A Confederação dos Tamoyos/Canto II

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ARGUMENTO.




Usos e costumes dos Tamoyos.— Seus principaes chefes: Aimbire, Pindobuçú, Parabuçú seu filho, Jagoanharo, Araray seu pai e irmão de Tibiriçá, Coaquira.— Conselho dos chefes.— Falla primeiro Jagoanharo como o mais moço.— Discurso de Aimbire.— Feitos mais importantes da sua vida.— Ataque da fortaleza de Villegagnon.— Como alli fôra Aimbire feito prisioneiro, e como se escapára da náo de Mem de Sá.— Anima os seus companheiros para a guerra; e manda Jagoanharo pedir a Tibiriçá seu tio que deixe a causa dos Portuguezes, e se ligue aos seus.— Todos o applaudem.

CANTO SEGUNDO.

P’ra acabar co’os ataques reiterados
Dos Lusos, confederam-se os Tamoyos.
Bravos são os Tamoyos, e descendem
Da raça dos Tupís. Elles não erram
Sem tabas, nos sertões, como os terriveis
Feroces Aimorés, raça Tapuia.
Natural, inspirada poesia
De todos os distingue, os ennobrece,

E trataveis os torna, inda que altivos:
Crêm elles qu’esse dom, e as doces vozes,
Ás puras aguas devem do Carioca.
Vasta extensão occupam do terreno
Que banha o Guanabara. As suas tribos
Se estendem desde as longas serranias
Que um orgão fingem, donde o nome tiram,
Até o Cairuçú, terror dos nautas.
Um Deos adoram, que dispara o raio,
E que pelo trovão aos homens falla:
Tupan se elle nomeia; os seus ministros
São os Payés, entre elles venerados.
Leis escriptas não tem; mas não lhes faltam
As leis da Natureza e as dos costumes,
Herdadas de seus pais. O mais idoso
E o mais forte é por chefe respeitado. 1

Já todos os guerreiros se apercebem
De tacapes e maças de páo-ferro, 2
Arcos robustos, e emplumadas flechas.

Aimbire, o forte Aimbire, apregoado
Entre todos os fortes pela audacia
Com que se arroja ás feras e as sutfoca,
Aqui se mostra á frente dos Tamoyos,
Pelo voto geral primeiro chefe.
Aimbire desde a infancia se amestrára
A certeiro enviar co’a setta a morte;
Nem no rapido pulo lhe escapava
O jaguar mais ligeiro sobre a rocha;
Nem mesmo o gavião alto pairando,
Nem pequenino passaro burlavam
Da setta alada o infallivel tiro.
Fraldão tecido de encarnadas pennas,
Matizadas d’azul, que a arára imita,
A cintura lhe cinge. Do pescoço
Cahe o collar de dentes arrancados
Por suas mãos das boccas dos vencidos,
E tão amplo lhe cabe que o peito cobre.
Larga, escamosa, verdenegra pelle
De enorme jacaré, qu’elle matára,
As espadoas lhe veste. Tem na dextra
Uma de dentes de onça acha embutida,

Que de serra lhe serve e mortal arma.
C’roa-lhe a fronte um resplandor de pennas
Da côr do fulvo sol: obra apurada
De Iguassú, que lh’a dêo de amor em prenda,
Iguassú sua amante, e qu’elle espera
Tomar, finda esta guerra, por esposa.
Nem ao lado lhe falta grossa aljava,
Nem o arco robusto, que dous homens
Como nós a vergal-o suariam,
E em suas mãos porém facil se curva.

O ancião Pindobuçú de nobre aspecto
Sua taba conduz: elle se cobre
De negras plumas, que a tristeza exprimem
Pela morte do filho, qu’inda chora.
Parabuçú, de porte agigantado,
De pennas não se cobre; moço ainda
Quer espanto causar co’o horrido aspecto
Da figura: manchada, oncina pelle
Desde a cabeça, que no largo espaço
Das abertas mandibulas se enfia,

Até ao chão se estende: enorme casco
De tatú lhe defende o peito e o ventre;
De escudo outro lhe serve. Elle sobraça
A terrivel inúbia, que assignala 3
A hora da investida e retirada.
Tão medonho trajar mais lhe realça
O corpo colossal e musculoso.
Pindobuçú, seu pai, que muito o ama,
N’elle de Comorim tem viva a imagem,
E nelle cifra o orgulho dos seus annos.

