A Esperança Vol. I/O primeiro de junho
Dia primeiro de junho! Que de sensações este dia me recorda!..
Ha oito annos que eu soffria bastante; chorava as lagrimas que a orphandade costuma trazer aos olhos das infelizes. A minha querida mãe tocava já com os pés a beira do sepulchro. As portas da eternidade abriam-se para ella, e as da ventura fechavam-se para seu esposo, e pobres filhos! Elle jazia tambem enfermo; a dôr havia-o arrojado no lucto do soffriemento. Os espinhos da viuvez começavam a cravar-se no seu coração! O véo da orphandade deserolava-se sobre as nossas cabeças! E aquelles espinhos devem lacerar dolorosamente o coração; deve ser horrivel a idéa de que nos vamos separar da ametade da nossa alma!!
O véo da orphandade tambem tem espinhos e vem ensopado em lagrimas!!No dia primeiro de junho tambem já gozei momentos de bastante satisfação.
Ha cinco annos que nas margens d'um rio com numerosa companhia, me diverti bastante!
Ainda me pulsa com força o coração com a lembrança d'aquelles innocentes folguedos.
A nossa sala do baile era um campo rodeado d'alamos e freixos; o tapete que a cobria era de relva matizado de boninas.
Todos riam, a alegria era geral!!
Estavamos alli reunidos sessenta pessoas de diversas familias, e as povoações a quem a amisade reunia n'uma só familia! Eramos deseseis meninas que contavamos de quinze a desoito primaveras.
Como todas brincavamos! como nos parecia tudo semeado de flôres! E com tudo quantas d'essas se teem destilado em lagrimas de fel!..
Uma d'essas minhas companheiras já não existe: os castos lyrios da sua puresa estão entrelaçados com o sepulchral cypreste!
E nós, n'aquelle dia, suppunhamos bem distantes as lagrimas, e a morte!
Dançavamos tanto, tanto! Era quasi um delirio, em que tomavavam parte moços, e velhos!
Parecia que a ventura morava alli aninanhada na verde folhagem das arvores, embalada pelo cadente murmurio das aguas. Chegava-se mesmo a acreditar que anjos inviziveis defendiam aquelle logar dos cuidados, e desgostos!!..
Desceu a noite; separamo-nos: findaram as illusões, isto é, findou o nosso prazer; porque o praser n'este mundo é uma illusão, um sonho do qual a mão da realidade nos desperta...
Decorreu um anno: choraram-se algumas lagrimas, alguns contentamentos nos sorriram; e a aurora do dia 1.o de junho seguinte veio encontrar-nos outra vez quasi todas reunidas.
Era a amisade ainda que nos unia; um anno só tinha passado, e com tudo a nosa alegria já não era tão completa como o tinha sido ha um anno!
Havia alli em todas as frontes uma sombra de pezar, e com tudo eu ainda hoje ignoro o motivo!
Estou mesmo certa que se o perguntassem a cada um de nós, ninguem saberia responder!
O que é facto é que elle existia...
Era talvez porque tinha passado um anno; porque um passo mais se tinha dado para o sepulchro?
Não sei. São mysterios que a vida encerra!....
Mais quatro annos se sumiram no abysmo do passado. Contentamentos e pesares lá foram arrastados pela vertiginosa carreira do tempo; mas as recordações ficaram, e existem todas no meu coração!
E' hoje o primeiro de junho!
Sinto a saudade cravar-me no coraçãom os seus espinhos,
Vou evocar as recordações do passado, quero viver com ellas este dia!
Vinde, vinde doirados e queridos phantasmas, vinde povoar este mundo d'illusões em que hoje quero viver!...
Eil-os que começam a caminhar do passado para o presente!! Mas são poucos, bem poucos aquelles que sorriem, quasi todos veem tristes, lacrimisos, vestidos de lucto!!
Vinde recordações queridas, não vos regeito por me não trazerdes alegrias e sorrisos; quero-vos talvez mais assim. Vinde, choraremos juntos.
Na região das illusões tambem ha lagrimas!!
Realidade é o que dizia mr. de Chateaubriand: ― dois licores se vascolijam no calix da vida, doce um, amargo outro; mas além da amargura do segundo, acrescem as fezes que ambos os licores depositam no fundo do vazo.
Isto sim que é realidade; quem se quizer convencer do contrario illude-se a si proprio!
Hoje, e sempre, sereis as minhas companheiras; e depois ireis descançar comigo no gelido sepulcro.