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A Dança do Destino/Uma revolução na floresta

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Uma revolução na floresta
Uma revolução na floresta
 

 

Principios do outono.

Eu estava no Estoril.

O ceu mostrava-se sombrio, concentrado, triste.

Havia em toda a naturêsa um silencio de solidão, aspectos de imobilidade que lembravam a morte, rumores vagos, longinquos, semelhantes a estertores de agonias misteriosas.

Sentia-se um desfalecimento geral, o coração oprimia-se sob o peso indefinivel d'aquela tarde sem luz, subiam lagrimas aos olhos, sem se saber porquê, numa tão surpreendente melancolia, que chegava a lembrar que a alma se diluia nelas, para reentrar pela evaporação do infinito.

Que horas eram? duas, quatro, sete? Ninguem o saberia dizer, tão crepuscular e constante se mostrava aquele dia de sombras, revestido de uma terrivel mudês.

No meio da pavorosa imobilidade cosmica que me cercava e abatia, senti necessidade de movimento e sahi de casa para espairecer o meu aborrecimento.

Dirigi-me para o pinhal.

Fugia da obscuridade vaga para a obscuridade da floresta.

Sentei-me num banco rustico, talhado na pedra, numa estreita clareira inteiramente desobstruida de um dos lados, por onde se via o mar.

Os pinheiros tinham perfis sinistros, flutuavam pela floresta sombras vagas, recortavam-se espessuras terriveis, e, a pouca distancia, cantava uma melopeia inconcebivel um pequeno veio cristalino, caindo tranquilamente num tôsco tanque de pedra, onde bebiam as pombas livres e a passarada brava que habitavam aquele recanto de paz.

O mar, lá em baixo, estagnava-se numa grande mancha indefinida, sem uma ruga, perdendo-se no horisonte, sem que de parte alguma surgisse uma véla a cortar a sensação de deserto e a monotonia da vastidão.

A minha atenção foi, porém, despertada por um subito rumor que vinha de uma balseira proxima, na extrema do pinhal, onde um terreno inculto se erriçava de espinhos, oculto nas desconfortadas dobras de um matagal espesso.

Era um tumultuar indescritivel de vozes, o rumor vago e indefinido dos sons, numa conjunção de gritos, de espirros, de guinchos subterraneos, de mistura com ululações de espingardas de cana e ruidos confusos de coisas infinitamente pequenas.

Uma coisa verdadeiramente enervante!

Esta anormalidade na solidão, despertou-me a curiosidade.

Levantei-me, caminhei para o balsedo e puz-me a escutar.

O fragor era cada vez maior e mais distinto, dando-me a impressão de uma revolução de insectos.

Investigava minuciosamente os arredores do campo de batalha, onde parecia que se estavam ferindo truculentos combates, quando deparei com um gafanhoto tranquilamente sentado sobre uma pinha, escutando como eu atentamente, mas com o olhar fixo mum ponto do mato que eu não tinha podido descobrir.

Num dado momento, como eu tossisse, voltou a cabeça e vendo-me a olhar para êle, levantou-se com o ar mais distinto, e num grande aprumo de educação, cumprimentou-me respeitoso, conservando-se de pé, mas sem perder de vista a ação que se travava nas profundêsas da balseira.

Compreendi logo que estava na presença de um gafanhoto educado, pertencente á élite da sua especie, e tive pena que êle não falasse, para me explicar a terrivel ingresia que punha em sobresalto a solidão do pinhal.

Ia para me retirar, quando êle me dirigiu a palavra, parecendo ter adivinhado o meu pensamento:

— V. Ex.a não tem curiosidade de ver o fim?

— O fim de quê? — perguntei num sobresalto, mais de curiosidade pela solução de aquelo enigma, do que de espanto por ouvir um gafanhoto falar a linguagem humana.

— Mas então o que vem a ser isto?

― São os grilos que estão em revolução ― informou.

― Os grilos? é então uma revolução de grilos? mas o que querem êles?

― Querem estabelecer a republica.

― Como? pois tambem êles têm politica?!

― Se a têm! e da mais brava.

― Coute-me isso por favor! ― exclamei no auge da surprêsa.

