A Brasileira de Prazins/I

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Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira via, 48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis para as arrecadas da sobrinha, e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a liquidar para vir, enfim, descansar‚ de vez, que já tinha para os feijões. Recomendava-lhe que fosse deitando o olho a uma ou duas quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se ainda houvesse conventos è venda, os fosse apalavrando até ele chegar.

— Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos! — exclamou o Simeão, e foi mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Trepa de Santo Tirso e ao ex-capitão-mor de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do mosteiro dos beneditinos, o Pinto Soares, um deputado gordo — a retórica viva do silêncio mais facundo que a língua, de uma grande pacificação sonolenta —, perguntou-lhe se queria vender as quintas dos frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda com espírito e um pouco de ateísmo, respondeu-lhe que não vendia para não transmitir ao comprador a excomunhão que arranjara comprando bens das ordens religiosas. Mas o Simeão, em matéria e raios do Vaticano, tinha na sua estupidez a invenção de Franclim. Continuava a perguntar a toda a gente se sabiam de conventos à venda, ou quintas ai para quarenta mil cruzados.

O Zeferino das Lamelas, o pedreiro que se julgava noivo por ter o negócio fechado num conto quinhentos e pico, procurou o lavrador para se cuidar dos banhos. O velhaco, depois de o ouvir com ares de abstracção palerma, disse-lhe a mastigar as palavras:

— Home, o caso mudou muito de figura. Então você pelos modos ainda não sabe que vem aí o meu irmão de Pernambuco comprar quintas e conventos?

E começou a desenrolar o nastro gorduroso de uma carteira de couro em que tinha recibos da décima, um aviso da junta da paróquia para pagar a côngrua, uma conta de azeviche contra maus-olhados, uma oração manuscrita contra as maleitas, um oficio antigo que o nomeava regedor, de que fora demitido pelos Cabrais, uma velha ressalva de recrutamento, uns versos que ele recitara no Natal, num Auto do Nascimento do Menino, onde ele fazia de rei mago, e finalmente o livrinho de Santa Bárbara, muito sebáceo, com um lustre azulado de graxa e a carta do Feliciano tão suja que parecia ter estado em infusão de pingue.

— Você ainda não ouviu falar desta carta!? — perguntou com sobrançaria impertinente, dando saliva aos dedos para a desdobrar. — Não se fala noutra coisa. Toda a gente sabe que vem aí do Brasil o meu Feliciano para comprar quintas.

— Já me constou — disse o pedreiro —, mas você rói a corda à conta disso, acho eu. — E como o lavrador hesitasse: — O negócio da rapariga está feito ou não está feito? Os homens conhecem-se pela palavra e os bois pelos cornos. Ponha para aí o que tem no interior.

O Simeão mascava, torcia-se, metia com dois dedos a carta estafada na carteira e resmungava:

— Você, enfim, isto é um modo de falar, como o outro que diz; você bem entende que... sim...

— O que eu entendo fisicamente falando é que você não me dá a rapariga.

— Deixe ver, deixe ver o que diz o meu irmão — tartamudeava.

— Sabe você que mais? — volveu iracundo o arquitecto, dando com o olho do machado num canhoto. — Você é de má casta. Não tem palavra nem vergonha nessa cara estanhada. Você é da geração dos Travessas da Serra Negra, e basta... Não lhe digo mais nada... — Alusão pungente a um tio do Simeão, o Barnabé, capitão das maltas de salteadores que infestaram em 1835 aquela serra.

— Veja lá como fala... — interrompeu o lavrador ferido na sua linhagem. — Você não me deite a perder...

E o outro, num ímpeto de consciência robusta:

— Você é um safado. É o que lhe eu digo. Não guarda palavra em contrato que faça. Eu já devia conhecê-lo. Faz para as matanças seis anos que você ajustou comigo uma porca por quatro moedas e foi depois vendê-la ao António do Eido por mais um quartinho. Lembra-se, seu alma de cântaro? — E numa irritação crescente: — Se você não fosse um velho, dava-lhe com este machado na caveira. — E muito esbandalhado nos gestos, com sarcasmo: — Guarde a filha que eu hei-de achar mulher muito melhor que ela pelo preço, ouviu você? que leve o Diabo a burra e mais quem a tange, como o outro que diz. Livrei-me de boa espiga. De você não pode sair coisa boa; e mais da mãe que ela teve, que já lá está a dar contas...

E o lavrador com extremada prudência e na pacatez de um grande espírito de ordem e paz:

— Você não tem que desfazer na minha filha, ouviu?

