A Cidade e as Serras/III

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III


No 202, todas as manhãs, ás nove horas, depois do meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacintho. Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto n’um roupão branco de pello de cabra do Thibet, diante da sua mesa de toilette, toda de crystal, (por causa dos microbios) e atulhada com esses utensilios de tartaruga, marfim, prata, aço e madreperola que o homem do seculo XIX necessita para não desfeiar o conjuncto sumptuario da Civilisação e manter n’ella o seu Typo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto — porque as havia largas como a roda massiça d’um carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfange d’um mouro; concavas, em fórma de telha aldeã; ponteagudas em feitio de folha de hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem pennugem de rôla! De todas, fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se utilisava o meu Jacintho. E assim, em face ao espelho emmoldurado de folhedos de prata, permanecia este Principe passando pellos sobre o seu pello durante quatorze minutos.

No emtanto o Grillo e outro escudeiro, por traz dos biombos de Kioto, de sedas lavradas, manobravam, com pericia e vigor, os apparelhos do lavatorio — que era apenas um resumo das machinas monumentaes da Sala de Banho, a mais estremada maravilha do 202. N’estes marmores simplificados existiam unicamente dois jactos graduados desde zero até cem; as duas duchas, fina e grossa, para a cabeça; a fonte esterilisada para os dentes; o repuxo borbulhante para a barba; e ainda botões discretos, que, roçados, desencadeavam esguichos, cascatas cantantes, ou um leve orvalho estival. D’esse recanto temeroso, onde delgados tubos mantinham em disciplina e servidão tantas aguas ferventes, tantas aguas violentas, sahia emfim o meu Jacintho enxugando as mãos a uma toalha de felpo, a uma toalha de linho, a outra de corda entrançada para restabelecer a circulação, a outra de sêda frouxa para repolir a pelle. Depois d’este rito derradeiro que lhe arrancava ora um suspiro, ora um bocejo, Jacintho, estendido n’um divan, folheava uma Agenda, onde se arrolavam, inscriptas pelo Grillo ou por elle, as occupações do seu dia, tão numerosas por vezes que cobriam duas laudas.

Todas ellas se prendiam á sua sociabilidade, á sua civilisação muito complexa, ou a interesses que o meu Principe, n’esses sete annos, creára para viver em mais consciente communhão com todas as funcções da Cidade. (Jacintho com effeito era presidente do Club da Espada e Alvo; commanditario do Jornal o Boulevard; director da Companhia dos Telephones de Constantinopla; socio dos Bazares unidos da Arte Espiritualista; membro do Comité de Iniciação das Religiões Esotericas, etc.) Nenhuma d’estas occupações parecia porém aprazivel ao meu amigo — porque, apesar da mansidão e harmonia dos seus modos, frequentemente arremessava para o tapete, n’uma rebellião de homem livre, aquella Agenda que o escravisava. E n’uma d’essas manhãs (de vento e neve), apanhando eu o livro oppressivo, encadernado em pellica, de um carinhoso tom de rosa murcha — descobri que o meu Jacintho devia depois do almoço fazer uma visita na rua da Universidade, outra no Parque Monceau, outra entre os arvoredos remotos da Muette; assistir por fidelidade a uma votação no Club; acompanhar Madame d’Oriol a uma exposição de leques; escolher um presente de noivado para a sobrinha dos Trèves; comparecer no funeral do velho conde de Malville; presidir um tribunal de honra n’uma questão de roubalheira, entre cavalheiros, ao ecarté... E ainda se acavallavam outras indicações, escrivinhadas por Jacintho a lapis: — «Carroceiro — Five-oclock dos Ephrains — A pequena das Variedades — Levar a nota ao jornal...» Considerei o meu Principe. Estirado no divan, d’olhos miserrimamente cerrados, bocejava, n’um bocejo immenso e mudo.

