A Cidade e as Serras/XII
XII
Assim chegou Setembro, e com elle o meu natalicio, que era a 3 e n’um Domingo. Toda essa semana a passára eu em Guiães, nos preparos da vindima, — e de manhã cedo, n’esse Domingo illustre, me fui debruçar da varanda do quarto do saudoso tio Affonso, vigiando a estrada, por onde devia apparecer o meu Principe, que emfim visitava a casa do seu Zé Fernandes. A tia Vicencia, desde a madrugada, andava atarefada pela cosinha e pela copa, porque, desejando mostrar ao meu Principe «o pessoal» da serra, convidára para jantar algumas familias amigas, dos arredores, as que tinham carruagens ou carroções, e podiam, pelas estradas mal seguras, recolher tarde, depois d’um bailarico campestre, no pateo, já enfeitado para esse effeito de lanternas chinezas. Mas logo ás dez horas me desesperei, ao receber, por um moço da Flôr da Malva, uma carta da prima Joanninha, em que dizia «a pena de não poder vir porque o Papá estava desde a vespera com um leicenço, e ella não o queria abandonar.» Corri indignado á cosinha, onde a tia Vicencia presidia a um violento bater de gemas d’ovos dentro d’uma immensa terrina.
— A Joanninha não vem! Sempre assim! Diz que o pae tem um leicenço... Aquelle tio Adrião escolhe sempre os grandes dias para ter leicenços, ou para ter a pontada...
A boa face redondinha e corada da tia Vicencia enterneceu-se.
— Coitado! será em sitio que não se pudesse sentar na carruagem! Coitado! Olha, se lhe escreveres, dize-lhe que ponha um emplastrosinho de folhas d’alecrim. É com que teu tio se dava bem.
Eu gritei simplesmente para o moço, que dava de beber ao burro no pateo:
— Dize á Snr.a D. Joanninha que sentimos muito... Que talvez eu lá appareça ámanhã.
E voltei á janella, impaciente, por que o relogio do corredor, muito atrazado, já cantára a meia hora depois das dez e o Principe tardava para o almoço. Mas, mal eu me chegára á varanda, appareceu justamente na volta da estrada Jacintho, de grande chapeu de palha, no seu cavallo, seguido do Grillo que, tambem de chapeu de palha, e abrigado sob um immenso guarda-sol verde, se escarranchava no albardão da velha egoa do Melchior. Atraz, um moço com uma maleta á cabeça. E eu, na alegria de avistar emfim o meu Principe trotando para a minha casa d’aldeia, no dia dos meus trinta e seis annos, pensava n’outro natalicio, no d’elle, em Paris, no 202, quando, entre todos os esplendores da Civilização, nós bebemos tristemente ad manes, aos nossos mortos!
— Salvè! gritei da varanda. Salvè, domine Jacinthi!
E entoei, para o accolher, n’um alegre tarantantan, o hymno da carta!
— Isto por aqui tambem é lindo! — gritou elle de baixo. E o teu palacio tem um soberbo ar... Por onde é a porta?
Mas eu já me precipitava para o pateo — onde Jacintho, apeando, contou alegremente os tormentos do Grillo, que nunca montára a cavallo, e não cessára de berrar ante os perigos d’aquella aventura.
E o digno preto, offegante, lustroso de suor, e livido sob o esplendor da sua negrura, exclamava, apontando com a mão tremula para a pobre egoa, que solta, de cabeça pensativa, parecia de pedra, sobre as patas mais immoveis que marcos:
— Pois se o siô Fernandes visse! Uma fera, que nunca veiu quieta. Sempre para a esquerda, sempre para a direita, pé aqui, pé além! Só para me sacudir! Só para me sacudir!
E não resistiu. Com a ponta do guarda-sol atirou uma pontoada vingativa contra a egoa, sobre o albardão.
Subindo a escadaria ligeira, penetrando no alegre corredor, com a sua janella ao fundo engrinaldada de rosinhas, Jacintho louvava grandemente a nossa casa, que o repousava das rijas muralhas, das grossas portas feudaes de Tormes. E no seu quarto agradeceu os cuidados maternaes da tia Vicencia, que enchera de flores os dois vasos da China sobre a commoda, e adornára a cama com uma das nossas colxas da India mais ricas, côr de canario, com grandes aves d’ouro. Eu sorria, enternecido. Então estreitamos os ossos n’um grande abraço, pelo natalicio... «Trinta e oito, hein, Zé Fernandes?» — «Trinta e quatro, animal!» E o meu Principe abrindo a mala, sobria maleta de philosopho, offereceu os «nobres presentes, que são devidos», como diz sempre o astuto Ulysses na Odyssea. Era um alfinete de gravata, com uma saphira, uma cigarreira de aro fosco, adornada de um florido ramo de macieira em delicado esmalte, e uma faca para livros de velho lavor Chinez. Eu protestava contra a prodigalidade.
— É tudo das malas de Paris... Mandei-as abrir hontem á noite. E tomei a liberdade de trazer esta lembrança á tua tia Vicencia. Não vale nada... É só por ter pertencido á princeza de Lamballe.