Eis o que então soube: A nação dos orthópteros, estivera sempre constituida em monarquia e o poder era desempenhado pelos gafanhotos. Estes tornaram-se, com o tempo, desleixados e imoraes; a fazenda comum começou a reseutir-se, a consciencia colectiva entrou a revoltar-se, estabelecendo-se, afinal, um irredutivel antagonismo entre o poder e a nação.

Os grilos haviam constituido um grande partido revolucionario; todos os dias se anunciava a revolução, sem que ela nunca aparecesse; muitos já não acreditavam que tal se désse, até que hoje rebentou, e com tantas probabilidades de exito, que o rei já abandonou o palacio.

― Ah, sim? e então o senhor fica?

― Estou a ver em que param as modas.

― Quer dizer?...

― Que se a monarquia resistir, continuarei a ser monarquico.

― Mas se fôr vencida?

― Ah! nesse caso inscrever-me-ei republicano.

― Todos os monarquicos teem a sua orientação?

Elle curvou a cabeça sem responder. E eu, compreendendo a resposta no sen silencio, acrescentei:

― Nesse caso, o rei fez bem em partir.

― Pois foi esse o conselho que eu lhe dei ― acudiu vivamente.

― Então o senhor é conselheiro do rei, pelo que vejo?

― Tenho essa houra, ― e fez uma mezura.

― Mas...

― O que quer V. Ex. que eu faça? Tenho mulher e filhos, e é só dos meus doze empregos que eles vivem.

Nisto ouviu-se maior rumor, vozearias, tritos de vitória.

― Viva a republica! ― grita o meu amavel interlocutor entusiasmado.

No ano seguinte voltei ao Estoril.

Sentada no terraço do Casino, contemplava a limpidez do ceu, numa tarde ameua e radiosa, cuja luz esmaltava de prata o vasto tapete azul do oceano que se estendia a meus pés, perdendo-se no poente dourado que incendiava o horisonte.

Por uma associação de idéas, lembrei-me d'aquela aventura do pinhal, em que o ceu contrastava profundamente com o d'aquela tarde de enlevado encanto e assaltou-me uma viva curiosidade de voltar áquele sitio, para saber o resultado da estranha revolução do balsedo.

Apenas lá cheguei, ouvi uma vozinha minha conhecida, que me falou afavelmente:

― Adeus, minha senhora!

Olhei, era o meu amavel gafanhoto, o meu informador da outra vez.

― Ai, é o senhor? mas então ainda aqui está? resolveu-se afinal a ficar com as suas convicções, não é verdade?

Êle meneou a cabeça com tristeza.

― Não minha senhora, transigi, corri a alistar-me entre os vencedores, mas chamaram-me cousas feias, nomes aboticados, riram-se de mim, e eu tive de retirar-me vexado e corrido, porque a revolução foi feita só para êles.

― O que?! então a revolução foi só para êles? exagera!...

― E' como lhe digo.

— Ah! mas isso então está mau!

— Fale baixo, minha senhora: olhe que se a ouvem, póde ser presa.

— Desatei a rir com a lembrança do gafanhoto. Êle caiu em si, compreendendo o equivoco e desculpou-se.

— Quer V. Ex.a vêl-os e ouvil-os? — acrescentou — olhe nesta direcção.

Olhei e vi, numa clareira aberta no tojo, numerosas fiádas de grilos, com raras excepções um ou outro gafanhoto de permeio, constituindo uma assembléa.

Numa ligeira elevação de terreno, via-se um alentado gafanhoto, ladeado por dois grilos, todos tres emergindo de dentro da casca d'uma ostra, dando a impressão de que estavam sentados dentro d'ela.

Estes tres orthópteros constituiam a meza d'aquele congresso, dos quaes o do meio era o presidente, pois a êle se dirigiam os oradores.

Em volta, sobre as folhas das piteiras que circundavam aquele recinto, muitas formigas travadinhas e algumas abelhas de grandes chapeus, tapavam inteiramente a vista aos bezouros, que ali tinham concorrido, em grande numero, para assistir à sessão. Estes, é claro, desesperados com a irritante moda, besoiravam, protestando durante um tempo infinito, com grande gaudio das ladinas, que, entre risinhos abafados, combinavam levar, em outros dias, chapeus de palha, ainda maiores, atravessados de alfinetes medonhos, para lhes vasarem os olhos, àqueles peludos tão atacantes perante a estética feminina.