Mas os affazeres de Jacintho começavam logo no 202, cedo, depois do banho. Desde as oito horas a campainha do telephone repicava por elle, com impaciencia, quasi com colera, como por um escravo tardio. E mal enxugado, dentro do seu roupão de pello de cabra do Thibet ou de grossas pyjamas de pelucia côr d’ouro-velho, constantemente sahia ao corredor a cochichar com sujeitos tão apressados, que conservavam na mão o guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um d’esses, sempre presente (e que pertencia decerto aos Telephones de Constantinopla), era temeroso — todo elle chupado, tisnado, com maus dentes, sobraçando uma enorme pasta sebenta, e dardejando, d’entre a alta gola d’uma pelissa poida, como da abertura d’um covil, dous olhinhos tôrvos e de rapina. Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro apparecia, com bilhetes n’uma salva... Depois eram fornecedores d’Industria e d’Arte; negociantes de cavallos, rubicundos e de paletot branco; inventores com grossos rolos de papel; alfarrabistas trazendo na algibeira uma edição «unica», quasi inverosimil, de Ulrich Zell ou do Lapidanus. Jacintho circulava estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telephone, desatando nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum embuscado que surdia das sombras da antecamara, estendia como um trabuco o seu memorial ou o seu catalogo!

Ao meio dia, um tam-tam argentino e melancholico ressoava, chamando ao almoço. Com o Figaro ou as Novidades abertas sobre o prato, eu esperava sempre meia hora pelo meu Principe, que entrava n’uma rajada, consultando o relogio, exhalando com a face moída o seu queixume eterno:

— Que massada! E depois uma noite abominavel, enrodilhada em sonhos... Tomei sulforal, chamei o Grillo para me esfregar com therebentina... Uma sécca!

Espalhava pela mesa um olhar já farto. Nenhum prato, por mais engenhoso, o seduzia; — e, como através do seu tumulto matinal fumava incontaveis cigarretes que o resequiam, começava por se encharcar com um immenso copo d’agua oxygenada, ou carbonatada, ou gazoza, misturada d’um cognac raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Syracusa. Depois, á pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava aqui e além uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta; — e reclamava impacientemente o café, um café de Moka, mandado cada mez por um feitor do Dedjah, fervido á turca, muito espesso, que elle remexia com um pau de canella!

— E tu, Zé Fernandes, que vaes tu fazer?

— Eu?

Recostado na cadeira, com delicias, os dedos mettidos nas cavas do collete:

— Vou vadiar, regaladamente, como um cão natural!

O meu sollicito amigo, remexendo o café com o pau de canella, rebuscava através da numerosa Civilisação da Cidade uma occupação que me encantasse. Mas apenas suggeria uma Exposição, ou uma Conferencia, ou monumentos, ou passeios, logo encolhia os hombros desconsolados:

— Por fim nem vale a pena, é uma sécca!

Accendia outra das cigarretes russas, onde rebrilhava o seu nome, impresso a ouro na mortalha. Torcendo, n’uma pressa nervosa, os fios do bigode, ainda escutava, á porta da Bibliotheca, o seu procurador, o nedio e magestoso Laporte. E emfim, seguido d’um criado, que sobraçava um maço tremendo de jornaes para lhe abastecer o coupé, o Principe da Gran-Ventura mergulhava na Cidade.


Quando o dia social de Jacintho se apresentava mais desafogado, e o céo de Março nos concedia caridosamente um pouco de azul agoado, sahiamos depois d’almoço, a pé, através de Paris. Estes lentos e errantes passeios eram outr’ora, na nossa edade de Estudantes, um gozo muito querido de Jacintho — porque n’elles mais intensamente e mais minuciosamente saboreava a Cidade. Agora porém, apesar da minha companhia, só lhe davam uma impaciencia e uma fadiga que desoladoramente destoava do antigo, illuminado extasi. Com espanto (mesmo com dôr, porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar d’uma crença) descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos Boulevards, que o denso formigueiro humano sobre o asphalto, e a torrente sombria dos trens sobre o macadam, affligiam o meu amigo pela brutalidade da sua pressa, do seu egoismo, e do seu estridor. Encostado e como refugiado no meu braço, este Jacintho novo começou a lamentar que as ruas, na nossa Civilisação, não fossem calçadas de gutta-percha! E a gutta-percha claramente representava, para o meu amigo, a substancia discreta que amortece o choque e a rudeza das cousas. Oh maravilha! Jacintho querendo borracha, a borracha isoladora, entre a sua sensibilidade e as funcções da Cidade! Depois, nem me permittiu pasmar diante d’aquellas dourejadas e espelhadas lojas que elle outr’ora considerava como os «preciosos museus do seculo XIX»...

— Não vale a pena, Zé Fernandes. Ha uma immensa pobreza e seccura d’invenção! Sempre os mesmos florões Luiz XV, sempre as mesmas pelucias... Não vale a pena!