— Ouvi, que não sou mouco. Ainda ontem a topei na bouça do Reguengo de palestra com o estudante de Vilalva. Espere-lhe a volta. A songuinha, que não olha direito p’ra um home, que anda ali esmadrigada de cabeça ao lado, lá estava de mão na ilharga a dar treta ao estudante, aquele pau de encher tripas, que há-de ser mesmo um padre daquela casta! Olhe se ele lha quer para casar... Pois não quiseste? — e arregaçava a pálpebra do olho esquerdo, mostrando o interior inflamado com uns pontos amarelos, purulentos, indicativos de insuficiente lavagem, um trejeito de garotice. E continuava: — Quem lhe dera dois pontapés, nele e mais nela! — e muito rubro de cólera dava pancadaria nas pedras, nas raízes nodosas dos castanheiros, e metia grande terror no ânimo do Simeão quando faiscava lume nos calhaus com a percussão do machado.

Esta situação prometia acabar pela fuga prudente do pai de Marta, se o estudante de Vilalva não assomasse ao fundo do castanhal com uma matilha de coelheiros que ladravam a um porco muito eriçado, que os esperava com o focinho de esguelha, bufando e grunhindo. O caçador chamava os cães, assobiava, fazia uma bulha convencional para que a Marta o ouvisse.

Ele não tinha visto o pedreiro; os cães é que o viram e deixaram o porco destemido para atacarem o homem, com uma velha birra que lhe tinham. O Zeferino, noutra ocasião, segundo o seu costume, desprezaria a arremetida da matilha; mas, naquela conjuntura de ódio ao caçador, esperou a canzoada com o machado em riste, empunhava o cabo com as mãos cabeludas, e fazia, com o corpo inclinado, avanços provocadores. José Dias chamava os cães obedientes; mas o Zeferino, muito azedo, engelhando na cara uns trejeitos de bazófia, dizia sarcástico:

— Deixe-os vir, deixe-os vir, que o primeiro que chegar faço-lhe saltar os miolos à cara de você.

Que se acomodasse, conciliava pacificamente o estudante — que os cães não tinham outra fala. E o pedreiro insistente, muito arrogante: — Que venham para cá, e mais o dono, o caçador de borra! — e dizia palavradas canalhas, muito danado porque vira aparecer a Marta na varanda, a fazer meia com a cesta do novelo no braço.

— Ó Sr. Zeferino, fale bem, ponha cobro na língua advertiu o José Dias, com uma serenidade de mau agoiro — quando eu lhe ladrar então se fará com o machado para mim. Os cães ladraram-lhe; eu chamei-os, que mais quer você, homem? Siga o seu caminho.

— O meu caminho? o meu caminho é este — disse batendo com o machado na terra. — Quer você mandar-me embora daqui? Ora não seja tolo.

A presença da moça enfurecia-o; contra o seu costume, sentia-se valente. O amor, como um vinho indigesto, dava-lhe a coragem interina dos bêbedos, e berrava:

— Se é homem, venha para cá! Você manda-me sair daqui, seu pedaço-de-asno? E o estudante, já amarelo:

— Eu não o mando sair daí, nem lhe consinto que me chame asno. Olhe que eu largo a espingarda, tiro-lhe das unhas o machado e dou-lhe com ele.

— Ó alma do Diabo! — exclamou o pedreiro crescendo para o caçador.

Nisto, um dos cães, atravessado de cão de gado e cadela coelheira, que aprendera a morder nas ocasiões razoáveis, atirou-se-lhe ao assento das calças de estopa e puxou até lhe descobrir a epiderme da nádega esquerda.

O pedreiro floreava debalde o machado; os golpes cortavam o ar, e nem de leve apanhavam o cão, que dava pulos de esconso, atacando-o pela nádega direita. A restante matilha fraternizara com o outro e juntavam os focinhos num complexo de dentuças minacíssimas com os olhos sanguíneos cravados nos movimentos do machado. José Dias, no entanto, espancava a cainçada, e Marta não sabia se havia de descer para ajudar o pai a acomodar a bulha, ou se havia de cair na varanda a rir-se. Ela sentia-se envergonhada do espectáculo que exibia a calça esfarrapada; mas não havia pudor que resistisse àquilo. O pedreiro sabia que o cão lhe chegara um pouco à calça; mas, no calor da luta, não sentira esfriar-se-lhe a pele descoberta, nem se lembrou que andava sem ceroulas. Depois, como sentisse uma frescura extraordinária na cútis, exposta ao contacto da atmosfera, levou a mão conscienciosamente ao sítio, e achou em si aquele espécime obsoleto do Adão primitivamente inocente. No entanto, Marta, não podendo já consigo, entalada de riso, fugira da varanda e atirara-se de bruços sobre a cama, a rebolar-se, a espernear como se tivesse uma cólica. O estudante retirou-se assobiando à matilha ainda refilada às nádegas do homem. O Simeão coçava-se com as dez unhas e dizia velhacamente comovido:

— Meta-se aí na corte da égua que eu vou-lhe buscar umas calças, seu Zeferino, ou dá-se-lhe aí quatro pontos p’ra remediar. Dê cá as calças, e não se aflija...

O pedreiro respondeu-lhe porcamente e de modo tão trivial, que o outro lhe replicou:

—Vá você!

E meteu-se em casa como quem receava contra-réplica menos suja e mais dura.