Últimas Páginas (1912)/Testamento de Mecenas
(INÉDITO DAS «CARTAS DE INGLATERRA»)
Esta carta de Inglaterra é datada de Portugal e tem por assunto o Brasil. Mas eu sou um homem de letras, um simples fazedor de livros, como dizia o rude filósofo Carlyle, e portanto, para mim, mais interessante do que a Irlanda coberta neste momento de forcas; mais interessante que a Exposição das Artes da Pesca, aberta agora em Londres, tão completa que se vêem barcos japoneses pescando ao candeio nos riachos do parque de Kensington, como numa paisagem de leque, e tão minuciosa que as divi-nas trutas da Noruega são fritas por peixeiras vindas expressamente da Dalecárlia; mais interessante que os esplendores sombrios e bárbaros da coroação do Czar; mais interessante que os nomes feios que um certo fabricante de tapetes baratos nos chamou no Parlamento Inglês, esse rico e ruidoso clube onde se conversa, irresponsavelmente e de chapéu na cabeça, sobre todos os negócios do Universo; mais interessante mesmo que essa rajada de paixão patriótica que atravessou Portugal e que nos levou a pedir à Europa, por meio de folhetos em verso, que se aniquilasse a Inglaterra; mais interessante que tudo, para mim, homem de livros – é o singular e brilhante testamento do Comendador Peres Cardoso.
Foi em meados de Abril que os jornais de Lisboa, num tom feito de assombro e de incredulidade, copiaram dos jornais do Rio de Janeiro a notícia de ter morrido um Comendador chamado Peres Cardoso, natural de Cinfães, deixando um testamento extraordinário, concebido quase todo em favor da literatura, com maços de apólices a distribuir entre poetas e romancistas, doações de livros, em lotes de cinquenta volumes, a todo o escritor que fizesse cortejo ao seu caixão, deixas de prédios para fundar jornais – a esplêndida despedida de um Mecenas, que atravessa da sua biblioteca para a sua sepultura, arremessando punhados de ouro sobre a multidão de letras. E entre todas estas prodigalidades lá sobressaía uma, a mais tocante, a que me põe agora a pena na mão – os doze contos de réis, em apólices da dívida pública, deixados, não a seis padres, nem mesmo a seis advogados, mas a seis simples fazedores de livros portugueses, João de Deus, Crespo, Junqueiro, Camilo, Chagas, e eu.
A impressão foi grande aqui, nesta terra, pouco acostumada a tais larguezas. Estes casos são frequentes lá fora. Em Inglaterra, o pomposo Macaulay, o bom Dickens receberam, em legados de dinheiro e de obras de arte, testemunhos repetidos do amor ou do orgulho que inspiravam aos seus concidadãos. Na Alemanha, não é raro que um banqueiro judeu de Berlim ou de Francoforte deixe no seu testamento, por mero fausto, alguns centos de florins a um filósofo que anda arranjando uma nova explicação do Uni-verso, ou a um desses sábios como os amava Hoffmann, que passam quarenta anos na trapeira de uma melancólica cidade universitária, ressequindo-se dentro de uma especialidade inverosímil – como aquele que escreveu doze grossos volumes sobre a fisionomia das serpentes. A Holanda ainda há pouco deu, por subscrição pública, uma fortuna a esse subtil e amargo humorista que assina Multatulli. Em França, os homens ricos dão toda a sorte de coisas boas aos homens grandes: Vítor Hugo recebeu um dia, de um dos seus fanáticos, cinquenta pipas de rum da Jamaica: a Júlio Verne, esse encanto das crianças e dos convalescentes, foi agora doado um palácio em Itália dentro de um parque, verdadeiro paraíso de cardeal, com águas vivas cantando em bacias de mármore...
Em Portugal, porém, foi-se sempre lamentavelmente mesquinho com os homens de letras. Mesmo quando a literatura vivia exclusivamente da generosidade da nobreza, e era o luxo de toda a casa morgada ter, além do seu capelão privado, o seu vate doméstico – um espírito da ordem do Nicolau Tolentino o mais que granjeava, a troco de trabalhoso soneto ou cansativa ode, era algum resto de peru assado, sobejo frio da copa; e em ocasiões de munificência, dia de anos ou baptizado, lá vinha então uma vara de briche para calções ou uma peça de 7$500 réis, embrulhada num papel – e às vezes falsa. Mas, desde que as brutalidades da Democracia desarranjaram esta bela ordem de coisas, e que nunca mais houve em Portugal um fidalgo que tivesse peru de sobejo – nenhum escritor tornou jamais a receber, em metal ou comestíveis, o menor testemunho de simpatia literária dos seus compatriotas liberais...