O altivo Jagoanharo, que alimenta
No grande coração nobre desejo
De vingar dos parentes o opprobrio,
Jagoanharo não falta a esta empreza;
Que no peito lhe ferve o amor da guerra,
E na mente um fulgor de arguto engenho.
A par d’elle Araray, seu pai, se encosta
Sobre um feixe ligado de arco e flechas,
Com triste aspecto, e sobresenho horrivel.

De sua fronte as rugas denotavam
Um profundo pezar; a bocca firme
Por um riso feroz tremia ás vezes.
Fixos os olhos rubros rutilavam:
Ressumbrava em seu rosto o horror do inferno,
Amor ardente de vingar insultos,
E a dôr de ir combater irmão e amigos.
Era Araray irmão do convertido
Chefe Tibiriçá, á fé chamado,
P’ra ser nestes sertões seu firme apoio:
Tibiriçá, que as armas empunhando
Dos Lusos em favor, em São-Vicente
Seu proprio irmão e amigos aguardava.
Jagoanharo e Araray ambos aos hombros
Tem de tamanduás rajadas pelles.
Elles conduzem a guerreira tribu,
Tão agil e amestrada que se engrimpa
Pelas mais broncas, ingremes montanhas,
E vence na carreira a veloz ema.

Outros chefes iguaes, de quem a historia

Os nomes occultou, os campos enchem
Co’as emplumadas hostes sagittarias.

E tu, Coaquira, em cuja fronte ondeam
As cans da longa idade; e em cuja mente,
Dada ás cousas divinas, arde o fogo
Da inspirada poesia; tu que escutas
Os trovões de Tupan, e os interpretas;
Tu que das serpes o veneno anihilas,
Que das plantas conheces as virtudes,
Mostrado és tu aqui como um amigo
Dos homens e do céo; por tua bocca
Suas ordens supremas se revelam

Nunca té-li os homens destas plagas
Armas tomaram para igual empreza;
Nunca tantas familias se ligaram,
Tantos guerreiros em commum se uniram.
Grande é a empreza, duvidosa a sorte.
Segundo a usança em decisivos casos,

Um concilio propõe o ancião Coaquira,
Em que o plano da guerra se debata,
E o certo meio da victoria se ache.

Approvam todos o dizer do velho,
E inúbias soam, convocando os chefes,
Que em circulo se formam, começando
Desde Coaquira, que mais sóes contava,
Té o mais moço descendendo em annos.
Todos armados como em guerra estavam,
Que inseparaveis são das feras armas
Os barbaros: taes foram sempre os Francos,
Taes dos desertos d’Asia os cavalleiros,
Os Tartaros, que até montados iam
Em seus corceis ao Curultai armados, 4
Para as leis discutir de paz e guerra.

Rompe o silencio o joven Jagoanharo,
Que entre elles soem fallar primeiro os moços,
Em quem mais luz o engenho e o enthusiasmo,

Para depois se ouvir com mais proveito
Frios conselhos dos cabaes em annos.
Ufano por ser esta a vez primeira
Que tem de discorrer em grave assumpto,
Ar decisivo Jagoanharo ostenta:
« Vede esta pelle, que me cobre os hombros;
É de um tamanduá, animal fraco,
Que não ousa atacar, mas que manhoso
Deitado espera o aggressor incauto,
E abraçando-o lhe crava as curvas garras.
Quereis vós imital-o na fraqueza?
Humildes receber novos insultos?
Esperar e luctar como cobardes,
Que jamais se apresentam flecha á flecha,
E com meios de industria só combatem? »

Disse: e com ar altivo olhou em torno,
E na terra cravou a ponta do arco.
De alegria signaes os moços deram,
E seu pai Araray, um pouco alçando
A tenebrosa fronte, parecia

Mais serenado da profunda magoa;
Fugaz sorriso lhe roçou os labios;
Tanto digno de si seu filho achára,
No porte egregio, e no dizer soberbo.

Nenhum joven fallar ousou diverso:
Visos de impaciencia os velhos davam,
Signaes de opposta ideia, receiosos
Que os moços desta vez prevalecessem.