Eu arregalava os olhos para este transformado Jacintho. E sobretudo me impressionava o seu horror pela Multidão — por certos effeitos da Multidão, só para elle sensiveis, e a que chamava os «sulcos».

— Tu não os sentes, Zé Fernandes. Vens das serras... Pois constituem o rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! É um perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se installa no olfacto, e estraga para todo o dia o ar respiravel. É um dito que se surprehende n’um grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de estupidez, e que nos fica collado á alma, como um salpico, lembrando a immensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma figura intoleravel pela pretenção, ou pelo mau-gosto, ou pela impertinencia, ou pela rellice, ou pela dureza, e de que se não póde sacudir mais a visão repulsiva... Um pavor, estes sulcos, Zé Fernandes! De resto, que diabo, são as pequeninas miserias d’uma Civilisação deliciosa!

Tudo isto era especioso, talvez pueril — mas para mim revelava, n’aquelle chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da devoção. N’essa mesma tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo de caliça parda, erriçado de chaminés de lata negra, com as janellas sempre fechadas, as cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só tijolo, só ferro, só argamassa, só estuque: linhas hirtas, angulos asperos: tudo secco, tudo rigido. E dos chãos aos telhados, por toda a fachada, tapando as varandas, comendo os muros, Taboletas, Taboletas...

— Oh, este Paris, Jacintho, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro bazar!

E, mais para sondar o meu Principe do que por persuasão, insisti na fealdade e tristeza d’estes predios, duros armazens, cujos andares são prateleiras onde se apilha humanidade! E uma humanidade impiedosamente catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas prateleiras baixas, bem envernisadas. A relles e de trabalho nos altos, nos desvãos, sobre pranchas de pinho nú, entre o pó e a traça...

Jacintho murmurou, com a face arripiada:

— É feio, é muito feio!

E accudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:

— Mas que maravilhoso organismo, Zé Fernandes! Que solidez! Que producção!

Onde Jacintho me parecia mais renegado era na sua antiga e quasi religiosa affeição pelo Bosque de Bolonha. Quando moço, elle construira sobre o Bosque theorias complicadas e consideraveis. E sustentava, com olhos rutilantes de fanatico, que no Bosque a Cidade cada tarde ia retemperar salutarmente a sua força, recebendo, pela presença das suas Duquezas, das suas Cortezãs, dos seus Politicos, dos seus Financeiros, dos seus Generaes, dos seus Academicos, dos seus Artistas, dos seus Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu pessoal se mantinha em numero, em vitalidade, em funcção, e que nenhum elemento da sua grandeza desapparecera ou deperecera! «Ir ao Bois» constituia então para o meu Principe um acto de consciencia. E voltava sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuia todos os seus astros, garantindo a eternidade da sua luz!

Agora, porém, era sem fervor, arrastadamente, que elle me levava ao Bosque, onde eu, aproveitando a clemencia d’Abril, tentava enganar a minha saudade d’arvoredos. Emquanto subiamos, ao trote nobre das suas egoas lustrosas, a Avenida dos Campos-Elyseos e a do Bosque, rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos, Jacintho, soprando o fumo da cigarrete pelas vidraças abertas do coupé, permanecia o bom camarada, de veia amavel, com quem era doce philosophar através de Paris. Mas logo que passavamos as grades douradas do Bosque, e penetravamos na Avenida das Acacias, e enfiavamos na lenta fila dos trens de luxo e de praça, sob o silencio decoroso, apenas cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia, — o meu Principe emmudecia, mollemente engilhado no fundo das almofadas, d’onde só despegava a face para escancarar bocejos de fartura. Pelo antigo habito de verificar a presença confortadora do «pessoal, dos astros», ainda, por vezes, apontava para algum coupé ou vittoria rodando com rodar rangente n’outra arrastada fila — e murmurava um nome. E assim fui conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro Ephraim; e o longo nariz patricio de Madame de Trèves abrigando um sorriso perenne; e as bochechas flacidas do poeta neo-platonico Dornan, sempre espapado no fundo de fiacres; e os longos bandòs pre-raphaelitas e negros de Madame Verghane; e o monoculo defumado do director do Boulevard; e o bigodinho vencedor do Duque de Marizac, reinando de cima do seu phaeton de guerra; e ainda outros sorrisos immoveis, e barbichas á Renascença, e palpebras amortecidas, e olhos farejantes, e pelles empoadas d’arroz, que eram todas illustres e da intimidade do meu Principe. Mas, do topo da Avenida das Acacias, recomeçavamos a descer, em passo sopeado, esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia, calhambeque atraz de landau, vittoria atraz de fiacre, fatalmente reviamos o binoculo sombrio do homem do Boulevard, e os bandòs furiosamente negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do neo-platonico, e a barba talmudica, e todas aquellas figuras, d’uma immobilidade de cera, super-conhecidas do meu camarada, recruzadas cada tarde através de revividos annos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo pó d’arroz, na mesma immobilidade de cera; então Jacintho não se continha, gritava ao cocheiro:

— Para casa, depressa!

