A Brasileira de Prazins/XII
Depois, bem sabem, senhores, como aquele padre Rocha despenhou abruptamente o desfecho da farsa, cuidando que vingava a moral e punia com degredo o celerado que infamava o sacratíssimo nome de el-rei D. Miguel. No trânsito para a Relação, a meia légua, na estrada do Porto, o Veríssimo, com delicadas maneiras e o seu aspecto venerável, obteve que o sargento da escolta lhe permitisse alugar a mula de um almocreve que seguia a mesma direcção. Cavalgou na albarda da mula arreatada com chocalho, sem estribos; empunhou a corda do cabresto, e ladeado de doze praças do 8, entrou ao cair da tarde em Famalicão.
O Torres de Castelões, o administrador, legitimista no fundo, bom lavrador, mandou-lhe cama para a cadeia e permitiu-lhe que ceasse com uni amigo que o seguira de longe. Era o Nunes, o Pílades das horas certas e incertas. Orestes estava desanimado; queixava-se das fantasias do outro, considerava-se perdido.
— Pobre Libânia! — deplorava — quando ela souber que eu estou na Relação!
Como tinha alguma prática do foro criminal, o Nunes consolava-o: que não havia matéria para pronúncia; e, quando fosse pronunciado, a Relação o despronunciaria.
— Eu é que vou ser o teu procurador, se me não prenderem — acrescentava, muito confiado na lei e na sua actividade. — Quanto à fantasia do conto de réis, já não falta tudo, porque tens as cem peças das Botelhas. Se te deixam ser rei mais um dia ou dois, tinhas nesta santa hora 3750$000 réis.
— Tu gracejas e eu vou esperar na cadeia uma sentença de degredo — atalhou o Veríssimo, naquela estranha situação, nunca experimentada, de ouvir os passes da sentinela rentes com a grade do seu quarto.
Às oito da noite, fechara-se a porta da cadeia, e Nunes saíra triste, com um pungitivo arrependimento de meter o amigo naquela rascada.
Ao escurecer do dia seguinte, o preso foi conduzido do Governo Civil do Porto para a Relação com um mandado do carcereiro na baioneta do sargento. Quando saía do Governo Civil, já Libânia e o Munes, que se antecipara a procurá-la em Ramalde, o esperavam. A Libânia era uma forte mulher para os trabalhos da vida. Fitou-o com um semblante aceso de coragem, um sorriso afoito, e disse-lhe muito animosa:
— Alma até Almeida e de Almeida p’ra diente alma sempre!
Veríssimo ocupou o quarto de malta nº 2, com uma rasgada janela sobre o Douro, um quarto cheio de luz e de sol, de onde tinha saído o Gravito para a forca — elucidou o carcereiro, e mostrou-lhe no grosso alisar da porta as iniciais de alguns padecentes com a data de 1829.
A Libânia e mais o Torcato pernoitaram na Estalagem do Cantinho, na Rua do Loureiro, e passavam o mais do tempo na Relação. Ao fim de seis dias já o Munes requeria a soltura do preso, por falta de nota da culpa; mas a pronúncia chegou ao oitavo dia, da comarca da Póvoa. O preso agravou para a Relação. Era juiz-relator do agravo o conselheiro Fortunato Leite, natural do Douro, que, quinze anos antes, no reinado de D. Miguel, tinha sido amigo de Norberto Borges, e lhe devera a fineza rara de o avisar na véspera do dia em que lhe havia de cercar a casa por ordem do facinoroso corregedor de Vila Real, o Albano, que os liberais mataram, no meio de uma escolta, em 1836. Quando o relator folheava o processo, os apelidos do preso, a naturalidade, os pormenores, sugeriram-lhe memórias da sua perseguição em 1831, e o salvar-se tão extraordinariamente pela amizade do meirinho-geral. Informouse e evidenciou que o Norberto Horges, de Alvações do Corgo, era pai do preso. Estava pois salvo o filho do seu benfeitor, sem grande violência à justiça, porque a pronúncia fora precipitada, irregular, as testemunhas citadas — os padres suspeitos de frequentarem a residência de Calvos — nada depuseram que provasse projectos revolucionários do agravante.
