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A Esperança Vol. 2/A casa negra

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A Casa Negra
 

 

A hora em que mais fundo inspira o somno
Ouviu-se horrendo grito, unico; estranho!
D'onde? de quem? porque? ninguem o soube, etc.


A. Feliciano de Castilho
(Noite do Castello)

A aldeia do Nogueiral é uma pobre, mas pittoresca povoação que se espreguiça descuidosa pela falda d'uma elevada serra. Banha-lhe os pés um riacho que serpenteia por entre moitas de verdura, e sobre um tapete de areia fina e lustrosa A meia encosta da serra, eleva-se a elegante igreja de parochia, e a um dos lados, vê-se um cemiteriosinho gracioso e simples, simples como é tudo nas aldeias. Mas esta leva de vantagem a umitas, o ter um extenso e frondoso bosque de gigantescos sobreiros e carvalhos, escurecido aqui, e além, pelo verde negro de copados medronheiros.

Este bosque estende-se desde a povoação até um rio que se precipita em impetuosa corrente d'umas rochas dentadas e negras.

Perto d'esta queda d'agua, e a um kilometro da aldeia do Nogueiral, eleva-se uma casa de bonita apparencia, mas que escondida assim entre corpulentas arvores, e embalada pelo rugir impetuoso da corrente, nos faz lembrar mysteriosos crimes!...

As suas paredes são alvissimas, mas não obstante, o povo denomina-a — A Casa Negra — e contam d'ella coisas horrorosas!

Um veneravel velho, e uma encantadora menina a tinham habitado. Era pai e filha; mas havia dois annos que essa joven, esquecendo o decrepito pregenitor, fugiu da casa paterna com um homem que lhe segredou aos ouvidos innocentes palavras de tentação; e o triste velho succumbiu ao peso da vergonha e da saudade! E a filha não veio chorar sobre a humilde campa do pai que ella assassinou! Ninguem mais ouviu fallar n'ella na aldeia do Nogueiral.

Um anno esteve a casa deshabitada, mas alguns camponezes, que recolhiam mais tarde para os seus casaes, e que passavam perto da Casa Negra vinham contar, tranzidos de medo, que tinham ouvido gritos sahidos da casa deserta.

Passado um anno, viram chegar á aldeia o raptor de Deolinda, a filha ingrata; mas em vez da desgraçada, acompanhava-o outro homem de rosto sinistro e repugnante.

Algumas raparigas da aldeia, ousaram perguntar por Deolinda, e o infame raptor, respondeu que a tinha desposado, e que vivia no Porto, no seio da abundancia e da felicidade.

Tomou o caminho da Casa Negra, que, dizia elle, vinha arrendar áquelle seu amigo que o acompanhava, e que alli se vinha estabelecer.

Depois de instalar na Casa Negra o seu novo habitante, deixou a aldeia do Nogueiral, levando mil presentinhos e lembranças que as raparigas mandava á sua companheira nos folguedos infantis.

O viver do novo habitante da casa negra era um viver cheio de mysterios, e principiou a despertar suspeitas nos animos rudes e singels dos aldeãos do Nogueiral.

Quem era esse homem? D'onde vinha? Para que fim veio habitar uma casa ha tanto tempo dezerta de gente viva, e só, no dizer do povo, povoada de espectros?

Eram as perguntas que entre si faziam os pacificos habitantes do Nogueiral.

Alguns mais curiosos, chegaram a examinar que na casa negra não se accendia o lume em todo o dia, e só ás horas d'alto silencio da noite, se viam sahir nuvens de espesso fumo, e ao mesmo tempo ouvia-se dentro da casa muito barulho, e rostos sinistros apparecerem pelas janellas!

O que fazia alli esse homem? para que arrendou elle essa casa, se os terrenos que a circundavam continam incultos?

Assim passaram oito mezes; os moradores da aldeia fazendo os seus commentarios, bem pouco lisongeiros ao mysterioso habitante da casa negra, e este sem se importar com elles, nem com a curiosidade que o seu viver excitava, proseguia no seu mysterioso existir. Poucas, bem poucas vezes, sahia de casa, e quando o fazia era para comprar provisões.

As velhas do Nogueiral diziam umas ás outras que aquelle homem tinha pacto com o demonio, e que tinha vindo presidir ás reuniões que os espritos faziam n'aquella casa amaldiçoada.

Estavamos no fim d'outubro, em dia de Santos.