Era uma caldeirinha d’agoa benta, em prata lavrada, d’um gosto florido e quasi galante.
— A tia Vicencia não sabe quem é a princeza de Lamballe, mas ficará encantada! E é uma garantia, por que ella suspeita da tua religião, como homem de Paris, da terra das impiedades... E agora, lavar, escovar, e ao almoço!
A tia Vicencia pareceu toda surprehendida, e logo encantada com o meu camarada, que ella suppuzera realmente um Principe, arrogante, escarpado e difficil. Quando elle lhe offereceu a caldeirinha, com um delicado pedido «para se lembrar d’elle nas suas orações», duas largas rosas, mais roseas e frescas que as rosas que enchiam a mesa, cobriram as faces redondas da boa senhora, que nunca recebera tão piedoso presente, com tão linda palavra. Mas o que sobretudo a captivou foi o tremendo appetite de Jacintho, a enthusiasmada convicção com que elle, accumulando no prato montes de cabidella, depois altas serras d’arroz de forno, depois bifes de numerosa cebolada, exaltava a nossa cosinha, jurava nunca ter provado nada tão sublime. Ella resplandecia:
— Até faz gosto, até faz gosto!... Ora mais uma d’estas batatinhas recheadas...
— Com certesa, minha senhora! até duas! As minhas rações, em mesas d’estas, tão perfeitas, são sempre as de Gargantua.
— Não cites Rabelais, que a tia Vicencia não conhece os auctores profanos! exclamava eu, tambem radiante. E prova esse vinho branco cá da nossa lavra, e louva Deus que amadurece tal uva.
E o almoço foi muito alegre, muito intimo, muito conversado, sobre as obras de Jacintho em Tormes, e a sua Creche, que enlevava a tia Vicencia, e as esperanças da vindima, e a minha prima Joanninha, que tinha o papá doente, e o pessimo estado dos caminhos. Mas o enternecimento maior foi quando, ao servir o café, o creado poz ao lado de Jacintho um pires com um pau de canella, o seu estranho e costumado pau de canella. Não o esquecera a tia Vicencia! Ali tinha o seu pausinho de canella! — Queria que elle, em Guiães, continuasse os seus habitos como em Tormes... E aquelle pau de canella foi o symbolo de adopção do meu Principe como novo sobrinho da tia Vicencia.
Ella em breve recolheu á cosinha, aos preparativos do banquete. Nós fumamos um preguiçoso charuto no jardim, ao pé do repuxo, sob a recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como proprietario, mostrei ao meu Principe a propriedade toda, com desapiedada minuciosidade, sem lhe perdoar uma leira, um regueiro, uma arvore, um pé de vinha. Só quando a sua face começou a opar e a empallidecer, de cançaço, e que do entendimento totalmente atordoado só lhe escorria um vago — «muito bonito! bella terra!» — é que voltei os passos para casa, tornejando ainda n’uma volta larga para lhe mostrar o lagar, uma plantação d’espargos, e o sitio onde existira a ruina d’um velho castro romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim, na fresca sala, ainda o empurrei, como uma rez, para a livraria do meu bom tio Affonso, para lhe mostrar as preciosidades, uma magnifica chronica de D. João I por Fernão Lopes, a primeira edição do Imperador Clarimundo, uma Henriada, com a assignatura de Voltaire, foraes d’El-Rei D. Manoel, e outras maravilhas. Elle respirava fechando o derradeiro pergaminho, quando eu o arrastei á adega, para que admirasse a famosa pipa, que tinha, em relevo, na madeira do tampo, as complicadas armas dos Sandes. Eram quatro horas. O meu Principe tinha o ar esgaseado e livido. Cravando n’elle os olhos inexoraveis, olhos em que eu mesmo sentia reluzir a ferocidade, declarei «que iriamos agora vêr a tulha.» Mas então, com as mãos nos rins, elle murmurou, humildemente, n’um murmurio de creança:
— Não se me dava de me sentar um poucochinho!
Tive então piedade, abri as garras, deixei que elle se arrastasse, atraz de mim, para o seu quarto, onde freneticamente descalçou as botas, se atirou para um fresco canapé forrado de ganga, murmurando n’um abatimento profundo: — «Bella propriedade!»
Consenti generosamente que elle adormecesse, — e eu mesmo desci a verificar se a Gertrudes dispusera bem as escovas, as toalhas de renda, no quarto onde os convidados, em breve, ao chegar, lavariam as mãos, escovariam a poeira da estrada. E justamente, uma caleche rodava no pateo, a velha caleche do D. Theotonio, com a parelha ruça. Espreitando da janella descobri, com prazer, que chegava só, de gravata branca, sob o guarda-pó, sem a horrendissima filha. Corri alegremente ao quarto da tia Vicencia, que, ajudada pela Catharina, abrochava á pressa as suas pulseiras ricas de topazios.
— Tia Vicencia! chegou o D. Theotonio! Felizmente vem sem a filha... Não se demore, os outros não tardam. O Manoel que esteja bem penteado, de gravata bem teza!... Vamos a vêr como corre a festa!