A Dança dos Ossos/III
O velho barqueiro contava esta tremenda história de modo mais tosco, porém muito mais vivo do que eu acabo de escrevê-lo, e acompanhava a narração de uma gesticulação selvática e expressiva e de sons imitativos que não podem ser representados por sinais escritos. A hora avançada, o silêncio e solidão daqueles sítios, teatro desses assombrosos acontecimentos, contribuíram também grandemente para torná-los quase visíveis e palpáveis. Os caboclos, de boca aberta, o escutavam como olhos e ouvidos transidos de pavor, e de vez em quando, estremecendo, olhavam em derredor pela mata, como que receando ver surgir o temível esqueleto a empolgar e levar pelos ares alguns deles.
— Com efeito, Cirino! disse-lhe eu, foste vítima da mais pavorosa assombração de que ha exemplo, desde que andam por este mundo as almas do outro. Mas quem sabe se não foi a força do medo que te fez ver tudo isso? Além disso, tinhas ido muitas vezes à guampa, e talvez ficasse com a vista turva e a cabeça um tanto desarranjada.
— Mas, meu amo, não era a primeira vez que eu tomava o meu gole, nem que andava de noite por esses matos, e como é que eu nunca vi ossos de gente dançando no meio do caminho?
— Os teus miolos é que estavam dançando, Cirino; disso estou eu certo. Tua imaginação, exaltada a um tempo pelo medo e pelos repetidos beijos que davas na tua guampa, é que te fez ir voando pelos ares nas garras de Satanás. Escuta; vou te explicar como tudo isso te aconteceu muito naturalmente. Como tu mesmo disseste, entraste na mata com bastante medo, e, portanto, disposto a transformar em coisas do outro mundo tudo quanto confusamente vias no meio de uma floresta frouxamente alumiada por um luar escasso. Acontece ainda para teu mal que, no momento mais crítico, quando ias passando pela sepultura, empaca-te o maldito burro. Faço idéia de como ficaria essa pobre alma, e até me admiro de que não visses coisas piores!
— Mas então que diabo eram aqueles ossos a dançarem, dançarem tão certo, como se fosse a toque de música,- e aquele esqueleto branco, que trepou na garupa, e me levou por esses ares?
—Eu te digo. Os ossinhos que dançavam, não eram mais do que os raios da lua, que vinham peneirados por entre os ramos dos arvoredos balançados pela viração, brincar e dançar na areia branca do caminho. Os estalos, que ouvias, eram sem dúvida de alguns porcos do mato, ou qualquer outro qualquer bicho, que andavam ali por perto a quebrar nos dentes cocos de baguassu, o que, como bem sabes, faz uma estralada dos diabos.
—E a caveira, meu amo?... de certo era alguma cabaça velha que um rato do campo vinha rolando pela estrada...
—Não era preciso tanto; uma grande folha seca, uma pedra, um toco, tudo te podia parecer uma caveira naquela ocasião.
Tudo isto te fez andar à roda a cabeça azoinada, e o mais tudo que viste foi obra de tua imaginação e de teus sentidos perturbados. Depois, qualquer coisa, talvez um maribondo que o picou.
— Maribondo de noite!... ora, meu amo!... exclamou o velho com uma gargalhada.
—Pois bem!... fosse o que fosse; qualquer outra coisa ou capricho de burro, o certo é que o teu macho saiu contigo aos corcovos; ainda que atordoado, o instinto da conservação fez que te agarrasses bem à sela, e tiveste a felicidade de vir dar contigo em terra mesmo à porta de tua casa, e eis aí tudo.
O velho barqueiro ria com a melhor vontade, zombando de minhas explicações.
— Qual, meu amo, disse ele, réstea de luar não tem parecença nenhuma com osso de defunto, e bicho do mato, de noite, está dormindo na toca, e não anda roendo coco.
E pode Vm. ficar certo de que, quando eu tomo um gole, ali é que minha vista fica mais limpa e o ouvido mais afiado.
— É verdade, e, a tal ponto, que até chegas a ver e ouvir o que não existe.
— Meu amo tem razão; eu também, quando era moço, não acreditava em nada disso por mais que me jurassem. Foi-me preciso ver para crer; e Deus o livre a Vm. de ver o que eu já vi.
—Eu já vi, Girino; já vi, mas nem assim acreditei.
—Como assim, meu amo?...
—É que nesses casos eu não acredito nem nos meus próprios olhos, senão depois de estar bem convencido, por todos os modos, de que eles não enganam.
Eu te conto um caso que me aconteceu.
