A Filha do Patrão
A Artur de Mendonça
O comendador Ferreira esteve quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo pela escada abaixo com um pontapé bem aplicado. Pois não! Um biltre, um farroupilha, um pobre diabo sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era o que faltava! Que ele estivesse durante anos a juntar dinheiro para encher os bolsos de um valdevinos daquela espécie, dando-lhe a filha ainda por cima, a filha, que era a moça mais bonita e mais bem educada de toda a rua de S. Clemente! Boas!
O Comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um "Não, meu caro Senhor" capaz de desanimar o namorado mais decidido ao emprego de todas as astúcias do coração.
O pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxão de orelhas e o pontapé, que felizmente não passaram de tímido projeto.
Na rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões: — Pois há de ser minha filha, custe o que custar! — Voltou-se, e viu numa janela Adosinda, a filha do comendador, que desesperadamente lha fazia com a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do polegar, o que muito claramente queria dizer: — Babau! — e, como eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Clube. Era domingo e havia corridas.
O Comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela não apanhou o puxão de orelhas destinado ao moço, seria faltar à verdade que devo aos pacientes leitores, apanhou-a, coitadinha! E naturalmente, a julgar pelo grito estrídulo que deu, exagerou a dor física produzida por aquela grosseira manifestação de cólera paterna.
Seguiu-se um diálogo terrível:
— Quem é aquele pilantra?
— Chama-se Borges.
— De onde o conhece você?
— Do Clube Guanabarense... Daquela noite em que papai me levou...
— Ele em que se emprega? Que faz ele?...
— Faz versos.
— E você não tem vergonha de gostar de um homem que faz versos?
— Não tenho culpa; culpado é o meu coração.
— Esse vagabundo algum dia lhe escreveu?
— Escreveu-me uma carta.
— Quem lha trouxe?
— Ninguém. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela.
— Que lhe diria ele nessa carta?
— Nada que me ofendesse; queria a minha autorização para pedir-me em casamento.
— Onde está ela?
— Ela quem?
— A carta!
Adosinda, sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O comendador abriu-a, leu-a e guardou-a no bolso. Depois continuou:
— Você respondeu a isso?
A moça gaguejou.
— Não minta!
— Respondi, sim, senhor.
— Em que termos?
— Respondi que sim, que me pedisse.
— Pois olhe: proíbo-lhe, percebe? Pro-í-bo-lhe que de hoje em diante dê trela a esse peralvilho! Se me constar que ele anda a rodar-me a casa, ou que se corresponde com você, mando desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do Comendador Ferreira) e a você, minha sirigaita... a você... Não lhe diga nada!
Três dias depois desse diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia de seu Borges, e o rapto foi auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um dinheiro ganho nas corridas do Derby. Até hoje ignora o comendador que o seu fiel cozinheiro contribuísse para tão lastimoso incidente.
O pai ficou possesso, mas não fez escândalo, não foi à polícia, não disse nada nem mesmo aos amigos íntimos; não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer o seu profundo desgosto.
E teve razão, porque, passados quarto dias, Adosinda e o Borges vinham, à noite, ajoelhar-se aos seus pés e pedir-lhe a benção, como nos dramalhões e novelas sentimentais.
Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o Comendador Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de tempo; mas infelizmente as coisas não se passarem assim, e a moral, como vão ver, foi sacrificada ao egoísmo.
Com a resolução de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando:
— Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça saltar os miolos!...
A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor à pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis.
O pai foi fechar a porta, guardou o revolver e, aproximando de Adosinda que encostada ao piano, tremia como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um carinho que nunca manifestava em ocasiões menos inoportunas.
A moça estava assombrada; esperava, pelo menos, a maldição paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe e habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço afetuosos encheram-na de confusão e de pasmo.
O comendador foi o primeiro a falar:
— Vês? — disse ele, apontando para a porta. — Vês? O homem por quem abandonaste teu pai é um covarde, um miserável, que foge diante do cano de um revólver! Não é um homem!...
— Isso é ele — murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto.
O pai sentou-se no sofá, chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos seus joelhos e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que se esquecesse do homem que a raptara, um troca-tintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada mais, pintou-lhe um futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai que a desprezaria se semelhante casamento se realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhoso dos pais.
No fim dessa catequese, a moça parecia convencida de que nos braços do Borges não encontraria realmente toda a felicidade possível, mas...
— Mas agora... é tarde — balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas de ainda há pouco.
— Não; não é tarde — disse o comendador. — Conheces o Manuel, o meu primeiro caixeiro do armazém?
— Conheço: é um enjoado.
— Qual enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um homem de conta, peso e medida! Não descobriu a pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio, uma perspicácia que o levará longe, hás de ver!
E durante um quarto de hora o Comendador Ferreira gabou s excelências do seu caixeiro Manuel.
Adosinda ficou convencida.
A conferência terminou por estas palavras:
— Falo-lhe?
— Fale, papai.
No dia seguinte o comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:
— Seu Manuel, estou muito contente com os seus serviços.
— Oh! Patrão!
— Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.
— Oh! Patrão!
— Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento além do ordenado.
— Oh! Patrão! Isso não faz um pai ao filho!...
— Ainda não é tudo. Quero que você se case com minha filha. Doto-a em cinqüenta contos.
O pobre diabo sentiu-se engasgado pela comoção: não pôde articular uma palavra.
— Mas eu sou um homem sério — continuou o patrão; — a minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha... não é virgem.
O noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras, ajustou os lábios em bico, e respondeu com um sorriso resignado e humilde:
— Oh! Patrão! Ainda mesmo que fosse, não fazia mal!