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A Esperança Vol. I/Bonecos e bonecas

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Bonecos e bonecas
 

 

N'este seculo tão frivolo, não me parecem outra cousa as mulheres, e os homens de tão frivolo e superficial merecimento, que fazem consistir a sua felicidade, e occupação n'um vão ornato, e não conhecem outro estudo, que não seja o de sedas, fitas, perfumes e penteados, persuadidos de que não foram creados, se não para parecerem bonecas aos olhos do publico. Búrnem o rosto, encrespam os cabellos, amaciam as mãos, cobrem os corpos d'avelludados, e dourados ornatos, e a alma fica sem cultura nem ornatos.

Que muito se já não julga de pessoa senão pela maneira de vestir, e pentear.

Um homem não usa apresentar-se em publico, quando não tem um penteado, ou um vestido á moda, e apresenta-se descaradamente, ainda que muitas vezes não tenha prudencia, nem juizo. A mocidade d'hoje faz estudo no vestir, e não conhece outra arte, que não seja a d'agradar.

E que arte? Descorrer como um estouvado, resolver com arrogancia, espalhar impiedades desfazer-se em perfumes, e dizer futilidades sem conto, mover-se como uso dançarino burlesco, e olhar para a sua sombra, usar do seu óculo, saudar com cadencia: eis aqui o que dá direito para trazer a cabeça levantada, despresar os seus irmãos, insultar a philosophia christão, e blasfemar contra a mesma religião.

Que ridiculos bonecos! E as bonecas? Ellas, occupadas todas em gestos, denguices, melindres, n'um fallar á tôa, e sem termos, deixam todo motivo para duvidar se pertendem outra vida, que não seja esta, e se conhecem em si mesmas outro ser além d'esta frioleira, que se enfeita, que muito falla, e que procura seduzir, desprezando o verdadeiro ornato, a virtude, onde se deviam envolver como em um vestido. Mas assim como certos vestidos já não são da moda, tambem a virtude cessa d'estar em uso.

Consterna ver uma mulher assim, que só póde agradar a quem se apraz da iltusão e só mente consulta os seus proprios olhos, d'outra maneira não veria em similante metamorphose mais que uma degradação do nosso ser, o qual, sendo uma imagem de Deus, só é lindo em quanto é simples, e tira a sua gloria do mesmo total da sua essencia.

Consterna, e até enoja ver esse tropel de homens, que escravos d'uns olhos, d'um dente, ou d'um cabello, tão loucos são, que amam, até passar a furor, similhantes futilidades: aferrados desordenadamente a uma massa de terra coberta sob uma mascara de carne, que todos os dias se altera para perecer, um corpo vil e ridiculo que se a imaginação não supre a isto, e a alma não tira de si mesma as bellesas, que julga haver nos objetos exteriores, não divisamos cousa, que não seja miseravel, e despresivel. Não se vê hoje senão occuparem-se com o seu penteado, umas maquinas que apenas percebem que tem cabeça pela compustura dos cabellos.

Os grandes homens foram sempre contra o fausto, e ninguem viu, se não aos engenhos acanhados maravilhar-se á vista d'uma seda, ou de um enfeite. O luxo, transtorna todas as idéias; e o merito, que deveria ter a preaminenci parece uma sombra negra no meio do mundo. Deixam de parte, e despresa-o, para dar excellencia a um louco que traja de côr de rosa, e diamantes.

O homem sensato não comtempla nos ricos mais que o coração, e a cabeça, e se elles não tem generosidade, nem talentos, põe-se muito a baixo do povo.

Na maior parte dos ricos, tem o luxo produzido a arrogancia, que tem subido nos nossos dias a tal auge, que já elles não conhecem outor merecimento, se não um bello vestido.

Bastsa ter esse signal d'honra para attribuir a si proprio o direito d'abater o homem de talentos, e olhar para a outra gente, como para o lodo que se calca aos pés.