E isto faz-me pensar como em Portugal, as pessoas dos escritores, inspiram pouca curiosidade e perturbam pouco as imaginações meridionais. Lá fora, em França, na Inglaterra, na Alemanha, mesmo sem contar os semideuses radiantes e irresistíveis, como Byron, como Lamartine, como Goethe, não há poeta que não tenha recebido um dia alguma dessas vagas e difusas cartas de amor, algum desses anónimos presentes de flores ou de almofadas bordadas, que revelam que existe algures uma doce criatura a quem o poeta parece tão poético como os seus poemas, e que está desejando sentir bater o mais perto possível do seu coração, à distância de um corpete de vestido, de um chambre, ou ainda de menos, o coração eloquente e cálido de onde brotou tanta paixão bem rimada... Em Portugal, não consta das indiscrições pessoais, nem dos anais literários, que jamais isto sucedesse – nem mesmo àqueles que foram, por profissão ou temperamento, poetas de sentimento.
Os volumezinhos de João de Lemos, de Soares de Passos, estiveram anos sem conta em todos os cestos de costura: e essas composições poéticas, tão doloridas e libidinosas, que eles intitulavam A ti! A ela! fizeram suspirar e cismar sobre os seus bordados, ou sobre os seus tachos de doce, duas gerações de senhoras... Poucas eram então as soirées de terra pequena, em que lindos olhos negros se não humedecessem, quando um bacharel se erguia, depois do chá, e, com o lenço branco na mão, dizia às senhoras o Noivado do Sepulcro, os dois amorosos esqueletos enganchados um no outro, ou então esse famoso Adeus! que foi nestes remos, durante vinte anos, a expressão oficial, e a única garantida pela academia, das dores da separação e das torturas da ausência. E a quantas janelas de província, por noites claras de Estio, não se veio apoiar um vulto, de xale pelos ombros e os cabelos já dentro da rede, murmurando a Lua de Londres, enquanto por baixo o quintal dormia, e o relógio da casa da câmara ia batendo tristemente as dez! Pois, que se saiba, nenhum destes poetas, nem dos outros que têm sido entre nós os fornecedores selectos da sentimentalidade da província, teve jamais a alegria de receber qualquer prova anónima de simpatia inspirada – uma farta lampreia de ovos ou um par de suspensórios bordados a missanga. E todavia, quem como eles falou de amor e de beijos, de delírios, de corpos enlaçados, de virgens que lhes caíam aos pés, de corações patrícios sangrando por entre as cordas das suas liras? Com todo este tremendo reclamo feito aos seus encantos pessoais e ao seu extraordinário vigor amoroso, nunca houve em toda essa província uma exaltada, uma idealista, uma esposa de boticário, que lhes oferecesse, pelo correio, um coração que ainda não bateu senão por V. Exª!...
Humilhante indiferença para a literatura portuguesa! Alfredo de Musset encontrava, quase todas as manhãs, sobre a mesa do almoço, um bilhete aromatizado, cuja letra assustada e tremida revelava bem que a mão que a traçara estava ainda nervosa de ter tocado as páginas ardentes de Namouna ou de Rolla. As madeixas de cabelos anónimas, remetidas a Balzac pelas suas admiradoras que julgavam reconhecer-se na Mulher de Trinta Anos, no Lírio do Vale ou na duquesa de Maufrigneuse, foram em tal número que o autor do Père Goriot pôde encher com elas esse extraordinário tubo de vidro que lhe servia de bengala – e que não passava, na realidade, de um chouriço de provas de afecto. Estes poetas, aqui, não recebem nada! E como se as nossas concidadãs lhes considerassem os poemas como obras impessoais – coisas mandadas fazer numa fábrica, pelo Governo, para uso da melancolia nacional...
Os únicos escritores portugueses que receberam anonimamente alguma coisa, por meio do correio, fomos nós, Ramalho Ortigão e eu, quando redigíamos ambos as Farpas: recebíamos então regularmente do Brasil – promessas de bordoada.