As raparigas, e rapazes faziam os classicos magustos, e dançavam alegremente em volta das fogueiras, aonde as castanhas estalavam. Os velhos entretinham-se nos seus misteres da lavoura, e as velhas conversavam no seu predilecto assumpto — a casa negra e o seu habitante.

A tia Brizida — a mais velha da aldeia — estava assentada no ultimo degrau da escada da sua casa, e mais duas mulheres idosas tambem, estavam acocoradas junto d'ella.

— Ai! Senhora do Amparo — dizia uma benzendo-se — eu cada bes que me alembra o que bi hontem á noite!...

— E que foi tia Entonha? — procurou uma das companheiras.

— Jesus, ainda estremeço em pensar em tal! Bento nome de Deus! — E a velha tornou-se a benzer.

— Mas que foi, tia Entonha?

Probablemente passou perto da casa negra — respondeu a senhora Brizida com ar sentencioso.

— Justamente, senhora Brigida; eu le conto o que bi:

— O meu tinha ido cortar estrume para o monte da fidalga, e que, como sabem, fica perto d'essa casa endemoninhada. Anoiteceu, e elle sem bir! Tive medo que le tibece succedido alguma ousa má, cobri o capote pela cabeça e fui-me em cata d'elle.

Quando passei pela casa negra estaba esta tão socegada e muda como um cemiteiro, mas mesmo assim tibe medo; eu ia a resar no meu rosairo, e sem saber como, este cahiu-me da mão, e eu senti passar perto de mim a modo de um bode negro, e ouvi patas a godijar! Benzi-me e passei adiante. Cheguei ao fim do monte, chamei pelo meu , mas elle não me respondeu.

— Ai! Credo Bento! — disseram as outras velhas — em tal sitio, e a tal hora e vocemecê sósinha!!

— E eu só! não ouvia senão o barulho da agua do rio prexepitando-se das fragas, e o vento que passava por riba dos carvalhos! Chamei de nobo pelo meu , corri o monte todo, e nada! Lembrei-me que teria ido pelo caminho do rio com os carros da fidalga, e resolvi a boltar para casa; mas quando tornei a passar defronte da casa negra... Jesus...

— Que foi?

— As jinellas estabam abertas, e d'ellas sahia uma luz, que luz! Ai S. Bento; — era uma luz azulada, e n'uma das jinellas estava uma cara, que botaba lume pela boca, nariz, e olhos!

— Ai! S. Sipriano — vocemecê está certa de ber isso?

— Se estou certa! Certa como estou de que logo quando os sinos tocarem pelos mortos elles hão-de bir em percição á roda da igreja.

— Eu fiquei parba de medo, e oubi gritos e gemidos que sahiam d'essa casa amaldiçoada, e a estes gritos, e a estes gemidos, respondiam outras vozes, se aquilo eram vozes, cantando umas cantigas, que só o diabo as entendia; e depois senti que dançava lá dentro; de novo oubi os gritos e os gemidos, e o phantasma não de mobia da jinella, e continuava a lançar chamas pelos olhos, nariz e boca...

— Cale-se, pelas chagas de Christo, tia Entonha: como pôde vocemecê vêr isso e não morrer?

— Eu levava comigo a correia de Santo Agostinho, e as bentinhas da Senhora do Carmo, benzi-me com ellas tres bezes, dixe o credo em cruz e botei a fugir para casa.

Eu queria que o Entonho do Curral oubise isto, esse que se ri quando a gente falla de bruxas, e de espritos!!!

— Esse rapaz anda fóra da graça de Deus — accrescentou a snr.a Brizida.

— O outro dia — disse uma das velhas — vinha o meu Joquim do monte com as ovelhas e biu dois homes (cuidou elle que eram homes) que passeiavam no mais espesso do bosque que rodeia a casa negra, elle faz-se acercando d'elles cautelosamente para lhe oubir o que diziam... eis se não quando abriu a terra debaixo de seus pés, e os dois tinhosos, que outra coisa não eram, sumiram-se nas entranhas da terra!!

— Cruzes, Anjo Bento, que medo — murmurou a snr.a Antonia, benzendo-se.

— E' que o Joquim perdeu-os de bista, e elles tornaram para outro caminho do bosque — acrescentou a snr.a Brizida, com ares de duvida.

— Não, senhora, o meu Joquim estaba tão perto d'elles que se não podiam esgueirar sem elle os ber e elle diz que se sumiram na terra.