E lavrou o acórdão muito recheado de grifo: — Que agravado era o agravante pelo juiz da comarca de Lanhoso, porquanto na pronúncia de primeira instância haviam sido desprezadas as formalidades mais curiais, pois que nenhuma testemunha depusera que o agravante se inculcasse D. Miguel para perturbar a ordem constituída, chamando o povo à revolta; e das respostas do agravante no interrogatório a que procedeu a autoridade administrativa, constava que o preso quase que fora obrigado por um clérigo estúpido e esturrado miguelista a deixar-se chamar D. Miguel I; mas não constava nem se provava que o agravante se aproveitasse de tal fraude e impostura para extorquir valores aos seus estúpidos cortesãos; o que decerto praticada um gamenho decidido a fingir-se D. Miguel para os espoliar. Que a pronúncia fora iníqua, atabafada apaixonadamente, e sem base, visto que nada se colhia dos depoimentos das testemunhas, e apenas se fez obra por hipóteses e indícios, fundada num rol de indivíduos alarves, a quem o suposto monarca fazia mercês de comendas, de títulos, de patentes e até de mitras, sem que daí resultasse alvoroto nem leve perturbação na ordem pública, nem mesmamente dano para os mencionados burros que pediam as mercês, e que deviam ser pronunciados em primeira instância, se a corte de São Gens de Calvos não fosse uma farsa de Entrudo.
E, dilatando-se filosoficamente e chistoso, o juiz-relator adicionava, aconselhando, que seda bom e proveitoso que nas tenras selváticas do Minho se espalhassem muitos Miguéis daquela casta e feitio até que os novos Sebastianistas se convencessem de que somente assim poderiam arranjar um Miguel que lhes desse comendas, títulos, postos militares e prelazias.
Os desembargadores, com o seu rapé engatilhado aos narizes, riram muito do final do acórdão, e, sorvidas as pitadas sibilantes, assinaram por unanimidade.
Reformada a sentença e pagas as custas pelo juiz da primeira Instância, Veríssimo foi posto em liberdade; e, quando chegou ao escritório do carcereiro Melo para se despedir, encontrou a Libânia de Covas desmaiada de júbilo, nos braços da mulher do chaveiro. Como era feliz, deixou-se ser mulher — chorou; e quando lhe cumpria dar ânimo ao preso, no pátio do Governo Civil, riu-se com a valentia dos homens extraordinários.
O conselheiro Leite recomendou ao Munes procurador que lhe mandasse a casa o Veríssimo. O filho de Norberto apresentou-se timorato, receoso, com maneiras submissas, mas dignas de um Borges Camelo infeliz.
O desembargador explicou-lhe que o chamara para lhe fazer conhecer a dívida que lhe pagou, posto que as situações fossem muito diversas. Improperou-lhe serenamente o seu delito; estigmatizou a acção de permitir que o julgassem D. Miguel; falou acerbamente contra este tirano parricida, incestuoso, canalha, e terminou por lhe aconselhar o trilho da honra, o trabalho, e a expiação das suas irregularidades, mostrando-se digno da compaixão que lhe inspirara, despronunciando-o. Veríssimo beijou-lhe a mão, e recusou dez pintos que o conselheiro lhe dava — que, se um dia necessitasse, lhos pediria. E o Fortunato Leite, a rir:
— Então as bestas dos abades sempre caíram? Fez você muito bem. Devia esfolar essas cavalgaduras!
O Veríssimo recuava muito agradecido.
O conselheiro Fortunato exerceu uma enérgica influência vitalizadora na nova encerebração de Veríssimo Borges e bastante na do Torcato Munes Elias.
Por mediação do bondoso desembargador, obteve o Nunes alvará de solicitador de causas nos auditórios do Porto. Ganhou boas relações. Era esperto, zeloso e pagava-se regularmente. Chamou para a cidade a mulher e os dois filhos Alugaram casa na Rua de Trás as duas famílias. Davam-se muito bem, e gastavam economicamente os 750$000 réis das Botelhas, de meias com os salários de procurador. O Veríssimo frequentava à noite o café das Hortas, jogava o quino e, de vez em quando, ia ao café da Rua de Santo António ouvir os demagogos dos manos Passos, que o festejavam e catequizavam. Dava-se com os Navarros, com o Almeida Penha, com os Peixotos vidraceiros Ele, sobpondo ao reconhecimento os escrúpulos de espião, contava ao conselheiro Leite, cabralista intransigente, os planos dos setembristas, os clubes, as lojas de carbonários, as tramóias arranjadas em Braga pelo barão do Casal, muito setembrista, padre Alves Vicente, de combinação com o Passos José, com o Faria Guimarães, com o médico Resende, com o Damásio, com o Alves Marfins. O governador civil, visconde de Beire, estava em dia com as conspirações da Viela da Neta — aquele baluarte da Liberdade que demorava paredes meias com os escombros do Deboche, não grifado, muito à francesa; —tudo acabado hoje em dia, e soterrado debaixo de uma loja de modas, de um café e de uma taverna — o vitalismo soez e chato da decadência.
Veríssimo arrecadava uma gratificação, umas seis libras mensais, mesquinha paga dos serviços que fazia à ordem, à tranquilidade cívica da Rua das Flores e das Congostas.