O terrível Aimbire percebia
Dos velhos o receio bem fundado;
E querendo accender n’elles a audacia,
E o furor roborar da juventude,
Começou a fallar d’esta maneira:

« Tupan lá do alto céo me escuta agora;
Elle vio o qu’eu vi, caso inaudito,
E de horror levantou ante seu rosto

Uma montanha enorme de átras nuvens,
Para a seus olhos esconder taes scenas.
Que tenho eu visto, e que soffrido tenho!
De vós, oh moços, o vigor conservo;
De vós, oh anciãos, tenho a experiencia
Colhida á custa de arduos sacrificios.
Porém mais que vós todos reunidos
Segredos aprendi de estranhas gentes:
Com ellas batalhei co’a setta e o raio,
E hoje o mysterio de Tupan conheço!
Tupan que se apresente, então veremos
Qual de nós dous melhor dispara o raio.
Eis o meu, não o escondo! » Isto dizendo
Tira do cinto uma pistola armada,
O braço estende, e para o céo dispara;
E a bala foi ferir uma ave negra,
Que no espaço mil gyros descrevendo,
Cahir veio a seus pés inda guinchando,
Quentes gottas de sangue sacudindo
Sobre a assombrada turma estupefacta.
Alvorota-se o campo; e quantos ouvem
O inopinado estrondo p’ra alli correm,

E em torno do concilio se amontoam,
Tendo todos os olhos sobre Aimbire.
Elle, immovel, co’o braço inda estendido,
Com ar vanglorioso a arma empunha
Porque do seu poder não se duvide.
Ninguem ousa fallar, até que Aimbire,
No cinto a arma guardando, assim prosegue:

« Inda a alma de meu pai, como um colibri
Em fria noite no seu ninho occulto,
Além não tinha das azues montanhas
Descido aos campos de eternaes deleites, 5
Quando o mar arrojou em nossas praias
Homens de branca pelle e longas barbas,
Que posto filhos d’agua parecessem,
Fogo traidor os perfidos traziam.
Nós innocentes, do prodigio absortos,
Incautos, não prevendo o mal futuro,
Nossas plumas lhes demos, nossos fructos,
Nossas redes, e até arcos e flechas.
Como pagaram elles taes favores?

Bem depressa senhores se fizeram;
Em nossos bosques foram-se estendendo
Sempre de fogo contra nós armados.
Suas victimas fomos, seus escravos!
Nossas mãos dos sertões levaram troncos,
Ergueram seus casaes; e até por elles
Mil vezes contra os nossos combateram!
Oh dura ingratidão! Morrer por elles,
Sermos em nossa terra seus escravos,
E em troco só affrontas recebermos!
Oh dura ingratidão! O Aimoré fero,
Que d’agua tem horror, e sangue bebe;
O Aimoré, que co’o tigre rivalisa,
E a quem só praz a guerra e o sangue nosso,
Tanto horror, tanta infamia não pratica.
O Aimoré tem a côr dos Emboabas!
Eu mesmo lhes servi na flôr da vida,
Minhas mãos calejei, mandando a flecha
Seu sustento buscar no ar, nos bosques.
Meu pai morreo sem honras de guerreiro,
Sem funeral. Eu mesmo abri-lhe a cova
No logar em que ao sol se elle aquecia,

Quando o duro senhor folgas lhe dava.
P’ra não deixar sózinho o triste velho,
Com elle supportei o captiveiro.
Morreo meu pai, e eu livre abri caminho
Pelo sertão, em busca das cabanas
Dos meus antepassados, resoluto
A vingar de meu pai a morte infame.

« Sem chefe os meus dispersos vagueavam:
Soou entre elles: – É chegado Aimbire!
E a milhares de bravos vi-me unido.
Contei-lhes tudo; e attentos e chorosos,
Ouvindo de meu pai o triste caso,
Todos quizeram ir buscar seus ossos,
E o sangue derramar do seu tyranno
Sobre o tumulo seu. Porém meu odio
Não se fartava com tão pouco sangue.
Eu queria vingar a minha terra,
E os restos de meu pai, e a mim, e a todos.
Queria de uma vez limpar p’ra sempre