— Pois olhe o seu Joquim não era home que faltasse à berdade — accrescentou a snr.a Entonha.

— Lá isso não, nem por minas d'oiro

N'este momento veio pôr termo á conversação das tres velhas, uma rapariga trajando com simplicidade, mas com certo luxo.

— Tenham muito boas tardes — disse a moça acercando'se d'ellas.

— Deus te dê as mesmas rapariga; isto é nobidade por aqui!

— Não achas?

— Pois olha que já ha um par de dias que te não puz os olhos em cima, — accrescentou a snr.a Brizida — nem no domingo na egreja; não ouviste missa rapariga?

— Não senhora, porque me foi preciso ficar em casa com a snr.a D. Vicentina.

— Então tua ama não está melhor?

— Alguma coisa, mas não de todo.

— A snr.a Fidalga debe estar muito morificada com a molestia da filha a quem tanto quer.

— Não fazem vm.ces ideia; ha perto d'um mez que lhe não visitava os labios um sorriso, mas hoje vi-a rir-se deveras.

— E porque? — procurou com curiosidade a snr.a Antonia.

— E' porque o seu Joaquim, snr.a Margarida, foi-lhe contar uma historia muito curiosa d'uns homens que vira sumirem-se debaixo da terra, no bosque que circunda a casa negra!!

— E tua ama ria-se d'isso? — perguntou admirada a snr.a Margarida.

— Ria, sim, e a bom rir, e eu fiz-lhe companhia. O' snr.a Margarida, o seu Joaquim quantos quartilhos tinha bebido n'esse dia? — E a moça soltou uma risada.

— Quaes quartilhos nem meios quartilhos! — respondeu a velha com azedume — tu é que me parece que vaes a estar uma herege!

Malfadada foi a hora em que tua mãe te deixou ir para essa casa aonde perdeste a religião.

— Por fim hade-te acontecer como á alambicada da filha do snr. Anselmo, que Deus tem; tambem se ria de tudo o que é sagrado, e por fim pregou-a ao pai na menina do olho.

— Não me compare com essa infeliz, senhora Antonia; ella perdeu-se, e matou o pai, porque uma má tentação a venceu; era formosa e rica, por isso foi cobiçada; mas nem ella, nem eu, nos rimos das coisas sagradas.

— Dizem a mim que não.... Olha, uma noite, e era noite de S. João, por signal, estava eu em casa d'ella, n'essa excommungada casa negra, e eu fallei em ir apanhar berbena, e alfasema pelo orvalho, duas ervas que apanhadas n'esta noite, servem para se adivinhar qualquer coisa que a gente queira saber, e Deolinda ria-se a bandeiras despregadas, e chamou-me imprismeira! Outra bez estabamos a fallar em bruxas e espritos e ella mandou-nos callar, e disse que aquillo era tudo uma patranha, uma impestura!!!

— E tinha rasão — accrescentou a rapariga — as minhas amas tambem não consentem que fallem n'isso diante d'ellas, e despersuadem as pessoas que acreditam n'essas coisas.

— Ora diz-lhe que me despersuadam a mim — disse a snr.a Brisida em ar de desafio.

— Ou a mim.

— Ou a mim, tambem — disseram em coro as tres velhas.

— Persuadia, persuadia; a senhora convence com taes rasões que é impossivel resistir-lhe.

— Olhem, eu quando para lá fui, tambem acreditava em bruxas e espiritos.....

— E agora não acreditas?

— Não, senhoras.

— Cala-te rapariga, que nem te posso oubir tal. Anjo bento que tal tu estás já!!!

— Se tu bices o que eu bi uma noite.... ai Credo, ainda me não posso lembrar de tal — E a snr.a Brisida benzeu-se, as outras velhas abriram desmesuradamente os olhos, e a rapariga sorriu.

— O que bio snr.a Brigida? — procurou Margarida.

— Oh! filhas, Deus bos libre de ber tal!...

Era uma noite negra, negra como um carbão e eu bi ao redor da egreja uma longa procissão de phantasmas, todas vestidas de branco, e com bellas accesas na mão, e resavam e gemiam, e choravam que se partia mesmo o coração de quem os oubia.

— E vm.ce oubiu-as, senhora Brigida?

Oubi, oubi, com este, e com este — disse a belha, apontando para os ouvidos; depois accrescentou: — Que diria tua ama se eu lhe contasse isto, Jabel?

