A Falência/VII

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O comércio de café nadava em ouro. Casas pequenas galgavam de assalto posições culminantes; havia por todo o bairro cafezista um perene rumor de dinheiro. E a maré do ouro subia ainda com a magna abundância das enchentes que ameaçam inundação.

O preço do café chegara a uma altura a que antes nunca tinha atingido. Era um delírio de trabalho por todos aqueles armazéns de S. Bento.

No de Francisco Teodoro o movimento era enorme.

Seu Joaquim não parava um minuto, num vaivém incessante, realizando milagres de atividade, observando, colhendo, dirigindo, mandando, rápido no expediente, seguríssimo nas suas previsões e nas suas ordens. Ele sabia de tudo, adivinhava tudo, sem que ninguém o visse arrancar uma confidência ou uma denúncia dos seus amigos ou dos seus subordinados. Era nele que parecia encarnada a alma daquele casario da rua S. Bento, porque era o nome dele que andava de boca em boca, no ar, desde o caminhão, na porta da rua, até o fundo, o pátio dos ensacadores, onde as pás do café, caindo em ritmo, davam ao trabalho um acompanhamento de música.

Seu Joaquim, pequeno, com o seu ar atrevido, podia, de um momento para o outro, fazer cessar todo aquele giro vertiginoso, armar greves, paralisar a vida, fechar a porta ao dinheiro que quisesse entrar.

Era dele todo o prestigio avistados trabalhadores boçais, das formigas do armazém que negrejavam por ali num movimento incessante.

Francisco Teodoro descansava nele, deixava-o agir, "conhecia-lhe o pulso", dizia; não fizera ele o mesmo no princípio da sua carreira? Agora, bem assente na vida, aristocratizava-se, dava-se ares de grande personagem.

Havia uma hora em que o gerente subia ao escritório do patrão para alguns esclarecimentos, e nesses curtos minutos, roubados à atividade de baixo, seu Joaquim achava jeito de expor a situação do dia, dar as notas pedidas e ainda falar do movimento das grandes casas próximas, fazendo de relance, num quadro comparativo, o realce do armazém de Francisco Teodoro.

E, nesses dizeres simples, havia entre os dois homens como que uma chamazinha, brilhando tonta, faisca de ambição assanhada pelos sucessos próprios e alheios.

Ambos amavam a casa, ambos a queriam ver no plano mais alto.

Seu Joaquim, lá consigo, atribuía a prosperidade do negócio ao tino da sua gerência, esperta e positiva. A seu ver, a gente do escritório era inepta e não contribuía em nada para o êxito do negócio.

Julgava-se figura predominante, indispensável, e usava por isso de impertinências, que Teodoro tolerava, em desconto do serviço.

Quando o gerente descia a escada do escritório e voltava para o armazém, Francisco Teodoro reclinava-se na sua cadeira e ficava pensativo. Na sala próxima as penas dos empregados rangiam nos livros e o rumor das folhas que viravam era às vezes o único que se ouvia.

Naquela grande paz da fortuna conquistada, Francisco Teodoro sonhava então com viagens demoradas, longos períodos de abstração.

Vinha-lhe o cansaço.

Todavia, se refletia nisso, recuava, com a certeza de que lhe seriam inaturáveis os dias sem aquela confusão de trabalho, longe daquela atmosfera carregada e das tantíssimas preocupações do seu comércio. A esse desejo indeciso, que com tanta justiça o seu corpo e o seu espírito fatigado reclamavam, mesclava-se agora uma febrinha nascente, que o incitava a novas empresas e que ele combatia com ânimo e juízo.

Oh! se o Mário fosse um homem, se tivesse jeito e coragem para aquela vida... com que satisfação ele o sentaria no seu lugar e lhe mostraria o caminho já feito, fácil de percorrer!

Fora bem castigado o seu desejo de ter um filho, não pelo filho, mas pelo orgulho da continuação daquela casa, que levaria o seu nome a outras gerações. Viera o filho e voltava as costas à fortuna.

A casa passaria a mãos estranhas, ou teria de morrer com ele...

Era o que lhe custava, deixar a melhor obra da sua vida, em que tinha concentrado tamanhos sacrifícios, sonhada nos seus tempos de tropeções pelas ruas, e executada depois aos bocadinhos, no esforço de uma vontade enérgica, a gente que a pagasse, como uma coisa qualquer, e lhe mudasse o nome. -

Como era bem-soante aquele - Casa Teodoro um ritmo de ouro!

Naquela rua, de casas ricas, ela seria a mais rica, se o Gama Torres não se tivesse posto adiante, ajudado pela mão do diabo, que a de Deus só auxilia os homens de longos trabalhos e belos exemplos.

O que dera fortuna ao Torres? O jogo. Sabia-se agora, por toda a cidade, que ele jogava na Bolsa como um doido. O resultado aí estava - magnífico; mas não poderia ter sido péssimo?

Certamente, concluía ele consigo, - não é a isso que se chama ser bom negociante; obra do acaso, nem mais nem menos...

