A Dívida de Abraão
Não era de hoje, nem de ontem, que Abraão Efraim, o conhecido proprietário da casa de penhores Efraim & Irmão, nutria profundas simpatias pela esposa do seu amigo Isaac Fernandes. A sua fortuna, as suas lábias, as suas declarações pessoais e pelo telefone público, jamais haviam, no entanto, adiantado um passo no caminho da sua pretensão desonesta.
Com as mulheres, porém, não convém desesperar. Por trás de cada anjo da guarda há um demônio de atalaia, de modo que, à menor distração do anjo, o demônio toma conta do lugar. E a vez da substituição na casa de Isaac Fernandes chegou, naquela tarde cariciosa de maio, pouco depois do meio-dia.
Na véspera, havia a formosa senhora visto no mostruário de uma chapelaria, na Avenida, um chapéu, com o qual sonhara toda a noite. E pensava ainda nele, quando Abraão, o bigode retorcido e negro, o nariz israelita espiando para dentro da boca, subiu a escada, com a intimidade que tinha na casa.
A presença daquele pretendente iluminou, de súbito, o espírito da formosa judia. Um beijo em Abraão, se ele lh'o pedisse, e teria o chapéu.
— Bom dia, Raquel!
— Bom dia, Abraão!
— Então, já está resolvida a salvar minh'alma?
— Depende, Abraão. Se salvares a minha situação, eu salvarei a tu'alma.
E sentando-se ao lado.
— Olha, eu preciso, hoje, de quinhentos mil réis. É um caso urgente. Arranja-m'os, que tereis o que quiseres.
— É para já?
— Para já!
De um salto, Abraão Efraim estava na rua tomando direção. A casa comercial mais próxima, onde poderia arranjar o dinheiro, era a de Isaac Fernandes, marido de Rachel. Entrou lá.
— Isaac, empresta-me quinhentos mil réis por algumas horas? Pago-te hoje mesmo.
Vinte minutos depois, estava Raquel com os quinhentos mil réis, e Abraão, contente da vida, nos braços da mulher mais formosa produzida pelo povo de Israel. E descia, um a um, duas horas depois, as escadas da casa em que passara um dos momentos inolvidáveis da sua existência, quando, em baixo, nos últimos degraus, deu de cara com Isaac, que subia.
— Tu, por aqui, Abraão?
— É verdade, Isaac. Vim à tua procura. Muito obrigado, meu velho.
E apertando a mão do amigo:
— Vim pagar-te os quinhentos mil réis que me emprestaste... Deixei-os com a tua mulher...