— O que ella diria não o sei, mas eu pela minha parte digo-lhe que isso era brincadeira dos rapazes da aldeia, ou penitencia que alguem andava a cumprir.

— E's uma tola, nem era uma nem oitra coisa, — eram espritos que andavam ás procissões que n'este mundo deixaram de acompanhar.

— Bem faço eu que as tenho andado todas, para cá não bir depois.

— E eu.

— E eu.

A rapariga sorriu-se.

— Riste, grandecissima tola? — procurou a snr.a Brizida — Pois eu te conto oitra que eu bi.

Quando o meu home, que Deus haja, era pastor, eu ia levar-lhe a ceia; uma occasião elle andaba longe com o redil, andaba no balle do rio-pardo, e eu quando binha para casa passei n'aquella encruzilhada que bós sabeis, e bi um rebanho de patas a sapatiarem, e a grosnarem... Arrepiaram-se-me os cabellos, e desbiei-me do caminho; mas de repente, as bruxas deixaram de dançar, lebantaram bôo, passaram junto de mim, e era tal o bento que faziam que me ergeu do chão como se posse um polborinho, e levaram-me... eu sei lá para onde! o que sei é que ao outro dia amanheci no balle do rio pardo, mesmo ao pé do redil onde estaba o nosso gado, e tão cheia de pisaduras, e tão moida estaba como se me batessem com um sacco de areia com doze bintens dentro.

— E que dizes a isto Jabel? — procuraram as attentas ouvintes da snr.a Brizida.

— Eu o que digo — respondeu a rapariga — é que a snr.a Brizida adormeceu no val do rio pardo e sonhou que se tinha vindo para casa, e que vira patas ou bruxas.

— Qual sonho nem qual carapuça; eu estaba acordada como agora estou.

— E tambem dormirá toda essa gente que os phantasmas na casa negra? — procurou a snr.a Antonia.

— Quaes phantasmas? isso é gente viva, não são espiritos.

— Quantas pessoas habitam a casa negra, Jabel?

— Um homem só, ouvi dizer, snr.a Brizida.

— Porque é então que o Joquim bio perto d'ella dois homes desconhecidos, e que se sumiram pela terra abaixo? E porque rasão a tia Entonha bio honte á noite um phantasma na jinella a botar lume pelos olhos, nariz, e boca; e oubio dentro um barulho tal que parecia que todos os tinhosos do inferno, andavam a dançar alguma walsa infernal? — Eu não sei o que isso é, snr.a Brizida, mas o que lhe posso dizer com certesa é que tudo isso é feito por gente viva, fosse ella qual fosse, porque diz a minha ama: — Espirito que vai, não volta.

— Ai! bento nome da Santissima Trindade! — murmuraram as tres velhas — tua ama está aqui, está no inferno!

— Por não crer em espiritos? — procurou a rir a rapariga. — Se elles não voltam...

— Ai, cruzes, que mafarrico de rapariga esta!!

— Deixem-a fallar a ella, e á ama; dizem que não boltam cá as almas do outro mundo, mas por casa as tem trazido...

— Não? — procurou a rapariga admirada.

— Sim, sim. Pois eu não oubi dizer ha dias a dois cabalheiros que iam passando, e que vinham de casa de tuas amas: — Muito esprituosa é a menina Vicentina...

— Então vocemecês que entendem d'isso?

— Entendo o que toda a gente ha de entender — que a snr.a D. Vicentina é muito annexa aos espritos.

A rapariga soltou uma gargalhada.

— Riste, grandecissima tola?

— Podera não rir, snr.a Brizida; ha! ha! ha!

— Então tu, minha alambicada, que entendes do dizer dos cabalheiros?

A rapariga ia a responder, quando n'um movimento que fez, deu com os olhos em um guapo mancebo que estava parado em frente da escada, e que ouvia com toda a attenção a conversa das velhas, e da rapariga.

— Ai, o snr. Antoninho! — exclamou Isabel.

— Quem é aquelle petimetro? — procurou a snr.a Brizida.

— E' o primo da minha ama nova, aquelle com quem ella está para casar.

O moço cavalheiro ao ouvir o grito da rapariga, adiantou-se, e saudou as quatro mulheres.

— Já foi a casa, senhor Antoninho?

— Ainda não, Isabel; ia agora de caminho, quando, passando alli defronte, me pareceu ouvir-te fallar, parei para me certificar, e ouvi pronunciar o nome da senhora D. Vicentina, prestei attenção e ouvi...