Eu ia viajando sozinho — por onde não importa — de noite, por um caminho estreito, em cerradão fechado, e vejo ir, andando a alguma distância diante de mim, qualquer coisa, que na escuridão não pude distinguir. Aperto um pouco o passo para reconhecer o que era, e vi clara e perfeitamente dois pretos carregando um defunto dentro de uma rede.
Bem poderia ser também qualquer criatura viva, que estivesse doente ou mesmo em perfeita saúde; mas, nessas ocasiões, a imaginação, não sei por quê, não nos representa senão defuntos. Uma aparição daquelas, em lugar tão ermo e longe de povoação, não deixou de me causar terror.
Contudo o caso não era extraordinário; carregar um cadáver em rede, para ir sepultá-lo em algum cemitério vizinho, é coisa que se vê muito nesses sertões, ainda que àquelas horas o negócio não deixasse de tornar bastante suspeito.
Piquei o cavalo para passar adiante daquela sinistra visão que me estava incomodando o espirito, mas os condutores da rede também apressaram o passo, e se conservavam sempre na mesma distância.
Pus o cavalo a trote; os pretos começaram também a correr com a rede. O negócio ia-se tornando mais feio. Retardei o passo para deixá-los adiantarem-se: também foram indo mais devagar. Parei; também pararam. De novo marchei para eles; também se puseram a caminho.
Assim andei por mais de meia hora, cada vez mais aterrado, tendo sempre diante dos olhos aquela sinistra aparição que parecia apostada em não me querer deixar, até que, exasperado, gritei-lhes que me deixassem passar ou ficar atrás, que eu não estava disposto a fazer-lhes companhia. Nada de resposta!... o meu terror subiu de ponto, e confesso que estive por um nada a dar de rédea para trás a bom fugir.
Mas negócios urgentes me chamavam para diante: revesti-me de um pouco de coragem que ainda me restava, cravei as esporas no cavalo e investi para o sinistro vulto a todo galope. Em poucos instantes o alcancei de perto e vi... adivinhem o que era?... nem que dêem volta ao miolo um ano inteiro, não são capazes de atinar com o que era. Pois era uma vaca!...
— Uma vaca!... como!...
— Sim, senhores, uma vaca malhada, que tinha a barriga toda branca — era a rede, — e os quartos traseiros e dianteiros inteiramente pretos; era os dois negros que a carregavam. Pilhada por mim naquela caminho estreito, sem poder desviar nem para uma banda nem para outra, porque o mato era um cerradão tapado o pobre animal ia fugindo diante de mim, se eu parava, também parava, porque não tinha necessidade de viajar; se eu apertava o passo lá ia ela também para diante, fugindo de mim. Entretanto se eu não fosse reconhecer de perto o que era aquilo, ainda hoje havia de jurar que tinha visto naquela noite dois pretos carregando um defunto em uma rede, tão completa era a ilusão. E depois se quisesse indagar mais do negócio, como era natural, sabendo que nenhum cadáver se tinha enterrado em toda aquela redondeza, havia de ficar acreditando de duas uma: ou que aquilo era coisa do outro mundo, ou, o que era mais natural, que algum assassinato horrível e misterioso tinha sido cometido por aquelas criaturas.
A minha história nem de leve abalou as crenças do velho barqueiro que abanou a cabeça, e disse-me, chasqueando:
— A sua história está muito bonita; mas, perdoe que lhe diga, eu por mais escuro que estivesse a noite e por mais que eu tivesse entrado no gole, não podia ver uma rede onde havia uma vaca; só pelo faro eu conhecia. Meu amo decerto tinha poeira nos olhos.
Mas vamos que Vm., quando investiu para os vultos, em vez de esbarrar com uma vaca, topasse mesmo uma rede carregando um defunto, que este defunto saltando fora da rede lhe lhe pulasse na garupa e o levasse pelos ares com cavalo e tudo, de modo que Vm., não desse acordo de si, senão no outro dia em sua casa e sem saber como?... havia de pensar, ainda, que que eram abusões? — Esse não era o meu medo: o que eu temia, era que aqueles negros acabassem ali comigo, e, em vez de um, carregassem na mesma rede dois defuntos para a mesma cova!
O que dizes era impossível.
—Esse não era o meu medo: o que eu temia, era que aqueles negros acabassem ali comigo, e, em vez de um, carregassem na mesma rêde dois defuntos para a mesma cova!
O que dizes era impossível.
—Impossível!... e como é que me aconteceu?... Se não fosse tão tarde, para Vm. acabar de crer, eu lhe contava por que motivo a sepultura de Joaquim Paulista ficou sendo assim mal-assombrada. Mas meu amo viajou; há de estar cansado da jornada e com sono.
—Qual sono!... conta-me; vamos a isso. Pois vá escutando.