Nossas florestas dessa raça espuria.
Não me faltava a audacia, mas a empreza,
Tão grande, superava ás nossas forças.
Que devia eu fazer? Minha vingança
Delongas não soffria… Nesse tempo
No Guanabara estava, n’um rochedo 6
A raça branca de cabellos louros,
E de olhos côr do céo, tão nossa amiga,
Para a entrada impedir d’essa outra raça
De olhos, e barbas, e cabellos negros.
Em canôas metti-me, e os meus guerreiros,
E fui-lhe offerecer os nossos braços.
Como amigo o seu chefe recebeo-me;
Chamou-me seu irmão; e nesse instante
Dêo-me uma arma, que fogo de si lança,
E o segredo do raio revelou-me.
E o que cuidais, oh chefes? que este raio
Sempre está prompto? Não: quando lhe falta
Este pó negro, polvora chamado,
Que o fogo accende, e como o raio estronda,
Esta arma inutil fica. (E assim dizendo,
Vai mostrando o que diz). Mas nós podemos

As aljavas pejar de novas settas.
Fabricadas por nós, em quanto o matto
Duras cannas brotar, e as aves pennas:
Porém quando faltar este pó negro,
Que só alguns d’entre elles fazer sabem
Com muito tempo e custo, sem defeza
Nossos tyrannos ficarão vencidos.
Podeis marchar contra elles arrojados:
Os seus trovões não são Tupaçunangas,
Nem os seus raios são Tupaberabas. 7

« Guerreiros, ante vós tendes Aimbire,
Que taes cousas conhece, e que não teme
O fogo e o raio de traidoras armas.
Aimbire vio de fogo o atroz combate,
E sem temor c’o a setta combatia
Contra os homens de fogo; e mais certeiro
Por entre o fumo a morte dardejava,
Em quanto cegos outros nada viam.
Valem mais nossas flechas que os seus raios.

« Guerreiros, escutai. Lá do rochedo
Que banha o Guanabara, onde abrigada
Estava a raça de celestes olhos,
Eu vi… como direi?… vi, não qual vemos
Co’os olhos descobertos; nada eu via,
Mas fizeram-me ver, oh que prodigio!
Ao travez d’um canudo, que apontado
Sobre as longinquas, invisiveis cousas,
As põe tão perto e tanto as engrandece,
Que cuidamos poder co’a mão tocal-as:
Por este modo eu vi na linha ao longe,
Onde se abaixa o céo e o mar se perde,
Uns vultos como passaros boiantes
De peito escuro, e longas, brancas azas.
– São portuguezas náos – gritaram todos:
Lá tremóla a bandeira portugueza!
Temos hoje combate. Ellas que venham,
Que não hão de voltar co’o mesmo vento.
E todos p’ra o combate se aprestavam.

« Entretanto as canôas monstruosas,

Cujas azas os ventos enfunavam,
P’ra nós se aproximavam, e nós todos
O combate esperavamos contentes.

« Era o tempo em que o sol abrasa tudo,
Em que as seccas florestas se incendiam,
E se extinguem as aguas das torrentes.

« Tendes ouvido como a serra ás vezes
Roncos medonhos solta do seu seio?
Como convulsos os penedos saltam
Do seu cume, e rolando se abalroam,
Troncos quebrando na arrojada queda?
Assim, oh chefes, foi o atroz combatte!

« De ambos os lados raios sobre raios
Disparados, no ar se emmaranhavam;
Trovões sobre trovões tão repetidos
Ribombavam, que o mar todo tremia,

E erriçado em montanhas se elevava
Sobre o penedo, em colera bramando:
Tremia o céo, de fumo só coberto!
E o echo horrendo d’estes duros montes,
Que ia medonho ao longe resoando,
Era igual ao estridor da trovoada.

« Qual de vós não dissera que esses homens,
Que tanto estrondo e horror alli causavam,
Eram filhos do céo, ou do sol filhos,
Outros tantos Tupans que guerreavam!
E eu os via cahir feitos pedaços!

« Que estrago! oh que não sei como vos conte!
Nunca vi tanto sangue derramado!
Todo o rochedo em sangue se inundava,
Mil regatos de sangue ao mar corriam;
E o mar vermelho estava! – Entre cadav’res,
Braços, pernas, cabeças mutiladas,
Tropeçavam os vivos!… Sobre as aguas

Muitos dos inimigos já feridos
Luctavam p’ra subir sobre as canôas,
Aos remos se agarravam, e uns e outros
Seguros mutua guerra se faziam.
Que confusão! que horror! que gritaria!
Tudo era fogo e fumo, e sangue e raiva !

