A Esperança Vol. I/Maria Isabel/I

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I

Tormentos d'uma boa filha

Que desordem havia na casa de Ricardo d'Oliveira!... Os trastes estavam amontoados e as sallas cheias de homens, que entravam e saíam; e de magotes d'outros que altercavam aqui, segredavam além.

No sotão estavam a esposa e filha de Ricardo d'Oliveira: a primeira em angustiosa desesperação; esta demasiado afflicta e magoada, mas sem a dôr cruel e pungente da mãe, que se tornava em delirio muita vez.

O pae e esposo d'estas infelizes tinha desapparecido, deixando atraz de si uma quebra fraudolenta e desastrosa.

A filha de Ricardo d'Oliveira era uma menina de dezesete annos incompletos. Tinha pequena e delicada estatura, rosto sympathico e meigo, olhos e cabellos formosissimos. O seu ar de bondade e doçura occultava um caracter forte e uma alma magnanima. Tinha, emfim, tanta docilidade de genio, como nobresa de idéas. Julgue-se pois do que soffria a sua alma ao saber os maus procedimentos de seu pae; e quanto padecia seu bondoso coração testemunhando a dôr e desesperação de sua mãe.

― Minha querida mãe, disse ella soffocando o choro, e ajoelhando-lhe aos pés, vendo-a estorcer-se sobre um velho canapé, minha boa mãe, socegue... Ganhe coragem. Aceitemos a desgraça com resignação. Não ha tantos desgraçados no mundo?.. Deus não quer que nos revoltemos contra os seus decretos. Tenhamos paciencia nas afflições, e seremos menos desditosas.

― Resignação!.. Paciencia!.. exclamou a mãe torcendo os braços. Não sabes o que dizes, Maria Isabel!.. Pedes impossiveis!.. Póde-se ter resignação e paciencia na desventura, mas na vergonha!.. na deshonra!.. e quando a consciencia nos diz que temos alguma parte na causa que nos mergulha n'ess abysmo!.. Tu, minha filha, poderás encarar o abysmo sem horror: não foste tu que o profundaste; mas eu!.. eu?!.. Eu, esposa louca, mãe imprevidente, dona de casa perdularia?!..

― Minha mãe, socegue!

― Socegarei na campa. Só lá!.. Tu pódes chorar serena, Maria Isabel, e poderás consolar-te: eu nunca!.. Não me interrompas... não pretendas deter a expansão da minha angustia e da minha cólera contra os auctores de teus desgraçados dias. Deixa-me desabafar! Perdôa, filha, perdôa a tua mãe; ou não!.. amaldiçôa-me e foge de mim! Tu tens uma alma simples, um coração humilde, gostos singelos... Não sais a teus malfadados paes!... Não te pareces comigo. Eu fui altiva e orgulhosa da minha opulencia, da minha formosura e do fausto que me cercava. Casei com muita alegria; não por amar teu pae, mal o conhecia, mas porque elle passava por muito rico, e porque mostrava um gosto decidido pelas grandezas. A sua união comigo fez-lhe desenvolver mais e mais o seu amor pelo luxo.

― Minha querida mãe....

― Ambos cavavamos o abysmo da miseria e ignominia em que hoje nos achamos.

― Mas, minha rica mãe....

― O remorso não me deixará nunca ter socego!.. Concorri para a nossa desgraça!.. para a tua, infeliz!.. para a tua, que gemes a meus pés como se fosses tu a criminosa.

― Attenda-me, minha mãe. Não foi culpada... Ignorava o estado da nossa casa. Disse ha pouco que meu pae não lhe communicava nada sobre o mau estado dos seus negocios....

― E' verdade!... Foi essa uma falta que me cegava... que me deixava continuar a ser perdularia. Mas misera de mim! devia saber que o desperdicio é sempre um mal: que o luxo excessivo póde abalar a casa mais solida. E mesmo quando a riqueza chegue para tudo, não será um crime gastar em futilidades o que podia sustentar muitas familias?.. Ah!.. e de que serviu esse enorme gasto que fiz para brilhar mais que as outras? Não serve de mofa tudo isso aos que primeiro deslumbrei? Que vaidade tão doida!

― Minha mãe, como não sabia que estavamos mal... como se suppunha ainda rica, tem desculpa...

― Não!.. não tenho desculpa! Teu pai fez comtudo muito mal em me occultar a verdade. Se eu a soubesse... Mas o desgraçado sorria quando me via fazer despesas enormes... E quanto não havia de soffrer interiormente! O miseravel assentou de conservar, emquanto podia, a mascara, e quando a viu prestes a cair-lhe, fugiu... Foi fraco depois de ter sido imprudente e louco... Dizem que foi peor que tudo isso... que foi ladrão!.. Que vergonha!.. Que vergonha!..

E a infeliz cobriu o rosto com as mãos. Pouco depois continuou com o rosto ainda coberto:

― Todos o hão-de injuriar... Eu sou a unica que devo perdoar-lhe... Fui a companheira de suas primeiras faltas... Concorri para a sua perda... Tu é que não pódes perdoar a teus paes... Legam-te a miseria... a deshonra... a ignominia... a vergonha!...

A donzella, bem que muito afflita, estava mais animada. A desesperação de sua mãe tinha-se moderado. Fallava ainda com vehemencia e angustia, mas já não delirava. Culpava-se a si, mas pensava em perdoar a seu marido, contra quem primeiro só proferia imprecações.

― Minha mãe, disse Maria Isabel pegando-lhe quasi á força, n'uma das mãos, e apertando-a entre as suas com ternura, ambas devemos perdoar a meu pae. Foi culpado, é verdade, porém não são os culpados tão dignos de lastima, ainda quando nos são estranhos e indifferentes? Então como não ha-de merecer toda a nossa compaixão e indulgencia aquelle que nos pertence de tão perto, e que nos quiz fazer felizes, embora se enganasse no caminho que leva á felicidade?.. aquelle que temos obrigação de amar e respeitar?