Chegara a hora do café. O primeiro a entrar nesse dia foi o Lemos. As carnes pesavam-lhe; sentou-se logo.

— Então como vai isso, Seu Teodoro, ham?

— Bem... Muito trabalho.

— É o que se quer. Eu também não paro. Mas quer saber quem vai mesmo de vento em popa? O Inocêncio. O ladrão tem mão certeira; não erra o tiro! Vi-o hoje fazer grandes transações com a maior fleugma. O dinheiro não lhe escalda as mãos. Ele vem aí; deixei-o lá embaixo a conversar com um sujeito. É um finório de marca.

— É esperto, é.

Minutos depois o Inocêncio Braga entrou, trêfego e alegre, em companhia do Negreiros, que subira para tratar de um negócio, e, enquanto este se entretinha com Teodoro, o Inocêncio dizia, voltando-se para o Lemos:

— Hoje é para mim um dos dias mais felizes da minha vida! Imagine que recebi carta do meu procurador, dizendo já ser minha uma quinta lá da minha aldeia, e que eu ambicionava desde rapazinho...

— Terras de trigo?

— Não é por isso. A propriedade só dará despezas. Comprei-a por vingança. O dono era um fidalgo desses velhos, de raros exemplares. Por uma questão estúpida maltratou meu pai. Eu era pequeno, mas não me esqueci da ofensa. Os dias passaram; o fidalgo arruinou-se, e o filho do meu velho ganhou o bastante para fazê-lo assinar, ainda que de cruz, as escrituras que lhe dão direito à, posse da sua quinta. Meu pai já se instalou no palácio; o diacho é que, pelos modos, ele não se acostuma à ociosidade e vai para o campo mondar o linho com os empregados... não faz mal, é o dono.

— Realmente, foi um ato de amor filial, muito digno... murmurou o Lemos, assoando-se com estrondo.

Isidoro entrou com o café e a conversa generalizou-se. -

— Então, senhor Teodoro, é verdade que o Joaquim é seu interessado?

— É...

— Inda bem. Você não parecia português, homem; você parecia inglês!

— Por que?

— Por não querer sócios. Um casão destes pode enriquecer muita gente. Olhe que é um erro isto de querer tudo para si.

Sim, pensou Francisco Teodoro, a vida é curta, e uma fonte cavada com tanto esforço é justo que dê água com abundância para muitas sedes...

Já o Isidoro recolhia as xícaras quando entrou o João Ramos, a bufar de calor. Pediu notícias da saúde de todos e mesmo antes de ouvir as respostas vasou quanto sabia acerca dos negócios. Vinha da casa do Lessa, que auferira lucros extraordinários de uma especulação de café. Ele também se metera em grandes empresas; sacou papelada que lhe enchia os bolsos e representava muitos contos de, réis.

Inocêncio Braga citava nomes de pobretões tornados em milionários, com a alta, quando João Ramos o interrompeu, consultando os amigos se deveria aceitar a presidência de um banco. Ele hesitava...

Inocêncio aconselhou-o a que acedesse. O cargo era de prestígio. Depois, o tempo efervescente do jogo tinha passado. As transações agora faziam-se com mais segurança. Também ele tinha em formação um grande projeto...

Teodoro sufocava; não ouvia falar noutra coisa. O seu vizinho da esquerda e o seu vizinho da direita passavam quantidades fabulosas de libras para a Europa, ganhas no azar do momento. E ele?

As suas reflexões tomaram um curso tristonho. Trabalhara tanto, para afinal alcançar o que os outros adquiriam com um gesto!

A pouco e pouco os seus amigos mais circunspectos iam-se atirando à voragem da Bolsa. Afortunados, como se mão invisível os guiasse, ganhavam quase sempre. Só ele resistira, firme nos seus princípios de moral e de economia. Mas o contágio da febre manifestava-se já nos primeiros arrepios da tentação.

Francisco Teodoro refletia...

Quando os amigos saíram, ele caminhou maquinalmente para a janela.,

Olhou: embaixo a pretinha velha varria pressurosa a calçada, ajuntando o café da rua. Carregadores saíam-lhe da porta, vergados ao peso das sacas. Os carroções passavam cheíssimos, com estardalhaço, chocalhando ferragens, e um rumor compacto de vozes levantava-se no ar espesso, engrossado de pó.

Era o trabalho, que passava, ardente e esbaforido.

Daquele esforço surgiria a redenção do povo. E com suor e lágrimas que se fertilizam os melhores campos.

Da enxada, que fatiga o braço e rasga o seio do barro, é que deriva o bem da humanidade, a água que mata a sede e a árvore que dá sombra e se desmancha em flores.

Abençoados os que não fraquejam e podem no fim da existência erguer bem alto a cabeça sem respingos de vício. Esses não terão patinhado na enxurrada enganadora, esses dirão aos filhos:

— Olhem para a minha vida e façam como eu fiz.

Era 6 que pensava Francisco Teodoro, querendo agarrar-se à sua fé antiga, que temia caísse agora, abalada pela ventania daqueles dias de loucura.