A Alma Encantadora das Ruas/Crimes de Amor

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Ao entrar no seu gabinete, severamente mobiliado de canela escura, o capitão Meira Lima disse:

– Meu caro amigo, tem você ampla liberdade. Pode ver, interrogar, examinar. Há agora na detenção quatrocentos e cinqüenta e quatro detentos, dos quais trezentos e noventa e cinco homens e cinqüenta e nove mulheres. Antigamente, era maior o número. Nós conseguimos que se não mantivessem aqui presos à disposição dos delegados sem processo. Mas, ainda assim, o exército do crime está bem representado. Há gatunos, desordeiros, incendiários, defloradores, mulheres perdidas, vítimas da sorte, criminosos por amor – toda uma flora estranha e curiosa. Estude você os crimes de amor. Lembra-se de um dramalhão do repertório da Ismênia: Aimée, ou o assassino por amor? Não é do seu tempo nem do meu, mas comoveu a geração passada e tem contínuos exemplos nas penitenciárias.

– E nas literaturas.

– Pois vá ver esses criminosos. O assassino por amor é o único delinqüente que confessa o crime.

Alguns chegam mesmo a reviver detalhes insignificantes. Ao passo que os gatunos, os incendiários e os homicidas vulgares, mesmo tendo a cumprir sentenças longas, negam sempre o crime; essas vítimas da paixão não se cansam de contar a sua história, cada vez com maior número de minúcias e mais abundância de memória.

– Pois, vejamos as vítimas do amor!

O capitão mandou chamar o chefe dos guardas, Antônio Barros, e saímos para o pátio, onde os presos serventes mourejavam.

– Há uns cinco casos notáveis, informava-se o guarda. Vamos entrar na primeira galeria.

A galeria é um enorme corredor, ladeado de cubículos engradados. A má disposição de luz, com a claridade da frente e dos fundos e a claridade das prisões, dá a esse corredor uma perpétua atmosfera de meia sombra. Através dos muros brancos ouve-se o sussurro das conversas murmuradas. Barros aponta-me silenciosamente uma das jaulas. Aproximo-me e do fundo vejo surgir um velho preto, magro, seco, com o olhar ardente e a cabeça branca. Pergunto receoso:

– Por que está aqui?

– Porque matei.

Nas prisões há duas coisas revoltantes: o cinismo do que nega e o que confessa como uma afronta. Aquela frase breve tinha, porém, cunho de uma dolorosa sinceridade.

– Eu sou do crime da Estrada Real, continuou o pobre agarrando-se aos varões de ferro. Chamo-me Salvador Firmino, tenho sessenta e três anos.

– E matou?

– Porque ela quis.

E de repente, como se a lembrança da cena o forçasse a se desculpar, a sua cabeça branca curvou-se, os seus olhos lampejaram:

– Quando eu encontrei Silvéria, era casado e feliz. Abandonei a mulher, só para viver com ela. Silvéria tinha dois filhos. Eduquei-os eu, dei-lhes o sustento, o ensino. Uma casa que consegui comprar logo passei para o seu nome, e de tudo eu me lembrava que a tornasse feliz. Silvéria tinha quarenta anos e eu gostava dela. Foi quando apareceu o outro. A mulher ficou com a cabeça virada, já não lhe bastava o meu carinho. Saía só, para passear com ele, não se importava com o passado, não me falava. O desaforo chegou ao ponto do outro vir trazê-la até à porta de casa. As vezes, eu os via de longe e entrava no mato para os não encontrar. Que dor! Eu tinha tanto medo de acabar... Uma noite, ela saiu, esteve na festa de Nossa Senhora e voltou acompanhada até à porta pelo outro. Eu bem que os vira, mas fingi não saber de nada quando entrei em casa. Silvéria conversava com a vizinha e dizia: "Mas se eu já lhe disse que podia vir..." Não pude comer a sopa; fui logo deitar-me. Do quarto via-se a sala, onde dormia o pequeno filho dela,e não demorou muito tempo que a vizinha não colocassse na cama outro travesseiro. Eu estava olhando, à luz da lamparina. Deixei passar alguns minutos e disse: "Ó Silvéria, vem-te deitar." Ela não respondeu. "Silvéria, já disse que viesses dormir!" "Já vou." De repente, os cães, no terreiro, começaram a ladrar. Era um alarido. Saltei da cama, agarrei o revólver. "Quem está aí?" Ela apareceu então: "Deita-te, não é nada." "Qual! Pois se os cães estão ladrando...É alguém." "Que vais fazer?" "Ver". "Não vás, Firmino não vás, não é nada!" E agarrava-se ao meu braço. "Como não hei de ir? Se for gatuno? Talvez esteja a roubar a criação." "Firmino, meu velho, não vás!" Dei-lhe um empurrão, abri a tranca. Na moita, só a lua aclarava as moitas e os cães arfavam cansados. Voltei. Ela estava sentada, chorando. "Tu desconfias de mim!" "Eu? que falso!" "Tu pensavas que era o Herculano!" "Eu? Nem pensava nisso!" "Pensavas, sim! E o melhor é acabar com isso. Vou-me embora!" Ela estava à espera de um pretexto. Para que discussões? Deitei-me outra vez, sem poder dormir. Silvéria continuava na sala, remexendo os móveis. Pela madrugada, já os galos tinham cantado e o luar estava desmaiado, ouvi que abriam a porta. Ergui-me, corri. Ela ia pela estrada, com a trouxa da roupa, ia sem se despedir de mim, que lhe dera tudo, ia embora... Deitei a gritar: "Silvéria! Silvéria! Não vás." "Adeus!" "Mas tu estás maluca, mulher." "Não me fales, estou farta." "Vais para o Herculano?" "Vou, sim, e agora?" "Um homem que podia ser teu filho!" "Talvez seja mais feliz." "Silvéria! Silvéria!" "Basta de conversa fiada..." Eu então senti um desespero que me sacudia os nervos e não pude mais...