No momento em que cheguei, estava falando um grande grilo, alto, reforçado, de gesto tribunicio, fazendo a apologia da liberdade e dos principios democraticos, e salientando os seus serviços prestados à republica. Infelizmente, quando me dispunha a prestar-lhe atenção, terminou o discurso, no meio das calorosas ovações da assembléa.

Mas logo outro orador de menor corpulencia e de faces chuchadas, se levantou para felicitar o orador pela sua belissima apologia da liberdade e da ordem, os dois grandes esteios das sociedades que querem viver. Êle, pela sua parte, declarava, que toda a sua acção politica e governativa, tinha sido regulada por esses dois grandes principios, e tauto assim, que, ainda na vespera, mandara arrazar um jornal que andava a arreliar a bela sociedade nova, com umas piadinhas que lhe estragavam a digestão.

Um outro grilo interrompeu o orador, excla- mando:

― Sempre a politica da atração! Sempre a politica de transigencias! O que se devia ter feito, não era destruir o jornal, porque isso representa um atentado à liberdade de imprensa: era escangalhar as costas dos redactores, porque isso é que seria um descanso para o regimen e um alivio para todos. O que eu não admito é que se violem as leis que nós fizemos! Entendo que se devem exterminar os reacionarios, em nome da liberdade, mas que em nome da propriedade devemos respeitar o material tipográfico... para nos apoderarmos d'êle, como simples detentores.

Um grilo velho intervindo:

— Dá-me licença? isso é uma imbecilidade. Nas soluções da politica positiva, propriedade e detenção, são uma e a mesma cousa...

— O senhor não póde interromper-me! — berra o outro: proibo-o em nome da liberdade.

— Da liberdade ?!...

— Sim, para mim a liberdade é a ordem, e a ordem... é o regimento.

O velho quer falar. Levanta-se tumulto. Vozes gritam incitando-o a que fale, outras clamam por ordem.

O presidente põe na cabeça o seu barretinho de casca de avelã e interrompe a sessão.

Restabelece-se o silencio.

Então um grilo, agitando as azas, sobe acima d'uma casca de noz e interpela o governo.

Queria que lhe explicassem porque era que havendo tanto padre, com direito á peusão do estado, se tinha autorisado o casamento eclesiastico. Pois não via o governo que isto viria engrossar a concorrencia ás pensões e que dentro d'alguns anos o thesouro não poderia sustentar tantos padres?

Levanta-se prestos e assomado o mais vivo e inteligente dos grilos do governo e explica, que, se tinha autorisado o casamento eclesiastico, é porque havia uma grande crise de meninos do côro.

Um grilo independente e alegre desata a rir, e, no entusiasmo da hilaridade, finca os pés com fôrça nas costas do colega da frente.

Este grita ao presidente, para que faça entrar na ordem o desrespeitador das suas costas. O outro não atende ao convite da presidencia.

Novos gritos, novo tumulto.

Alguns congressistas avançam rubros, de murro fechado.

― Então que ó isto? ― bradam das galerias. ― repetem-se as senas do tempo do obscurantismo?

― Nunca! berra um grilo todo encrespado, dando murros na cabeça do visinho: nesses tempos de selvageria, inutilisavam as cousas que custam dinheiro... Hoje só se partem cabeças, que não valem nada!

― Oh senhores! grita um congressista ― então hoje não ha Cherry Cordeal?

Mas eis que aparece à entrada, aos pulinhos, um grilo já todo russo, correndo pressuroso, distribuindo tiras de adesivo pelos feridos, abraçando os contudidos e espalhando sorrisos por todos.

Em breve se restabelece a harmonia.

― Agora fala o Demostenes da assemblêa.

Escalpelisa os dirigentes e a sua acção revolucionaria e politica, formulando sínteses, vibrando epigramas.

A liberdade civica estava dependente do primeiro denunciante, e as garantias individuaes de lei ad-hoc formuladas sem tino e escritas com odios!...

A assistencia tremia de indignação, perante o sudario de contradições, inepcias e desvairamentos que êle desenrolava e agitava aos olhos espantados e surpresos dos ouvintes.

