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A Esperança Vol. 2/Clotilde

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Clotilde

Romance original
 
Por
 

— Se v. exc.a me dá licença eu lerei em seu nome o seu destino.

— Já que lhe é concedido o dom de lêr no futuro, não só lhe dou licença de interrogar a minha estrella, mas até lhe peço que o faça. Tenha com tudo cautella, não seja ella mentirosa nas suas respostas.

Os passeiantes chegaram em grente da rua dos loureiros. Josephina voltou-se e perguntou aos dois moços.

— Não vos recordaes de quantas vezes corremos por esta rua, para vêr qual chegava primeiro ao fim?

— Fazes de nós bem esquecidos, respondeu Paulino, suspirando.

A filha do marquez continuou a conversar com o primo, e o seu irmão disse a Clotilde:

— Eu respondi por ambos nós, minha senhora e v. exc.a já talvez não se lembre dos bellos dias que passamos todos.

— Essa supposição é injusta, snr. Paulino, é impossivel esquecerem-se essas impressões da infancia; ellas gravam-se em nossos corações em caracteres que o tempo não tem poder de riscar.

N'este momento chegavam ao pé d'elles o marquez e a baronesa.

— Meu filho, a maior parte dos convidados já subiram para os salões, dizia o marquez, será bem recolhermos.

Clotilde pareceu acordar d'um sonho! A claridade da lua, a conversação animada de Paulino, suas expressões sinceras e meigas, haviam-n'a elevado acima d'este mundo: n'esses momentos viveu n'esse paraiso que ella tantas vezes havia sonhado, mas as palavras do marquez desfizeram essa illusão.

Chegaram aos salões. Junto da filha mais nova do barão estava uma cadeira vazia, Clotilde foi-a occupar.

D. Francisquinha teria 15 annos quando muito, era elegante, e mais formosa que suas irmãs; tambem não tinha um ar tão malicioso como ellas, e poucas vezes as acompanhava nas suas críticas conversações.

― Quem é a sua modista, minha senhora, perguntou D. Francisca á outra menina apenas esta se assentou.

― Sou eu mesma, respondeu Clotilde.

― Pois que! ― tornou a outra menina com admiração, ― não manda fazer os seus vestidos no Porto, ou em Lisboa?

― Não minha senhora, porque depois não teria eu em que entreter o tempo.

― E entretem-a o trabalho?

― Quem não hade n'elle achar distracção, respondeu Clotilde, se não fosse o trabalho os dias me pareceriam annos.

― Pois a mim não me acontece o mesmo; eu não gosto do trabalho, e de mais não tenho tempo pata trabalhar. De manhã, levanto-me muito tarde, e tanto eu como as manas, almoçamos nos nossos quartos. Até ás 11 horas estamos ao toucador, depois vamos estudar as nossas lições de musica, aonde nos entretemos até ao jantar, que é quasi á noite; no fim do jantar vamos dár um passeio ao jardim; á noite temos sempre partida em nossa casa, e jogam até á meia noite. Já vê que não nos resta tempo para trabalhar.

― Ó Antoninha, olha como a tua irmã conversa com a senhora pensadora, dizia Margarida.

― Não que tu não podes fazer ideia da parvulez da Francisquinha, parece mesmo uma Maria d'aldeia. Estamos sempre a reprehendel-a, mas não toma emenda, conversa com todas as pessoas, sem se importar com a sua posição; e a gente deve distinguir-se, e não se rebaixar fallando com pessoas que não são da nossa gerarchia.

― Tens razão, e não deves consentir que ella tenha intimidade com aquella laponia. A tal D. Clotilde é a pessoa mais tola que tenho encontrado desde que vim do Porto.

― Eu que tenho vivido sempre na provincia admiro-me de ver uma pessoa tão pé de boi, que farás tu acostumada á fina educação da cidade? dizia D. Antonia.

Em quanto as duas meninas sustentavam esta conversação um pouco mordaz, entabolava-se um dialogo similhante entre D. Eugenia e o filho do barão.

― Está esta noite com muito mau gosto, snr. Eduardo! Dizer que a acha encantadora! essa não lh'a perdôo.

― Pois ainda estou pelo que disse, repetiu o mancebo, e havia de brilhar muito mais se a rara belleza de v. exc.a a não offuscasse bastante.

― Bonito; de mais a mais lisongeiro.

― Isto não é lisonja, minha senhora, é a pura verdade; e pode-me acreditar porque tenho voto na materia.

― Avaliando tudo pelo gosto que ha um instante manifestou, eu não lhe dava o meu voto se se quizesse arvorar em apreciador de formosuras.

― V. exc.a, não gosta da sobrinha do snr. Cunha?

― Quasi tanto como do tio.

A musica tocava uma polka.

― V. exc.a faz-me o favor de dançar comigo esta polka?

― Já tenho pár, snr. Eduardo, respondeu Eugenia.

― Quem é o feliz mortal?

― É o seu amigo Paulino.

― Como é uma infelicidade que agora não posso remediar, resigno-me, mas não dançarei.

― Oh! senhor eu agradeço muito essa fineza, mas peço-lhe que vá dançar.

― V. exc.a não pede, manda, e visto que manda obedecerei. Paulino veio dar o braço ao seu par, e conduziu-o para o meio do salão. Eduardo foi convidar Clotilde.

A menina acceitou,mas dançou pouco tempo; o filho do barão assentou-se ao pé d'ella.

Eugenia continuava a dançar; sua figura esbelta sobresahia garbozamente nos elegantes passos da polka.

Clotilde olhava, não com inveja, por que um sentimento muito baixo para o seu elevado espirito, mas sim com admiração para a filha do visconde: e sentia no coração um aperto que já mais havia experimentado.

Pobre menina! era o relador ciume que acabava de entrar no seu coração!! Sim, era o ciume, esse martyrio que forma sempre a vanguarda do amor.

Subio de ponto o seu supplicio quando Eduardo lhe disse:

― Eu tenho admirado o tempo que Paulino tem dançado!

Quem o vio á tres mezes luctando com a morte se se lembraria que lhe havia de escapar de suas sanguinoletas garras!

― Elle esteve muito em perigo de perder a vida, disse a menina.

― O seu padecer era mais moral do que phyico, acrescentou o mancebo, foram desgostos por cauza da infedilidade d'uma nimfa aquem elle adorava... Todas as senhoras dos nossos sitios o deviam desprezar, para o castigarem por aquelle acto de loucura imperdoavel! Esquecer-se das divindades suas vizinhas para se ir apaixonar tão longe de quem logo lhe foi infiel. Mas é tão feliz que o castigo que lhe applicam é darem-lhe a proferencia sobre todos; e parece-me que D. Eugenia o fará esquecer de todo da sua bella infiel.

Todas as palavras do mancebo eram punhaladas que varavam o coração de Clotilde! os beiços descorados tremiam n'uma convulsão nervoza, o peito anciado arfava-lhe que fazia estalar as roupas! um deslumbramento repentino segou-lhe a vista; quiz dizer alguma coiza, mas as palavras soffocadas não se articulavam. Fez um esforço para se levantar, e os joelhos descairam!!

Tudo isto passou com a rapidez do relampago; uma centelha de indignação brilhou no palido rosto de Clotilde. Envergonhou-se de si propria, de amar um homem que lhe não correspondia. Lembrou-se então que Eduardo podia reparar no seu desasocego, e ajuizar mal d'elle. Com voz, que ella fez por tornar socegada perguntou-lhe: