Últimas Páginas (1912)/Santo Onofre/IX

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Era uma caravana, que trazia gomas da Cirenaica, que assim o recolhera por compaixão da sua velhice, e do sangue que lhe corria das feridas. E quando Onofre reabriu lentamente os olhos, a manhã clara enchia o céu, um cheiro de verdura tenra errava no ar macio, e os íbis esvoaçavam pelos ramos das mimosas. O seu dromedário ajoelhara – e os mesmos homens de faces queimadas e ardentes o ergueram, e levaram para um pobre casebre, com um vergel, onde mulheres, sob uma palmeira, pisavam, cantando, o grão de centeio. Turbas correram, um velho acudiu, com o seu balde de rega – e estirado sobre um montão de folhas secas de papiros, dentro do casebre, Onofre sentiu ainda, através de um rumor de piedade, que lhe limpavam as faces, lhe deitavam sobre as feridas um óleo salutar. Depois readormeceu.

Ao declinar da tarde, quando acordou, o velho estava diante dele numa contemplação grave, sentado com as mãos pousadas sobre os joelhos, como uma estátua de escriba. E as duas filhas esperavam, agachadas sobre esteiras de cores, com lentilhas numa malga, e um púcaro de água do Nilo. Onofre comeu e depois ergueu a custo o corpo do leito de folhas, para retomar o caminho do Deserto. Mas, por humildade e exemplo, contou a sua história, a sua penitência, os seus pecados, e como caíra exausto no grande areal, sob a cólera do Senhor.

Então de repente o velho, erguendo as mãos espalmadas, gritou:

– Oh homem cheio de anos e de virtude, tu és daqueles que sabem as palavras novas que consolam! Fica entre nós, come do nosso pão, e ensina as nossas almas.

E Onofre, espantado, soube que, havia tempos, ali tinham vivido dois monges, que todos amavam pela sua caridade, pela sua ciência das ervas que curam, a sua arte em expulsar os demónios, e ainda pelas doces festas com que celebravam o rejuvenescer da Primavera.

Mas um dia tinham partido para um mosteiro, no Alto Egipto – e desde então toda a aldeia os lamentava, e lamentava as doces histórias que contavam do Menino nascido no curral, e de um reino no Céu em que todos comeriam de frutas divinas, e da cruz de escravo, em que a Vítima tomara sobre si todos os pecados humanos.

Assim, oh! alegria! Onofre, fora trazido para entre almas quase irmãs! Nos olhos negros das duas raparigas, que se erguiam para ele, brilhava um calor de fé. E o velho, alargando os braços, murmurava ainda com ardor:

– Oh homem justo, que sabes a natureza dos deuses, e as coisas que estão para além da vida, fica na nossa morada, come do nosso pão!

No coração de Onofre ia um grande alvoroço. Fora por acaso, por determinação do Senhor que ele viera, trazido do fundo do ermo, para que sob o seu ensino a Verdade, já em botão, de todo florescesse naquelas almas simples? Então o Senhor convertia, a privação da sua penitência, na glória de um apostolado! Por quê? A noite de agonia, de onde vinha, fora bastante resgatadora, para que sobre ele descesse já a misericórdia do Céu?... Não lhe competia a ele, servo do Senhor, penetrar os motivos de seu Amo. Para entre aquelas almas, onde já se enterrara a boa semente, fora ele trazido – e só lhe cumpria trabalhar como bom lavrador, no campo precioso que Deus lhe confiava. E humildemente murmurou:

– Pois que de mim necessitais, entre vós ficarei.