Os aplausos reboaram no espinhoso recinto, calorosos e formidaveis, agitando as folhas dos fetos como se estes fossem sacudidos por furioso vendaval: e, em menos de um segundo, o orador era arrebatado da tribuna e passeado ao colo, numa ceára de bracinhos erguidos, que davam palmas e agitavam folhinhas, de todas as côres, numa loucura de apoteóse, enquanto outros berravam:

― Fóra! fóra o canastrão!

Entretanto, isolado a um canto da sala, um grilo, o mais feio de todos, roia sofregamente as negras antenas, forjando epigramas e desforras.

O gafanhoto levantou para mim os olhos tristes, observando:

― É isto: os velhos passaram o tempo a fazer desejar os novos, e os novos entreteem-se a fazer saudades dos velhos!

Retirei-me, sem mesmo me despedir do meu interlocutor.

Tempos depois, num belo dia de sol, fui ao Estoril, anciosa por colher noticias da politica na floresta.

Mas ao chegar à capital da interessante republica, experimentei uma sensação estranha que não sentira em nenhuma das outras vezes que ali fôra.

Havia um silencio profundo, reinava ali uma paz de cemiterio, tinha-se a impressão do abandono e da morte. Parecia que um incendio tinha lavrado havia pouco, destruindo uma parte d'essa grande e bela floresta, outrora tão viçosa e de sombras acalentadoras.

Olhei, pesquisei todos os pontos para ver se encontrava o meu solicito informador, mas em vão.

De repente ouço uma voz em que me pareceu reconhecer a d'êle, exclamando num tom dorido e plangente:

— Não, não! Ingrata patria, não possuirás meus ossos...

Olhei na direcção da voz. Era efectivamente êle.

Lá ia a dobrar a esquina duma pedra que resguardava a planicie do abysmo.

Chamei-o Pst! pst!... Não ouviu.

Dirigia-se para a borda do precipicio...

Tive o presentimento d'uma tragedia, a visão d'um suicidio, e corri para êle gritando:

― Senhor gafanhoto! O' Senhor gafanhoto! Então? o que faz?...

Êle estacou, e vendo-me, tirou o seu chapensinho de veludo, numa rasgada reverencia, dizendo um pouco agitado:

― Por cá, minha senhora?!

― Que desgosto eu teria se o não encontrava! Diga-me, já fez as pazes com a sua republica?

― Bem se vê que anda bem longe de tudo isto!

― Não comprehendo!

― Sim, fala em paz... quando êles quasi nos devoram, para se não devorarem uns aos outros...

― Que me diz? mas então, o que eu ouvi...

― Tudo palavras.

― Entusiasmos tão sinceros...

― Adeus, minha senhora.

― Como adeus?

― Expatrio-me; não posso mais!

― Porquê?

― Não ouve além o ruido dos machados? São os rachadores de fóra que começam a invadir a floresta para derribarem e levarem as nossas arvores seculares...

― Phantasía com certeza! eu nada ouço...

― Não admira! não conhece os ruidos da floresta!...

― Mas então, o regimen trouxe taes males?...

― O regimen não... os que o não sabem conduzir... porque a verdade, é que a floresta é a patria de nós todos, e o bem d'ela seria o nosso tambem. Mas que vejo eu? As paixões a chocarem-se com tal impetuosidade, que nos vão despedaçando indistintamente.

― Exagera, porque ao menos, os seus antagonistas politicos devem estar felizes.

Aqui, teve o meu interlocutor um risinho sceptico, replicando energicamente:

― Como se engana ainda, minha senhora! Quantos, e até mesmo alguns que fizeram a revolução, têm de partir tambem! E esses, sem terem as nossas azas, vão-se arrastando por terras desconhecidas a procurar a hospitalidade e o pão que seus irmãos lhe negam... Ainda mais infelizes do que nós, porque levam a desolação dos seus ideaes mortos!...

― Adeus, minha senhora, adeus para sempre!

E là se foi o meu adoravel gafanhoto...

Pelo caminho muitos outros encontrei que voavam em demanda das regiões longinquas.

E por esses jardins fóra, tufos de miosotis balouçavam nas suas ástes delicadas a ideal e purissima flor azul, que murmurava docemente:

― Não me esqueças!... não me esqueças!...