Para ouvir a história, encostara a cabeça na pedra em que os varões de ferro se encravavam. O pobre velho tremia num soluço sem fim. Então, eu lhe estendi a mão sem uma palavra, e segui, como se tivesse acordado de um horrível pesadelo. O guarda Barros acompanhava-me.

– Pobre homem! Tentou suicidar-se e é preciso uma vigilância extrema para que aqui não tente outra vez contra a própria vida.

Já os sinais misteriosos com os quais se correspondem os detentos haviam anunciado uma pessoa estranha ao estabelecimento. Em todos os cubículos, nas galerias, correra o som anunciador, e nas grades amontoavam-se as caras dos que não serão em breve da sociedade. Barros parou pouco adiante, apontando-me um homem magro, pálido, com o pescoço embrulhado num cache-nez. O homem corcovava tossindo, e os seus dois olhos brilhavam como os de um tísico. Ao lado, um português bem disposto sorria.

– O seu crime?

– Umas rusgas, tentativa de morte, não fui eu...

– E o seu?

– Matei minha mulher.

Esse também confessava. Então era verdade? O crime de amor é o único confessável? Acerquei-me cheio de simpatia, e o sujeito magro não esperou que eu lhe perguntasse mais nada. Antes, na ânsia de desabafar, atirou o cache-nez às costas e começou:

– Chamo-me Abílio Sarano, sou barbeiro. Sempre fui honesto. É a primeira vez que entro aqui por causa do crime do Catete. Não sabe? V. Sa não sabe? Eu namorei uma moça, d. Geraldina, e com ela casei-me. Dias depois do nosso casamento minha esposa confessou-me que tinha sido gozada por um negociante, amante de sua própria mãe. Esse homem voltava a persegui-la. Era de noite, eu voltara do trabalho e amava minha senhora. Foi como se o mundo todo se desmoronasse. Ela, coitadinha, caíra de joelhos; eu interrogava, querendo saber tudo. "Anda, fala, dize como foi." O negociante, o biltre forçara-a numa cadeira, e ninguém soubera. Quando acabou, eu estava sem forças e chorava. "E agora, Geraldina, que será de nós? que vai ser de nós?" Ela consolava-me. Agora, era esquecer esse sujeito odioso. Acreditei e começamos a viver a triste vida da dúvida. A mãe infame e a família continuavam, porém, a seduzi-la. Uma noite, apesar de ser sábado, eu fui cedo para casa. Geraldina estava nervosa. Conversávamos na sala quando a criada veio dizer que um homem procurava a patroa. "Um homem? Espera, vou eu mesmo ver quem é." No topo da escada estava um cidadão robusto. "d. Geraldina está?". Num relâmpago compreendi que era ele. "d. Geraldina? Ah! canalha, espera que eu te vou dar a Geraldina!" Saquei do revólver, e minha senhora apareceu assustada: "Fuja, seu Álvaro, fuja! Fuja!". Ela mandava-o fugir. Como um louco, ergui a arma. Ele descia os degraus da escada e Geraldina tapara-me a passagem. Detonei uma, duas vezes, descemos de roldão. No patamar, o corpo dele jazia. Matei-o, pensei, acabei a minha vida! E deitei a correr. .. Só mais tarde, soube a verdade. As balas tinham ferido minha mulher. Ele fingira-se morto e escapara são e salvo. É por isso que estou aqui.

O chefe dos guardas chamara-me ao fundo, para a mesa que fica entre as escadas das galerias superiores.

– Há ainda dois casos interessantes: um menino e uma mulher. Quer ver? Vou mandar buscar o menino. Sente-se.