« Uma chuva de ardentes, grossas balas,
Entre fuzis e turbilhões de fumo,
Do mar erguida, sobre nós cahindo,
As fileiras rompeo dos meus guerreiros;
Muitos corpos rolaram sem cabeças,
Muitos braços voaram pelos ares.
Cuidei alli ficar vivo enterrado
Entre montões de mortos e feridos.

« Duas vezes o sol surgio dos montes,
E com gritos de guerra foi saudado;
Duas vezes nas aguas mergulhou-se,
E incertos nos deixou no atroz conflicto,

Só sangue, e fumo, e fogo respirando.
Appareceo em fim o sol terceiro,
E já sobre o rochedo os Portuguezes
Braço a braço o terreno disputavam.
Ah quão feros são elles! Só Tamoyos
Em copia igual vencel-os poderiam.

« Qual foi o meu espanto ao ver com elles
Tupís e Carijós de setta armados,
E o bravo Cayoby á sua frente!
Cayoby! Cayoby! quem tal diria?
Então cego de colera investi-os,
E a morte semeei sobre essa raça,
Que deshonrava assim nossas florestas.
Minhas flechas além já se perdiam,
Tão perto elles estavam: dando um pulo,
Que a onça me invejára, puz-me entre elles,
E mais veloz que a onça abri caminbo
Co’uma pesada maça, derrubando
Quantos se me antepunham: n’um momento

Junquei o chão de mortos e feridos.
Não sei quantos cahiram. Já fugiam,
Quando Tibiriçá, vestido e armado
Á maneira do barbaro inimigo,
E dos nossos irmãos sangue escorrendo,
Oh vergonha e horror! se apresentou-me,
Chamando por meu nome e o seu dizendo!
Só por essa arrogancia conheci-o,
Tão estranho e hediondo se mostrava!
– Oh perfido, bradei, do imigo as vestes
Não te cobrem da infamia ! – Ia matal-o;
Oh desesperação!… Que não morresse!
Eis que uma grossa bala arrebatou-me
A maça, que esta mão tanto apertava,
Que um subito tremor tolheo-me o braço,
O corpo vacillou, o pé faltou-me,
E n’um lago de sangue revolvi-me.

« Ergui-me, mas fui preso; e como chefe
Não me fizeram mal, talvez cuidando

Qu’inda eu os serviria: e me levaram
Para uma das canôas monstruosas,
Onde depois entrou victorioso
Mem de Sá, cuja voz tudo ordenava.

« De longe eu vi a ensanguentada rocha,
Que testemunha fôra de meu brio,
E já nenhum dos meus a defendia,
Nem os amigos brancos, que invenciveis
Em seus muros de pedra se julgavam.
E eu chorei vendo-a assim, vendo-me preso.
Apezar da victoria, os Portuguezes
Da lucta porfiosa afadigados,
E irritados co’o sol, que os abrasava,
Repouso procuravam. Veio a noite,
E exceptuando alguns que vigiavam,
De um lado e d’outro armados passeando,
Os mais dormiam. Eu deitado estava,
Co’as mãos atadas para traz com cordas,
E olhando para o mar. Mais do que o corpo

Pesava-me a cabeça. Eu não podia
Por mais que me voltasse achar repouso.
Lavado de suor, tinto de sangue,
Furioso por me ver entre inimigos,
Sem saber qual seria o meu destino,
Resolvi-me a morrer, ou a salvar-me.
O guarda, que a meu lado passeava,
Parecia do somno ameaçado;
Bocejava a miudo, e a cada passo
Olhava para mim, como si eu fosse
Quem vigilante o somno lhe impedisse.
Não movi-me; e elle logo se encostando
N’um grosso tronco, que o trovão vomita,
Depressa adormeceo. De leve ergui-me;
Facil foi-me o passar p’ra adiante os braços,
E os fortes laços desatar co’os dentes.
Tomei-lhe esta arma, que a seu lado estava;
Já quasi acordando, ao mar lancei-o;
E eu após, p’ra evitar maior ruído,
Descí por uma corda, cahi n’agua,
E nadei p’ra o rochedo mais visinho.
Fui visto, e inuteis raios dispararam

Contra mim. No rochedo descançando,
De novo pelo mar abri caminho;
De rochedo em rochedo, e já sem forças,
Quando do mar o sol se levantava,
Tambem sahi do mar, e tomei terra.