E ficou – escolhendo logo para morar um alpendre, aberto a todos os ventos, em que o velho recolhia os seus búfalos. Em breve, por todas as choupanas, se espalhou que outro monge chegara à aldeia – que sabia também as histórias divinas do Menino que nascera na Síria, e de seu Pai que acolhia os servos mais humildes, num Céu todo cheio de cantos e de abundância. De todos os casais logo as mulheres acudiam, trazendo a Onofre presentes de frutas, e bolos de mel, e linho tecido. De joelhos, diante do seu alpendre, Onofre orava, com os braços abertos, a face voltada para o Céu: – e todos pasmados para aquela velhice tão macerada, para as longas barbas brancas que no chão rojavam, erguiam também como ele, mudamente, para o Céu, os olhos cheios de uma esperança nova. O que contemplava ele assim, no Céu radiante? Quais eram essas orações que ele sabia, e como se falava a esse Deus tão bom, e tão amigo dos pobres? E quando Onofre recomeçava a contar do Senhor, e dos seus grandes ensinos de caridade, e de bondade, e de amor, um doce murmúrio de contentamento corria entre os simples, como de famintos que são saciados. Uma lenta adoração inconsciente e ainda gentílica, começava a envolver Onofre, saída ardentemente daqueles corações simples – que não diferençavam bem o Deus Novo do velho Solitário que o revelava. Quando ele atravessava os bosques, ou os atalhos entre os campos – a gente prostrava-se ante ele, com uma reverência misturada de medo: as mães traziam os filhos, nus e coroados de flores, como quando os votavam aos antigos altares, para que Onofre lhes desse a Boa Sorte: – e os casaleiros vinham puxar pela ponta da sua túnica, mostrando, com o olhar suplicante, os campos que desejavam que ele fecundasse.

Um surdo temor, então, invadiu Onofre – porque, naquela reverência pela sua virtude, ele só via perigos para a sua humildade. Quando lhe traziam doentes para que ele os sarasse, ou mulheres possuídas de um demónio para que ele as purificasse – já Onofre recuava aterrado, batia no peito, gritava: «Mas eu não sei! não posso! Quem sou eu? O mais vil dos pecadores. Pedi a Deus, orai a Deus». Mas a dor daquelas almas crédulas ante as suas súplicas desatendidas, dilacerava o coração de Onofre. E não era menor o tormento da sua dúvida. Se ele possuía na verdade, por graça do Senhor, o dom de sarar a carne doente, calmar as almas, quanta era a sua crueldade em não suprimir essas aflições? Mas também no exercício do milagre, quantas pavorosas tentações do orgulho! E cada dia este tormento se alargava. Aquelas mães desgrenhadas, que lhe gritavam entre soluços: «Tem piedade do meu pobre filho!» Aqueles velhos aleijados, que do chão onde os retinha o mal, estendiam os braços para ele, com ansiedade, murmurando: «Ah se tu quisesses!» E ele, forçado pelo terror de Deus, e dos riscos que corria a sua alma – forçado a não ter piedade, e forçado a não querer!

Mas não comprometia ele também, com aquela dura inércia, o derramamento da Fé, e da Lei do Senhor? Não findariam, aquelas gentes simples, por se desprender de um Deus que eles viam tão desatento e alheio às suas misérias? Já quando ele ensinava o Deus Novo, nas faces, em redor, havia desconfiança e desdém. Nas suas longas orações, então, pedia ao Céu uma inspiração. Mas do Céu emudecido, e fechado para ele, nenhuma inspiração descia sobre o seu espírito angustiado. Redobrava as penitências, torturava com o cilício o seu pobre esqueleto, alongava os duros jejuns, clamava por Deus do fundo da sua incerteza. E Deus permanecia impenetrável. Com esta dor da sua alma, ele ia ficando mais macerado, mais abatido, mais velho, do que com trinta anos de trabalhos no Deserto. Já quase não se sustentava direito: e caminhava tão trémulo, apoiado ao seu bordão, que um pouco de vento o poderia derrubar. A sua consolação seria que aquele povo o ultrajasse pela sua crueldade, a sua resistência a fazer o bem supremo. Oh! se o amaldiçoassem! Se o apedrejassem! Cada pedra, que o ferisse, a ofertaria ele ao Senhor, como uma evidência da sua humildade. Mas, doce e tímida, aquela gente só se lamentava, como os que são abandonados. E sem sacudir a esperança, voltavam, insistiam em suplicar a sua intervenção omnipotente.