— Ah! ouviu, meu senhor? procurou a senhora Brizida. — Ora diga-me, qual é a sua opinão a respeito do habitante da casa negra?

— Não sei o que vocêmece quer dizer.

— Quero dizer, meu senhor, se v. s.a acredita que essa casa amaldiçoada é habitada por bibos?

— Ainda outra vez a casa negra! — disse o mancebo sorrindo — já um camponez que encontrei no bosque aonde andava á caça, me contou cousas do arco da velha, d'essa casa e do seu habitante!!

— Pois olhe que lhe não disseram nada de mais.

— Bem de menos — accrescentou maliciosamente a moça.

— Cala-te tonta, não sabes o que dizes; deixa-me contar a este senhor o que bi hontem á noite.

E a senhora Antonia repetiu novamente a apparição do phantasma que deitava lume pelos olhos, nariz e bocca.

— Com effeito, isso é horrivel, horrivelissimo, minha santinha! Vocêmece está bem certa de ver isso? — procurou o mancebo, a quem um sorriso de incredulidade entre-abria os labios.

— Se estou? boa pergunta, senhor! — Pois é preciso procurar meios de afugentar as almas do outro mundo d'essa casa, e d'estes sitios.

E dizendo isto, o mancebo despediu-se das velhas, procurou a Isabel se não voltava para casa de seus amos n'essa noite>

— Só espero por meu irmão, que foi, segundo me disseram, fazer um magusto para a eira do senhor Vigario.

— Então até logo, Isabel.

O mancebo chamou por um perdigueiro que o seguia, e tomou o caminho da casa da fidalga, como lhe chamavam na aldeia.

Ao outro dia o primo de Vicentina dirigiu-se para a villa de ***, aonde foi sollicitar alguma tropa para, dizia elle, ir dar caça ás almas do outro mundo que tinham a sua habitação nos bosques que rodeiam a casa negra, e a aldeia do Nogueiral.

Depois de ter uma longa conferencia com o commandante, este mandou pôr á sua disposição um troço de soldados.

Foi seguido d'elles que no outro dia, quase ao anoitecer, chegou ao Nogueiral.

Espessas nuvens envolviam a terra. Era uma noite negra e fria como são quasi todas as do mez de novembro; a tropa seguida por uma grande multidão de camponezes, rodearam com a maior precaução a casa negra.

Ella estava muda como um sepulchro! Parecia que nem um ente vivo a habitava!...

Era talvez meia noite; hora fatidica: hora que as doendes, as vampiras, e as bruxas escolhem para fazerem os seus malificios!.. D'essa casa negra, até alli silenciosa, ouviu-se de repente um barulho infernal! As janellas abriram-se com fragor e luzes d'uma côr sinistra sahiram por ellas. E, (horror)! n'uma d'essas janellas estava essa visão que tanto atemorisou a senhora Antonia do quintal!!

E aquillo era uma realidade que viam centenares d'olhos, não era uma ficção de velha estonteada pelo medo. Todos viram essa cara disforme que vomitava lume d'uma côr azulada, e que immovel parecia contemplar a terra.

Todos ouviram esses gemidos que sahiam de ao pé do phantasma, e esses gritos, essas risadas que pareciam responder a elles.

Os aldeões benzeram-se, e foram-se desviando. Acharam mais prudente não arrastar assim as iras d'esses demonios que, no entender d'elles, celebravam alli uma das suas bacanaes.

Todas, excepto um, ao amanhecer, tinham trocado o bosque pelo confortavel calôr do lar domestico.

E esse um que ficou com a tropa era Antonio do curral, esse moço descrente que as velhas tanto tinham censurado.

Apenas amanheceu, a um signal do primo da Fidalga, os soldados envadiram a casa negra para indagarem do seu habitante as coisas sobre naturaes que tinham presenciado!

Mas..... — coisa admiravel — a casa estava deserta!!!

Foi inutil toda a busca que se deu á casa d'alto a baixo; o seu mysterioso habitante tinha desapparecido: e comtudo Antonio do curral jurava, punha as mãos nos Santos Evangelhos, em como esse homem ou demonio tinha entrado ao anoitecer para essa casa aonda agora não apparecia!

Antonio procurou, procurou com a paciencia que caracterisa a gente do povo, e por fim de tantas indagações descobrio, cheio de jubilio, que na parede d'uma das salas se abria uma porta falsa!