E era pela Avenida do Bosque, pelos Campos-Elyseos, uma fuga ardente das egoas a quem a lentidão sopeada, n’um roer de freios, entre outras egoas tambem d’ellas super-conhecidas, lançavam n’uma exasperação comparavel á de Jacintho.

Para o sondar eu denegria o Bosque:

— Já não é tão divertido, perdeu o brilho!...

Elle acudia, timidamente:

— Não, é agradavel, não ha nada mais agradavel; mas...

E accusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus affazeres. Recolhiamos então ao 202, onde, com effeito, em breve embrulhado no seu roupão branco, diante da mesa de crystal, entre a legião das escovas, com toda a electricidade refulgindo, o meu Principe se começava a adornar para o serviço social da noite.

E foi justamente numa d’essas noites (um sabado) que nós passamos, n’aquelle quarto tão civilisado e protegido, por um d’esses brutos e revoltos terrores como só os produz a ferocidade dos Elementos. Já tarde, á pressa (jantavamos com Marizac no Club para o acompanhar depois ao Lohengrin na Opera) Jacintho arrocheava o nó da gravata branca — quando no lavatorio, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jacto d’agua a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma nevoa densa de vapor quente abafou as luzes — e, perdidos n’ella, sentiamos, por entre os gritos do escudeiro e do Grillo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva que escaldava. Sob os pés o tapete ensopado era uma lama ardente. E como se todas as forças da natureza, submettidas ao serviço de Jacintho, se agitassem, animadas por aquella rebellião da agua — ouvimos roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes electricos sulcaram faiscas ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a nevoa grossa. Por todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão, attrahidas pela fumarada que se escapava das janellas, estacionava policia, uma multidão. E na escada esbarrei com um reporter, de chapéo para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente «se havia mortos?»

Domada a agua, clareada a bruma, vim encontrar Jacintho no meio do quarto, em ceroulas, livido:

— Oh Zé Fernandes, esta nossa industria!... Que impotencia, que impotencia! Pela segunda vez, este desastre! E agora, apparelhos perfeitos, um processo novo...

— E eu encharcado por esse processo novo! E sem outra casaca!

Em redor, as nobres sêdas bordadas, os brocateis Luiz XIII, cobertos de manchas negras, fumegavam. O meu Principe, enfiado, enchugava uma photographia de Madame d’Oriol, d’hombros decotados, que o jorro bruto maculára d’empolas. E eu, com rancor, pensava que na minha Guiães a agua aquecia em seguras panellas — e subia ao meu lavatorio, pela mão forte da Catharina, em seguras infusas! Não jantamos com o duque de Marizac, no Club. E, na Opera, nem saboreei Lohengrin e a sua branca alma e o seu branco cysne e as suas brancas armas — entallado, aperreado, cortado nos sovacos pela casaca que Jacintho me emprestára e que rescendia estonteadoramente a flores de Nessari.


No domingo, muito cedo, o Grillo, que na véspera escaldára as mãos e as trazia embrulhadas em sêda, penetrou no meu quarto, descerrou as cortinas, e á beira do leito, com o seu radiante sorriso de preto:

— Vem no Figaro!

Desdobrou triumphalmente o jornal. Eram, nos Echos, doze linhas, onde as nossas aguas rugiam e espadavam, com tanta magnificencia e tanta publicidade, que tambem sorrí, deleitado.

— E toda a manhã, o telephone, siô Fernandes! exclamava o Grillo, rebrilhando em ebano. A quererem saber, a quererem saber... «Está lá? Está escaldado?» Paris afflicto, siô Fernandes!

O telephone, com effeito, repicava, insaciavel. E quando desci para o almoço, a toalha desapparecia sob uma camada de telegrammas, que o meu Principe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra a «massada». Só desannuviou, ao ler um d’esses papeis azues, que atirou para cima do meu prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manhã sorriramos, o Grillo e eu:

— É do Gran-Duque Casimiro... Ratão amavel! Coitado!

