A Igreja Presbiteriana

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A sede da Igreja Presbiteriana fica na rua Silva Jardim, n.0 15.

É um dos mais lindos templos evangélicos do Rio. A sala pode conter oitocentas pessoas. Tudo reluz, as paredes banhadas de sol, as portas envernizadas, as fechaduras niqueladas, o púlpito severo. Pelas aléias do jardim, brunidas, anda-se sob o desfolhar das rosas e da montanha a pique que lhe fica aos fundos, desce um intenso perfume de mata. A primeira vez que eu lá estive, a sala estava apinhada, não havia um lugar; e, por trás de sobrecasacas, severas, de fatos sombrios, na luz crua dos focos, eu via apenas o gesto de um homem de larga fronte, descrevendo a delícia da moral impecável. Perguntei a um cavalheiro que o ouvia embevecido, quase nas escadas.

- Quem é?

O cavalheiro passou o lenço pela testa alagada.

- Admira não o conhecer: é o Dr. Álvaro Reis.

Álvaro Reis é o pastor atual da Igreja Presbiteriana do Rio, essa igreja produto de uma propaganda tenaz e de um longo esforço de quase meio século. Não há de certo na história dos nossos cultos exemplo tão frisante de quanto vale o querer como essa vasta igreja. Fundada em 1861 pelos Revs. Green Simonton, Alexandre Blackford e Francisco Shneider, três missionários mandados pelo board da igreja Presbiteriana dos Estados Unidos para a evangelização do Brasil, quarenta e tantos anos depois tornou-se realidade; e a semente guardada no celeiro do Senhor, sob o seu divino olhar, brotou e floriu em árvore estrondosa. Quanto custou isso! Simonton ensinava grátis o inglês para, aprendendo o português, inocular nos discípulos os sãos princípios da Bíblia; cada sermão era um acontecimento, marcava-se com carinho o dia em que professava um novo simpático. Os puritanos pregavam em salas estreitas e sem conforto. Algumas vezes, um padre católico surgia intolerante, protestava; os pastores interrompiam-se e as duas igrejas combatiam, a ver quem pela palavra melhor parecia estar com Deus.

Como a seita Positivista, a propaganda começou numa sala da rua Nova do Ouvidor, com dezesseis ouvintes. Passou depois à rua do Cano, desceu à rua do Regente, à praça da Aclamação, à rua de Santa Ana, comprou com sacrifícios e recursos americanos o barracão da fábrica de velas de cera da travessa da Barreira, e ali orou, pediu a Deus e continuou a propagar. Os meios eram os usuais de toda a fé que quer predominar. Os evangélicos faziam versos, faziam o bem e eram tenazes. Foi uma evolução segura e lenta.

A Igreja teve mártires. O sábio padre romano Manuel da Conceição abjurou e ordenou-se presbítero.

Era uma alma antiga. Ordenou-se e logo começou a evangelizar a pé pelas estradas. Não levava uma moeda na bolsa, e de porta em porta, com a Bíblia na mão, revelava aos homens a verdade. Atravessou Minas assim, tropeçando pelos caminhos ardentes, quase sem comer, e, onde parava, o seu lábio abria falando do prazer de ser puro. Em Campanha correram-no à pedra. Conceição, com a Bíblia de encontro ao peito, tropeçando, fugia sob a saraivada, e a turba só o deixou fora da cidade, quando o viu em sangue cambalear e cair. Ao chegar a Sorocaba, o mártir estava andrajoso, quase a morrer, e, morto, os seus ossos foram exumados, por ordem do bispo D. Lacerda, para serem atirados fora do cemitério, ao vento.

Os pastores trabalhavam tanto que Simonton morrera, aos trinta e quatro anos, de cansaço. Eram os primeiros tempos! A adesão religiosa vem da tenacidade. A tenacidade dessas criaturas de aço que atraiu os fiéis, desde os analfabetos aos homens ilustres; a igreja recebeu no seu seio médicos, engenheiros, literatos, arquitetos, professoras públicas, homens rudes, lentes de escolas superiores e cada um que daqui saía, levava para as igrejas dos Estados com a carta demissória um elemento de propaganda. Por último, os pastores foram brasileiros, a derradeira etapa estava ganha, a igreja, ponto inicial da evangelização brasileira, foi construída luxuosamente, e o Rev. Trajano, com verdade e poesia, o afirmou: - depois de peregrinar por seis tetos estrangeiros, só no sétimo a nossa igreja descansou.