Essa porta estava cuidadosamente fechada. Após alguma resistencia cedeu, e todos se prescipitaram em torbilhão no interior d'uma sala espaçosa bastante, e á qual dava unicamente luz uma clara-boia. N'essa sala viram dispersos, e em desordem... Ora adivinhem o que?...

Todos os utensilios de fazer... moeda falsa!!!

Esclareceu-se então a verdade; explicou-se o mysterio.

Mas por onde se escapou o falsario, ou falsarios?

Procuravam todos os circunstantes.

Antonio do curral como querendo responder a esta pergunta fazia novas indagações nas paredes da sala mysteriosa, e d'ellas resultou o descubrimento d'outra, a porta falsa! Aberta esta uma lufada de ar humido, pesado, e insolubre que costuma haver nos subterraneos, veio fustigar as faces d'esses homens que recuaram de involuntario terror.

Antonio do curral foi o primeiro que cobrou animo, e que chegou perto d'essa abertura feita na parede, mas que ia dar quem sabe aonde. Além d'ella só reinava trevas, e o silencio dos tumulos!

— Venha uma luz — gritou Antonio.

Um soldado olhou em roda de si para vêr se encontrava o objecto perdido, e com espanto não despido de terror viu a um canto uma caraça de papelão, que se lhe figurou uma caveira, com uma vela dentro. Exitou ainda antes de tirar esta, mas um novo pedido de Antonio decidiu-o.

A vela foi acesa, e á luz d'ella viram uma tortuosa escada que descia para as entranhas da terra.

Antonio precipitou-se por ella abaixo, após elle o primo de Vicentina, e todos os soldados.

A escada era longa; — no fim d'ella encontrara-mse em um corredor humido e escuro. No fim talvez de cem passos já precorridos, avistaram um pequeno raio de luz. Aproximaram-se. A luz vinha de cima por uma breve abertura a travez da qual se viam alguns ramos do bosque!

Era evidente que estavam no sitio em que o tio Joaquim viu sumir os dois homens pela terra abaixo.

— Mas como couberam elles por essa pequena abertura?

Repararam então que mais adiante havia uma lagea longa e lisa: empurraram-na, e ella cedeu, girou sobre uns gonzos de ferro e mostrou uma abertura batante longa para dar passagem a um homem. Transposta esta estava-se no meio do bosque, e a lagea boltando pelo seu proprio movimento ao seu lugar mostrava uma superficie musgosa que illudia perfeitamente.

Para que fôra feita aquella passagem subterranea? Ninguem o sabia, e ainda hoje é um mysterio para toda a gente do Nogueiral!

A aldéan'esse dia era uma perfeita torre de BAbel, ninguem se entendia porque... todos fallavam a um tempo.

As nossa amigas da tarde precedente lá foram tambem á casa negra fazer o seu auto de corpo de delicto, não sem primeiro se machucarem bem em agua benta, e de se munirem de um dente de alho, d'um bocainho de pão e folhas de oliveira benta que metteram cuidadosamente nas algibeiras.

Assim preparadas transpozeram os hombraes da casa negra na qual fizeram mil commentarios, e um d'elles era se o diabo não seria esse moedeiro falso? pois no entender das boas velhas não podia deixar de alli andar mão de satanaz.

Todas as pesquizas que fizeram para encontrar o mysterioso habitante da casa negra foram inuteis, e d'elles só colheram a certeza de que Diolimnda fora envenenada pelo seu raptor, no qual ninguem mais ouviu fallar.

A casa esteve ainda muito tempo deshabitada, por que os supersticiosos moradores do Nogueiral olhavam com horror e susto para essas paredes que o tempo ia enegrecendo com o seu sopro.

Hoje habita n'ella Antonio do curral, que casou um anno depois d'estes acontecimentos com aquella descrente Isabel criada da menino Vicentina. Esta tambem cazou com o primo Antoninho, como ella e Izabel lhe chamavam.

O que posso assegurar-lhes é que são dois pares invejaveis pela sua felicidade.

A tia Brizida morreu! peço um padre-nosso pela sua alma.

A senhora Antonia, e a senhora Margarida vivem ainda muito velhinhas, é verdade, mas aos serões entreteem as moças e rapazes da aldéa contando-lhe mil historias de bruxas e uma que não esquece nunca é a da casa negra.

Fim