Saboreei, através dos ovos, o telegramma de S. Alteza. «O que! o meu Jacintho inundado! Muito chic, nos Campos-Elyseos! Não volto ao 202 sem boia de salvação! Compassivo abraço! Casimiro...» Murmurei tambem com deferencia: — «Amavel! Coitado!» Depois, revolvendo lentamente o montão de telegrammas que se alastrava até ao meu copo:

— Oh Jacintho! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve, te telephona, te telegrapha, te...?

— Diana?... Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!

— Tua?

— Minha, minha... Não! tenho um bocado.

E como eu lamentava que o meu Principe, senhor tão rico e de tão fino orgulho, por economia d’uma gamella propria chafurdasse com outros n’uma gamella publica — Jacintho levantou os hombros, com um camarão espetado no garfo:

— Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa ter cortezãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris, n’esta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os seus diamantes, os seus cavallos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolencia, é necessario que se aggremiem umas poucas de fortunas, se forme um syndicato! Somos uns sete, no Club. Eu pago um bocado... Mas meramente por Civismo, para dotar a cidade com uma cocotte monumental. De resto não chafurdo. Pobre Diana!... Dos hombros para baixo nem sei se tem a pelle côr de neve ou côr de limão.

Arregalei um olho divertido:

— Dos hombros para baixo?... E para cima?

— Oh para cima tem pó d’arroz!... Mas é uma sécca! Sempre bilhetes, sempre telephones, sempre telegrammas. E tres mil francos por mez, além das flores... Uma massada!

E as duas rugas do meu Principe, aos lados do seu afilado nariz, curvado sobre a salada, eram como dous valles muito tristes, ao entardecer.

Acabavamos o almoço, quando um escudeiro, muito discretamente, n’um murmurio, annunciou Madame d’Oriol. Jacintho pousou com tranquillidade o charuto; eu quasi me engasguei, n’um sorvo alvoroçado de café. Entre os reposteiros de damasco côr de morango ella appareceu, toda de negro, d’um negro liso e austero de Semana Santa, lançando com o regalo um lindo gesto para nos socegar. E immediatamente, n’uma volubilidade docemente chalrada:

— É um momento, nem se levantem! Passei, ia para a Magdalena, não me contive, quiz vêr os estragos... Uma inundação em Paris, nos Campos-Elyseos! Não ha senão este Jacintho. E vem no Figaro! O que eu estava assustada, quando telephonei! Imaginem! Agua a ferver, como no Vesuvio... Mas é d’uma novidade! E os estofos perdidos, naturalmente, os tapetes... Estou morrendo por admirar as ruinas!

Jacintho, que não me pareceu commovido, nem agradecido com aquelle interesse, retomára risonhamente o charuto:

— Está tudo secco, minha querida senhora, tudo secco! A belleza foi hontem, quando a agua fumegava e rugia! Ora que pena não ter ao menos cahido uma parede!

Mas ella insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os destroços d’uma inundação. O Figaro contára... E era uma aventura deliciosa, uma casa escaldada nos Campos-Elyseos!

Toda a sua pessoa, desde as plumasinhas que frisavam no chapéo até á ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um ramo tenro sob o boliço do passaro a chalrar. Só o sorriso, por traz do véo espesso, conservava um brilho immovel. E já no ar se espalhára um aroma, uma doçura, emanadas de toda a sua mobilidade e de toda a sua graça.

Jacintho no emtanto cedera, alegremente: e pelo corredor Madame d’Oriol ainda louvava o Figaro amavel, e confessava quanto tremera... Eu voltei ao meu café, felicitando mentalmente o Principe da Gran-Ventura por aquella perfeita flôr de Civilisação que lhe perfumava a vida. Pensei então na apurada harmonia em que se movia essa flôr. E corri vivamente á ante-camara, verificar diante do espelho o meu penteado e o nó da minha gravata. Depois recolhi á sala de jantar, e junto da janella, folheando languidamente a Revista do Seculo XIX, tomei uma attitude de elegancia e d’alta cultura. Quasi immediatamente elles reappareceram: e Madame d’Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava espoliada, nada encontrára que recordasse as agoas furiosas, roçou pela mesa, onde Jacintho procurava, para lhe offerecer, tangerinas de Malta, ou castanhas geladas, ou um biscouto molhado em vinho de Tokai.

