. E todos queriam ver nos corpos dos santos a evidência da sua santidade. E só havia então ermitas mostrando as chagas que eles tinham assanhado, as pisaduras que lhes deixavam as pedras onde dormiam, os dentes estragados pelo pão azedo a que misturavam cinza. As mulheres erguiam as mãos, chorando. As mais ardentes arrancavam pedaços da túnica dos ermitas, que guardavam o seio como relíquias. Os velhos beijavam a terra onde eles tinham pousado os pés. Diante das cabanas havia multidões a admirar a dureza dos leitos, a bilha quebrada, o grande in-fólio. Alguns julgavam ver as pegadas dos anjos que visitavam os ermitas. Outros queriam provar o pão, ou, cheios de respeito, tocavam com o dedo nas disciplinas. Cristóvão era invejado por viver entre eles. Muitos queriam abandonar os casais, para servir os santos: - e havia sempre algum que, para ficar na montanha, se escondia entre as rochas, e que era necessário expulsar quando o Sol descia, e a hora chegava da solidão e da prece.
Mas nessas noites, depois dos arraiais, as orações não eram tão profundas, nem as penitências tão altas. Cansados, sentados à porta da suas cabanas, os ermitas saboreavam, no silêncio do seu coração, a sua imensa santidade. Cada um se sentia famoso, falado nas lareiras do vale. Decerto a fama da sua santidade chegaria aos castelos. Os bispos falariam deles nos concílios. E mais tarde talvez suas imagens se ostentariam sobre os altares. E Cristóvão então via-os olhar complacentemente, acariciar as feridas da penitência, escolherem uma pedra maior para encostar à noite a cabeça. O prior vinha então congratular os seus irmãos. A sua face resplandecia. E era ele que relembrava os movimentos da multidão, e como a suas chagas tinham sido beijadas. E já certo do poder da sua voz, falava em descer à planície, pregar contra a relaxação dos Beneditinos. A sua estatura cada vez se erguia mais. Um dia mesmo mostrou em triunfo uma carta do conde de Ocitânia, que o consultava sobre os dízimos. E Cristóvão entristecia, era como uma saudade de outros homens mais humanos, e do riso das crianças. Era sobretudo como uma impaciência de toda aquela inutilidade dos ermitérios, os longos e ocos silêncios, as horas passadas com a fronte sobre uma pedra, aquela imobilidade contempladora de onde não saía nenhum bem, nada que aquecesse o coração. Povoada por toda aquela inércia, a montanha ainda lhe parecia mais inerte. E vinha-lhe como um desejo de sacudir aquela imobilidade dos homens e das coisas, e com as suas mãos arremessar conjuntamente os ermitas e os robles, as caveiras e as rochas. e empurrá-los para alguma ação útil, mandá-los de roldão, pela montanha abaixo, a ser úteis aos homens!
O seu coração pouco a pouco se destacava daqueles amores. Já não corria tão alegremente a encher as bilhas; tanta cruz envolta por tantos braços, não lhe causava doçura na alma; e aborrecia as caveiras, com seu riso imóvel, oferecendo ao Sol a sua frialdade branca. Quando de noite as buzinas soavam, implorando o auxílio de orações irmãs, não se erguia em sobressalto apiedado. Toda a flagelação o impacientava. E nos dias de festa embrenhava-se nos altos da serra, para não presenciar o orgulhos dos ermitas, mostrando as feridas das disciplinas.
Um dia o prior mandou-lhe construir, com um madeiro, uma cruz da altura de um homem. Três dias Cristóvão trabalhou. E quando, enfim, cravou a cruz num ponto evidente da serra, onde não havia arvoredos, o prior chamou os seus irmãos de ermitério. Um por um, desceram, rezando baixo. O prior encostara-se à cruz, com o corpo colado ao madeiro, e abriu os braços ao longo da cruz – cruz humana, colada à cruz da lenha. depois ordenou um cântico. Quando ele cessou:
— Agora – disse o prior – vou ficar aqui, sem comer, sem dormir, durante três dias, pelas três pessoas da Santíssima Trindade. Esta obra é gloriosa!
Todos ergueram as mãos ao Céu, edificados. Cristóvão, nessa tarde, desceu o córrego até vale, e sem sequer volver os olhos, abandonou para sempre a montanha.