Assentaram os grandes entre si, que o seu fausto, e as suas etiquetas os introdusiriam por toda a parte, que lhe mereceriam todas as attenções, e os fariam superiores aos mesmos doutos. Por quanto, quantos senhores não ha no mundo, que se achariam nas ante-camaras, ao mesmo tempo que o philosopho entraria por preferencia. Realmente, toda a pessoa, que faz o seu estudo d'um penteado á môda, d'um vestido de gosto, e d'uma equipagem elegante, não passa d'um ser meio racional, e incapaz de cousa solida.

Que se pode esperar d'um sugeito, que não estima em si mesmo mais que um exterior tão subtil, como um vestido, e que temeria encarar n'um sabio por andar a pé?

Com effeito que metamorphose não haveria no mundo, da parte de nossos pais, e da nossa, se os homens dos seculos passados voltassem por algum tempo ás cidades, e casas! veriam personagens de grandes barbas, cabellos compridos, e elles veriam os seus netos com penteados de toda a sorte: veriamos personagens com vestidos de grosseiro panno, sem ouro, nem prata, e elles veriam os seus netos com vestidos matisados de todas as côres, e bordados por todas as costuras: veriamos personagens em busca das suas casas antigas sem tapeçarias, sem espelhos, e não se conhecerem já no meio d'um mundo que não poderiam difinir.

Um bom lavrador, e acustumado a comer um pedaço de pão de relão veria o seu neto ministro girar em uma linda carruagem e dar banquetes os mais sumptuosos. Outro trabalhador, e acostumado a pegar em grandes pesos, veria o seu bisneto tiranisar o genero humano, fazer que o domine excellencia, ou senhoria, e desprezando tudo que não tem titulo de grande.

Acham o luxo tal meio d'apropriar-se dos louvores, e honras, que já ninguem a ousa fallar hoje, se não a pessoas vestidas de velludo, ou agaloados. Até tem vergonha de saudar um homem mediocremente vestido, e não se atreveriam a confessal-o por amigo.

Venham dizer-nos á vista d'isto, que o luxo constitue a gloria dos estados. É a sua ruiina, quem os transtorna. E se este miseravel luxo se tivesse viciado algumas condições, menos mal: mas como mal epidemico, tem lavrado por todas as classes de pessoas, e até nos mesmos templos, se tem introduzido certo luxo, que faz muitas vezes, d'uma igreja uma especie de theatro, ainda que S. Bernardo ordene que não haja, se não calices de ouro, e prata, e que tudo o mais seja da maior simplicidade.

O fausto enerva os talentos, corrompe os costumes, irrita os pequenos, e ensuberbece os grandes, deixa os sabios na obscuridade e só enriquece inuteis artistas.

O bem publico é sempre o pretexto, de que se servem para introduzir usos extravagantes, ainda que muitas vezes seja manifesto padecer o maior numero, e gemer por cauza d'elles. Tomára eu saber, por exemplo, se aquelles que inventaram tantas equipagens soberbas, que rodam pomposamente pelas cidades, entenderam ser uteis ao genero humano? Certo que só consultaram a mullesa, e a vaidade dos ricos, pois que n'uma cidade onde haverá talvez seis mil pessoas, que andam de carroagem, cem mil andam a pé. E que resulta d'isto? Vermos uma grande multidão encommodada, humilhada e muitas vezes exposta a perecer, ao mesmo tempo que alguns particulares se embalam insolentemente em um throno portatil, d'onde encaram com o maior despreso n'um homem amavel, que lhes apparece debaixo dos pés. Cada um se põe, ou á esquerda, ou á direita, como se a Divindade houvesse de passar, ainda que muitas vezes o pobre, que roja pelas ruas curvados debaixo do peso, que leva ás costas, é muito mais credor de verdadeiros obsequios, do que o senhor que o atropella.

Praza á Deus que esses grandes se recordassem do que disse um excellente homem — As lagrimas, disse elle, me vem aos olhos, quando considero n'aquella interessante porção da humanidade, ou quando vejo da minha janella todas as obrigações, que lhe devemos: quando os vejo a soar debaixo da pesada carga, e apalpando-me depois, me recordo de que sou da mesma massa que elles.

 

Theresa Augusta da Silva