Ella recusava com as mãos guardadas no regalo. Não era alta, nem forte — mas cada prega do vestido, ou curva da capa, cahia e ondulava harmoniosamente, como perfeições recobrindo perfeições. Sob o véo cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escuridão dos olhos largos. E com aquellas sêdas e velludos negros, e um pouco do cabello louro, d’um louro quente, torcido fortemente sobre as pelles negras que lhe orlavam o pescoço, toda ella derramava uma sensação de macio e de fino. Eu teimosamente a considerava como uma flôr de Civilisação: — e pensava no secular trabalho e na cultura superior que necessitára o terreno onde ella tão delicadamente brotára, já desabrochada, em pleno perfume, mais graciosa por ser flôr d’esforço e d’estufa, e trazendo nas suas pétalas um não sei quê de desbotado e de ante-murcho.

No emtanto, com a sua volubilidade de passaro, chalrando para mim, chalrando para Jacintho, ella mostrava o seu lindo espanto por aquelle montão de telegrammas sobre a toalha.

— Tudo esta manhã, por causa da inundação?... Ah, Jacintho é hoje o homem, o unico homem de Paris! Muitas mulheres n’esses telegrammas?

Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Principe empurrou para a sua amiga o telegramma do Gran-duque. Então Madame d’Oriol teve um ah! muito grave e muito sentido. Releu profundamente o papel de S. A. que os seus dedos acariciavam com uma reverencia gulosa. E sempre grave, sempre séria:

— É brilhante!

Oh, certamente! n’aquelle desastre tudo se passára com muito brilho, n’um tom muito Parisiense. E a deliciosa creatura não se podia demorar, porque fizera marcar um logar na egreja da Magdalena para o sermão!

Jacintho exclamou com innocencia:

— Sermão?... É já a estação dos sermões?

Madame d’Oriol teve um movimento de carinhoso escandalo e dôr. O quê! pois nem na austera casa dos Trèves dera pela entrada da quaresma? De resto não se admirava — Jacintho era um turco! E, immediatamente celebrou o prégador, um frade dominicano, o Père Granon! Oh d’uma eloquencia! d’uma violencia! No derradeiro sermão prégara sobre o amor, a fragilidade dos amores mundanos! E tivera coisas d’uma inspiração, d’uma brutalidade! Depois que gesto, um gesto terrivel que esmagava, em que se lhe arregaçava toda a manga, mostrando o braço nú, um braço soberbo, muito branco, muito forte!

O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejára dentro do véo negro. E Jacintho, rindo:

— Um bom braço de director espiritual, hein? Para vergar, espancar almas...

Ella acudiu:

— Não! infelizmente o Père Granon não confessa!

E de repente reconsiderou — aceitava um biscouto, um cálice de Tokai. Era necessario um cordial para affrontar as emoções do Père Granon! Ambos nos precipitáramos, um arrebatando a garrafa, outro offerecendo o prato de bonbons. Franzio o véo para os olhos, chupou á pressa um bolo que ensopára no Tokai. E como Jacintho, reparando casualmente no chapéo que ella trazia, se curvára com curiosidade, impressionado, Madame d’Oriol apagou o sorriso, toda seria, ante uma cousa seria:

— Elegante, não é verdade?... É uma creação inteiramente nova de Madame Vial. Muito respeitoso, e muito suggestivo, agora na Quaresma.

O seu olhar, que me envolvera, tambem me convidava a admirar. Approximei o meu focinho de homem das serras para contemplar essa creação suprema do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o velludo, na sombra das plumas frizadas, aninhada entre rendas, fixada por um prégo, pousava delicadamente, feita de azeviche, uma Corôa de Espinhos!

Ambos nos extasiamos. E Madame d’Oriol, n’um movimento e n’um sorriso que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Magdalena.

O meu Principe arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e molles. E bruscamente, levantando os hombros com uma determinação immensa, como se deslocasse um mundo:

— Oh Zé Fernandes, vamos passar este Domingo n’alguma cousa simples e natural...

— Em quê?

Jacintho circumgirou os olhares muito abertos, como se, atravez da Vida Universal, procurasse anciosamente uma cousa natural e simples. Depois, descançando sobre mim os mesmos largos olhos que voltavam de muito longe, cançados e com pouca esperança:

— Vamos ao Jardim das Plantas, vêr a girafa!