― Minha filha, tu és um anjo! disse Maria Carlota, a desgraçada esposa de Ricardo d'Oliveira; e segurou com as mãos ambas a cabeça da menina ainda ajoelhada a seus pés; beijou-lhe a testa e derramou um diluvio de lagrimas. A excellente filha sentiu-se tão aliviada com estas lagrimas como a propria mãe.

― Está salva, meu Deus!.. está salva! pensava ella beijando as mãos maternas. Eu vos rendo infinitas graças!

E era quasi feliz na triste situação em que tinha sido lançada pela imprevidente loucura de seus paes. Como somos formados! Na felicidade a mais ligeira contrariedade nos mortifica: no infortunio o mais tenue refrigerio nos consola. O que na prosperidade nos parecia borrasca, na miseria se nos figura bonança.

Maria Isabel consolou por largo tempo sua mãe, e teve por fim a satisfação de vêl-a adormecer, cançada de muito chorar. A donzella desprendeu brandamente o pescoço, que sua mãe tinha rodeiado com um braço, não podendo mais tempo estar sem se mecher na posição incommoda em que estava; e, suavemente, fez reclinar sua mãe n'uma almofada, que para alli trouxera já com o intuito de fazer repousar sua mãe. Cobriu-a com um chale, e foi, pé ante pé, cerrar as portadas das janellas. Depois ajoelhou o resou com fervor pelos auctores de seus dias. Interrompeu a sua oração para correr á porta o mais succintamente possivel. Alguem batia ao de leve.

A filha de Maria Carlota abriu, sahiu para fóra e tornou a fechar a porta, com medo que sua mãe acordasse.

― Pelo amor de Deus, disse ella ao importuno, não faça motim, meu senhor. Minha mãe fatigada de muito gemer e chorar, adormeceu. Os senhores já vira que n'este quarto está só um camapé velho e um leito muito ordinario. Peço-lhe pelas cinco chagas de Christo que nos deixem estar aqui até a noite.... Temos vergonha de sair de dia.

Diante d'ella estava um mancebo de boa figura, e rosto interessante, vistas compassivas e ar respeitoso. Se ella não estivesse tão preocupada repararia que elle estava com o chapeu na mão. Em todo o dia, quando por vezes fôra buscar agua para sua mãe, tinha encontrado homens com o chapeu na cabeça, que apenas o tocavam ao passar por ella, e ás vezes nem isso.

― Eu, minha senhora, respondeu elle com voz internecida, se governasse, até as deixaria ficar na sua casa; mas não sou aqui nada. Condoio-me muito da infelicidade de v.ex.a e da senhora sua mãe, e estou pesaroso por vir augmentar as suas tristezas. Meu pae, que é.... um dos credores, está muito irado, e quer por força fallar com a snr.a D. Maria Carlota. Mandou-me rogar-lhe a mercê de lhe ir fallar.

― Tenha a bondade de me conduzir a seu pae; fallar-lhe-hei eu. Minha mãe tem soffrido tanto.... Pelo amor de sua mãe, se ainda a tem, não lhe interrompa o somno. Diga-me aonde acharei seu pae.

― Elle se agoniará mais.... Tratará v. exc.a com dureza.

― Paciencia; poderei suportar melhor a sua cólera do que minha desventurada mãe.

― Custa-me bem leval-a a meu pae... Perdôe-nos os desgostos que lhe damos: a mim que a conduzo.... a meu pae, que a tratará mal.

― Vamos, vamos antes que minha mãe acorde. Nada receie por mim.... Agradeço-lhe o interesse que se digna mostrar-nos.

Subiram ao segundo andar. Na salla das visitas, com ricas causenses, cortinas d'alto preço, reposteiros d'um custo exorbitante, estavam conversando alguns sugeitos perto d'uma janella. O mancebo disse á donzella, indicando-os:

― Meu pae é aquelle que está fallando, com as costas voltadas para cá.

― Bem podia dizer, sem mentir ― «que está gritando».

Maria Isabel adiantou-se um pouco tremula e receiosa. O seu companheiro eclipsou-se; não queria testemunhar a scena desagradavel que devia ter logar entre uma infeliz menina e os credores do pae, justamente irritados.

Os que estavam voltados para a porta fitaram vistas descontentes na adventicia, e um murmurou:

― Não basta que nos roubassem o nosso dinheiro, ainda vamos ouvir lamurias.

O homem que estava fallando, ou gritando, voltou-se e disse desabridamente:

― A senhora que quer? Que vem aqui fazer?

Os outros iam-se retirando para a salla do lado do quintal e disseram a outros que lá estavam:

― Deixemos Custodio da Cunha haver-se com a filha de Ricardo d'Oliveira. Por mais tratante que o pae seja, a filha faz compaixão; mas não é possivel conceder-lhe nada do que ella ha-de pedir. Custodio da Cunha pretende que a familia sabe onde se occulta o fugitivo e o que tirou de casa; a esposa e filha hão-de sustentar que ficam na miseria. Veremos o que Custodio alcança; conceder de certo não concede.

Na varanda estava o filho de Custodio da Cunha. Olhava para o jardim, que parecia sorrir-se alegre para a bella habitação que o senhoriava, e dizia comsigo:

― Pobre menina!.. Aquellas flores que deviam alegrar seus olhos e embalsamar seu quarto, não lhe deixam senão espinhos!.. Ella mesmo são testemunhas que depõe contra a sua familia. Pobre menina!.. tão bella e tão joven e cair da nuvens no antro da miseria!..