Eu sentei-me. Por todas as janelas gradeadas, o sol entrava claro e benfazejo. Minutos depois, surgia, trazido pelo guarda, um pardinho cor de azeitona, dessas fisionomias honestas, alheias a devassidões.

– Como se chama?

Ele tomou uma posição respeitosa, falando bem, com desembaraço.

– Chamo-me Alfredo Paulino, sim, senhor. Tenho dezoito anos.

– E já casado?

– Casei aos dezesseis. Os meus parentes não queriam, mas depois o pai disse: "É melhor mesmo. Ao menos, não ficas perdido". Eu já ganhava o suficiente para sustentar dignamente a minha família. Casei. Foi nessa ocasião que o Dr. Constantino Néri me ofereceu o emprego de copeiro no palácio de Manaus. Aceitei, e voltávamos para o Rio quando a bordo encontramos um rapaz de dezoito anos, chamado José.

– Era bonito o José?

– Era simpático, sim, senhor, não posso negar. Ficamos tão amigos que, ao chegar, ele foi morar conosco. Primeiro, tudo andou direito, mas depois começaram os cochicos, as frases, as cartas anônimas. Era preciso tomar uma resolução. Disse ao José que não o podia ter mais em casa – por certas dificuldades. Ele saiu, mas eu sabia que a Adélia lhe falava. Passaram-se meses nessa tortura. De vez em quando eu a interrogava e sempre obtinha respostas negativas. Certo dia passei pelo José na rua e ele riu. Em casa pus Adélia em confissão, e ela disse: "É mesmo, fizeste bem em pôr esse homem na rua. Andava-me tentanto e foi tão ingrato que nem se despediu da gente direito." De outra feita, encontrei-os na esquina, conversando e afinal, em casa. Foi então que eu fiquei desatinado.

Oh! o amor! Eu ouvira o amor sexagenário, o amor doloroso, o amor lilliput desse ménage de crianças! Todos tinham chegado ao mesmo fim trágico, ontem criaturas dignas, hoje com as mãos vermelhas de sangue, amanhã condenados por um juiz indiferente. Fiz um gesto. O pequeno insistiu.

– Já que estou aqui, quero trabalhar. Nunca passei sem trabalhar. Peço a V. Sa para ver se entro como servente. Não quero estar no cubículo com aquela gente.

Neste momento traziam uma negra roliça, de dentes afiados, com um sorriso alvar a iluminar-lhe a cara. Era a Herculana, a autora de um crime célebre. Matara o amante enquanto este dormia, acendera todas as velas que encontrara e começara a cantar. O amante tinha vinte e três anos.

– E por que foi?

– Ora, nós brigamos. Eu gostava dele. Nós brigamos. Um dia, ele me disse uma porção de nomes. Eu fiquei calada, mas quando o vi deitado, com o pescoço à mostra, roncando, parece que o diabo me tentou. Eu fui então, com a faca...

Aproximei-me, e bem perto, quase murmurando as palavras:

– Diga: era capaz de fazer o mesmo outra vez, de abrir o pescoço do pobre rapaz, de acender as velas, de cantar? diga: era?

Ela riu como uma fera boceja, e disse num arranco de todo o ser:

– Eu era, sim, senhor...

Que estranha psicologia a dessas flores magníficas do jardim do crime! Que poderoso transformador o amor! Bem dizia Tennyson ao evocá-lo: Thou madest Life, in man and brute, thou madest Death... Eu começara a minha visita à beira do desespero, na púrpura de uma moita de lírios vermelhos.

Com os corações em sangue, vi uma coleção de assassinos, desde um velho lamentável até uma criança honesta, postos fora da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra no mundo. A mulher, que os poetas levam a cantar, Vênus inconsciente e perversa, Lilith, lendária, surgia nessa ruína, perdendo, estragando, corroendo, matando, e eu sentia, no olhar e no gesto de cada uma das vítimas do amor, o desejo de guardar o perfil das suas destruidoras. Oh! esses seres, que Schopenhauer denominava animais de cabelos compridos e idéias curtas, que formidável obra de destruição cometem! São a torrente a que ninguém pode resistir, a força dominadora da maldade, os molochs da alegria. As gerações futuras, livres dos nossos velhos deuses, devem, para que a harmonia as guie, levantar nas cidades um altar votivo onde os adolescentes possam sacrificar, todas as manhãs à ira de Vênus sanguissedenta.

Mas as minhas reflexões pararam. Como tocasse um sino, pela escada da direita desceu um cavalheiro elegante que tapava o rosto com o lenço. E logo depois, grácil e airosa, com um rico vestido preto, caminhou pela galeria, olhando altivamente os presos, uma mulher cuja fronte parecia a pura fronte da inocência.

O guarda curvou-se:

– O Dr. Saturnino e a esposa...

Eu vira o último crime de amor da detenção.