Foi por isso larga e ruidosa a sensação –quando nos chegou a nova tocante desse testamento, em que seis escritores portugueses eram publicamente coroados com apólices da Dívida Pública. A imprensa, um momento surpreendida, impressionou-se, aqueceu, e fez uma ovação ao Comendador Peres Cardoso; este defunto obscuro saboreou assim, durante semanas, a popularidade de um herói vivo. Às portas das tabacarias, (onde Lisboa faz sobre os seus bocados de impressões os seus bocados de frases) o testamento do Comendador era mais discutido que a questão do Zaire, como se sentisse, enfim, que o que se prende com a nossa literatura, interessa mais a nossa nacionalidade do que a posse ou a perda dessas estúpidas terras negras, que só nos dão humilhações e febres... Nas salas, as senhoras, interessavam-se por este homem: achava-se que ele tinha feito alguma coisa de brilhante e de chique: e desejava-se saber a sua idade, a sua figura, os seus gostos e o romance da sua vida. Não houve então brasileiro residente em Lisboa que não fosse detido, duas e três vezes, no seu caminho, com a mesma pergunta, no mesmo sorriso: «Quem é o Comendador Peres Cardoso? Que sabe V. do Peres Cardoso?...» Este estremecimento de simpatia ondulou até para além da fronteira: os jornais espanhóis falaram do Comendador, chamando-lhe um nobre fidalgo e tratando-o de Mecenas... Era, enfim, um enternecimento, um vasto reconhecimento público – como se o país tivesse pela primeira vez recebido uma afirmação positiva, explícita e visível da sua superioridade intelectual.
Ama Lisboa os seus homens de letras? Não direi que os ame. Mas, há tempos para cá, Lisboa – vendo nas suas ruas os tramways americanos, e os jornais franceses apregoados à porta dos seus teatros, e fotografias de cocottes nas vitrinas das suas lojas – imaginou que isto era a Civilização, e passou a considerar-se a si mesma cidade civilizada. Desde então Lisboa corrigiu-se cuidadosamente de alguns defeitos selvagens, lavou-se, apurou-se, e, para manter a sua linha de capital culta e chique, impôs-se a si mesma certos hábitos e constrangeu-se a certas poses. Lisboa já põe casaca à noite; anda-se arruinando com um boulevard; finge entender de bricabraque; já vai às corridas e já aposta com coragem a sua placa de cinco tostões: – e Lisboa, enfim, já não despreza os seus homens de letras. Aqui há vinte anos, quando se dizia de um desgraçado que ele era um literato – tinha-se dito dele tudo quanto a imaginação burguesa podia conceber de mais humilhante e de mais esmagador. Hoje, se o mesmo sujeito passa na rua, Lisboa (já civilizada, mas encostada ainda às esquinas) observa-o com simpatia e diz com respeito: «E um rapaz de muito talento». Nós agora, aqui em Lisboa, temos todos muito talento!
Enfim, Lisboa ainda se não elevou decerto à compreensão de que uma literatura é a melhor justificação de uma nacionalidade – e muitos anos passarão antes que ela acredite que são os homens de letras que dão, a um país, a sua posição e o seu valor na civilização; que um soneto pode salvar uma nação do esquecimento; e que, se ainda hoje se fala tanto de Roma, é isso devido às odes de um sujeito que no seu tempo não foi nem senador, nem banqueiro, mas um simples bon-vivant, e que se chamava Horácio. Mas é certo que Lisboa já vai considerando os seus literatos como um luxo que se deve ter, alguma coisa de decorativo que fica bem dentro de uma cidade, o quer que seja de brilhante que destaca da melancólica rotina das democracias. O seu sentimento pelos homens de letras, é o de um burguês pelos belos móveis de cetim da sua sala rica: gosta deles, usa-os pouco, e estima sobretudo que os outros lhos gabem. E assim se explica o rumor de simpatia que se elevou, ondulou em torno do testamento do Comendador Peres Cardoso. O público viu nele mais do que um frio papel selado, contendo as últimas vontades de um proprietário generoso. Viu nele um verdadeiro artigo de crítica, um original artigo de crítica em acção, sobre a literatura portuguesa, feito por um homem de gosto, à hora da sua morte. Somente os escritores, ali, não eram julgados por meio de frases.
O Comendador Peres Cardoso não era um Taine, nem um Sainte-Beuve. Era antes um manejador de fundos públicos. Para ele, nem a frase, nem talvez mesmo a ideia constituíam a coisa bela e suprema em que se pode ocupar uma vida de homem: para ele essa coisa suprema e bela estava no papel de crédito de onde se tira um juro. Por isso, quando na sua revista através das letras portuguesas, ele encontrava um poeta ou um romancista que o satisfizesse, não lhe marcava o valor por meio de uma dessas frases, jóias de subtileza, que deixam em torno do artista e da sua obra uma vaga claridade de auréola. A sua aprovação tomava uma outra forma rude e sincera: abria a gaveta e depositava sobre a obra de arte, e com endosso ao artista, duas apólices da Dívida Pública. Assim considerada, a apólice vale bem uma coroa, feita de velhas flores de retórica: e, positivamente, eu não julgo esta maneira de fazer crítica inferior à de Sainte-Beuve e à de Taine! [1]
Nota dos editores de 1912
[editar]- ↑ No fim deste manuscrito há a rubrica (Continua); mas a continuação não apareceu entre os papéis do Autor.