Na contra-revolução de 9 de Outubro de 46, quando foi preso o duque, José Passos encontrou o Veríssimo na Praça Nova, chamou-lhe patriota, pôs-lhe a mão no ombro, sacudiu-o pelas lapelas, e disse-lhe que movesse, que agitasse as massas, porque o duque estava a desembarcar. Os sinos tangiam a rebate, a plebe ondeava para Vilar, num restrugir de tempestade, quando o Veríssimo e o Nunes procuraram o conselheiro Fortunato, que tiritava de medo com as suas enxúndias espapadas entre as filhas, numa consternação. Disseram-lhe que se iam armar para se constituírem sentinelas da segurança do seu benfeitor. O conselheiro abraçou-os muito comovido, numa excitação apopléctica.
Depois formaram-se os batalhões nacionais. Veríssimo e Torcato foram promovidos a tenentes do batalhão da Vista Alegre. Quando foi da refrega de Valpaços tinham compreendido inteligentemente que a retirada de Sá da Bandeira, da veiga de Chaves, era a fraqueza precursora de uma derrota. Conheciam o pérfido espírito do 15 e do 3 de infantaria — previram a traição. Tinham pensado maduramente os dois tenentes, sem entusiasmo, com a prudência dos quarenta anos apalpados pelos reveses de vinte batalhas. Resolveram desertar quando os batalhões de linha se passassem para as forças reais. Travou-se o encontro de Valpaços. Com os dois regimentos que mim turbilhão e a gritos de Viva a Rainha se abraçaram às vanguardas do Casal, também eles, por debaixo do fogo do seu batalhão, se passaram, dando vivas à Carta Constitucional. Eram a obra da prudência e do conselheiro Fortunato Leite.
Quando o barão de Casal foi espostejar os miguelistas a Braga, os dois tenentes apresentados pediram vénia ao general para servirem na coluna do visconde de Vinhais; — que tinham repugnância de pelejar cara a cara com os seus parentes bandeados nas guerrilhas do padre Casimiro José Vieira e do padre José da Laje. A vergonha impunhalhes o dever de doirar a mentira. Não lhes pareceu decente irem acutilar nas mas de Braga o Cristóvão Bezerra, de Bouro, e o abade de Calvos e o padre Manuel das Agras. Não poderiam ver sem mágoa a soldadesca a dar saque aos dinheiros das senhoras Botelhas.
Ainda assim não puderam esquivar-se a perseguir os realistas da comitiva de MacDonald, desde Vila Real até Sabroso; mas não desembainharam as espadas, porque o visconde de Vinhais os admitiu ao seu quartel-general, e os cadáveres que encontraram pela serra do Mezio até Sabroso, onde pereceu acutilado o caudilho escocês, eram façanhas das guardas avançadas. Os dois tenentes não deram nem tiraram gota de sangue nesta luta fratricida. Um triunfo a seco.
Concluída a guerra civil pelo convénio de Gramido, depositaram as armas e pediram empregos. O conselheiro Leite, o Casal, o Vinhais, o Alpendurada, o Carneiro Geraldes, o Joaquim Torcato, o centro cabralista recomendou-os à consideração magnânima de Sua Majestade. O Nunes, como sabia do foro, foi despachado escrivão de direito para a Estremadura, Veríssimo Borges obteve uma fiscalização rendosa dos tabacos e sabão em Trás-os-Montes; depois foi transferido, com vantagem, para a alfândega de Viana do Minho; e por último para uma direcção aduaneira do Ultramar. Ainda vivia há poucos anos, porque um jornal da localidade, debaixo de um símbolo fúnebre — um anjo curvado e deplorativo sobre a sua urna, enlutada pelas madeixas de um chorão — publicava:
Veríssimo Borges Camelo da Mesquita dá parte aos seus numerosos e respeitáveis amigos que foi Deus servida chamar à sua divina presença, hoje pelas 5 horas da manhã, sua chorada esposa D. Libânia de Covas Borges da Mesquita, a cujo cadáver, etc. Pelo seu profundo estado de consternação pede desculpa de cumprimentos.
O jornal, depois de uns adjectivos lúgubres e velhos como a morte, acrescentava:
A Ex.ma Srª D. Libânia, que todos choramos com seu Ex.mo viúvo, era uma senhora de esmeradíssima educação, pertencia à ilustre família dos Covas; — modelo no trato insinuante com que cativava o respeito e a amizade de todas as pessoas desta Ilha, que tiveram a fortuna de a conhecer. Receba S. Ex.mo Sr. Conselheiro-Director os nossos mais sentidos pêsames pela desgraça que acaba de o ferir implacavelmente.
Veríssimo e Nunes podem ainda viver, porque eram robustos de corpo e de alma.