« Como me achei então? Sem arco e flechas,
Devorado de fome e somnolento,
A meu pezar dormi. Ao despertar-me;
Lembrei-me do passado, e que não ’stava
Salvo de todo. Ergui-me, e caminhando
De fructos da floresta alimentei-me.
E logo quiz Tupan qu’eu me encontrasse
Com alguns escapados do rochedo,
Francezes e Tamoyos. Uns e outros
Com pasmo me abraçaram, perguntando
Como o perigo e o mar tinha eu vencido.
Contei-lhes tudo; e como esta arma inutil
Eu trazia no cinto, um dos Francezes
Da polvora que tinha um chifre dêo-me.

« Alli guerra jurámos, guerra eterna
A esses por quem nós tanto soffremos
Sobre o mar, sobre a terra: sangue, sangue,
Guerra, guerra, as florestas repetiram!
De paz não mais se falle ! Guerra, guerra,
Commigo repeti, bravos Tamoyos!
Não ouvis os clamores de vingança
De nossos pais e irmãos qu’elles mataram?
Não ouvis que esta terra está pedindo
Que a livremos dos pés dos Portuguezes?
Quereis que um dia nossos filhos digam:
– Nossos pais foram vis, cobardes foram,
Defender não souberam nossas tabas,
Opprobrio e escravidão delles herdamos!? –
Não, não; tal não dirão: antes primeiro
Morramos todos nós; sim, antes morram
Velhos, moços, crianças e mulheres,
E os filhos qu’inda as mãis no ventre aquecem:
Todos morramos, sim, porém mostremos
Que sabemos morrer como Tamoyos,
Defendendo o que é nosso e a liberdade,
Que antepomos a tudo, e á propria vida.

« Eia, Tamoyos meus, antes que as aves
Amanhã se levantem de seus ninhos,
Nós devemos marchar; e ao mesmo tempo
Do inimigo arredar cautos tentemos
O opoio mais terrivel. Jagoanharo
Vá ver Tibiriçá; vá declarar-lhe
Que Araray seu irmão, a nós unido,
Em nome de seu pai lhe diz e pede
Que elle não deixe os seus pelos estranhos.
Que a terra e a liberdade nos roubaram.
Vai, Jagoanharo, vai: dize a teu tio
Que se arrependa, e venha honrar os ossos
Da mãi, que tanto o amava, e que chorára
Si o vira contra o irmão entre o inimigo:
Si a tão caras memorias e ao sobrinho
Tibiriçá resiste, Jagoanharo,
Dize-lhe emfim que nós nada tememos;
Que te mandámos lá por amor delle,
Por amor de Araray, não por fraqueza;
Que p’ra cobrir o mar temos canôas
Tantas, que vendo-as tremerá de espanto;
E tantos homens temos bem armados

Que podemos encher todo o seu campo,
E o ar escurecer co’as nossas flechas,
Como uma cerração pesada e negra. »

Calou-se e respirou, vibrando os olhos,
Que dous carvões accesos pareciam:
E todos com mil gritos applaudiram
Tão sabio parecer, tão grandes feitos
Do chefe sem igual, do heroe Tamoyo.
Em signal de alegria dispararam
Mil settas para o ar; e vozeando,
Os sons interrompiam n'um trinado,
Sobre as boccas batendo co’as mãos ambas.
Nem mais aos anciãos ouvir quizeram;
Nem elles em contrario votos tinham.
Coaquira, o mais idoso, era o primeiro
Que plena approvação a tudo dava.

Qual nas plagas felizes do Janeiro,
Por entre os corucheos das serranias,

Quando ás vezes o sol mais resplandece,
E os passarinhos ledos esvoaçam,
Se eleva o furacão inesperado,
Que vai comsigo arripiando as nuvens,
E esbarra contra os pincaros, bramando
Co’o medonho estridor da trovoada;
Tal foi a vozeria dos Tamoyos,
Quando Aimbire poz termo ao seu discurso.