Foi nesse descanso que eu dias depois voltei a conversar com o Dr. Álvaro Reis. A casa do pastor fica ao lado esquerdo do templo, oculta nos roseirais. O protestantismo trouxe para os nossos costumes latino-americanos não sei se a pureza da alma, de que o mundo sempre desconfia, mas o asseio inglês, o regime inglês, a satisfação de bem cumprir os deveres religiosos e de viver com conforto.

Logo que vieram abrir a porta, eu tive essa impressão.

- O Pastor?

O pastor não estava, mas isso não impedia que um homem de Deus entrasse a refrescar das agruras do sol. O Dr. Álvaro Reis é paulista: na sua residência encontrei alguns amigos seus, paulistas, que me receberam entre as cortinas e os tapetes, com uma franqueza encantadora. Quando me sentei na doce paz de uma poltrona, como um velho camarada irmão em Cristo, estava convencido de que ia beber café e conversar largamente. Não há como os evangelistas e os evangelistas brasileiros, para gentilezas. À bondade ordenada pela escritura reúnem essa especial e íntima carícia do brasileiro, que, quando quer ser bom, é sempre mais que bom.

- A Igreja Presbiteriana - disse-me o substituto do Dr. Álvaro Reis - realiza, como sabe, o trabalho de propaganda nesta cidade, há 42 anos. Atualmente, além do templo, tem congregações prósperas na rua da Passagem, em Botafogo, na rua do Riachuelo e na Ponta do Caju, onde existem salas de culto muito freqüentadas. Foi com elementos nossos que se organizou a igreja de Niterói.

- E nos Estados?

- A Igreja Presbiteriana do Rio ramificou-se por todos os Estados do Brasil. Há presbiterianos no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, em Goiás, no Piauí e até nos confins de Mato Grosso. A propaganda ficou ao cuidado da Igreja Evangélica Episcopal. O número de congregações e de templos que se organizaram depois do nosso, sobe a 300.

- E há vários colégios?

- Vários? Há muitos. A Igreja Presbiteriana conseguiu estabelecer no Brasil os seguintes colégios: o Mackenz e a Escola Americana, em São Paulo; o Colégio de Lavas, em Minas; o de Curitiba, no Paraná; o da Bahia, da Feira de Santa Ana e o da Cachoeira, na Bahia; o das Laranjeiras, em Sergipe; o do Natal, no Rio Grande do Norte; e ainda várias escolas gratuitas.

- É natural que uma tão copiosa propaganda tenha uma forma de governo? - fiz vagamente.

- Tem. A igreja é governada por unia sessão de igreja, presidida pelo pastor e composta de seis oficiais, que têm o título de presbíteros. A sessão da igreja apresenta anualmente atas e relatórios ao presbitério do Rio, concílio superior composto de todos os ministros presbiterianos que trabalham no Rio, no sul de Minas e no Espírito Santo.

No Presbitério, cada sessão se faz representar pelo pastor e um presbítero. Além do Presbitério do Rio há o de São Paulo, o de Minas, o do oeste de São Paulo, o de Pernambuco e o do Sul do Brasil. Esses seis presbitérios, reunidos de três em três anos em uma só assembléia, formam o supremo concílio da igreja, com o nome de Sínodo Presbiteriano Brasileiro. E aí que se discutem os interesses gerais da causa.

- A defesa tem jornais?

- Alguns. Venha ver.

Entramos na biblioteca de Álvaro Reis, uma sala confortável, forrada de altas estantes de canela. Por toda a parte, em ordem, livros, papéis, brochuras, cartas, fotografias.

- Veja. Aqui no Rio temos o Presbiteriano e o Puritano. Há em São Paulo a Revista das Missões Nacionais, em Araquati o Evangelista, o Despertador em Rio Claro, a Vida em Florianópolis e o Século no Natal.

- E com tantos jornais os senhores não vivem em guerra constante?

- Contra quem?

- Contra as outras igrejas, os batistas, os metodistas... Um jornal só basta para fazer a discórdia; dez jornais fazem o conflito universal!

- Não - fez o meu interlocutor a sorrir -, não. Reina completa harmonia. A Igreja Fluminense já existia quando começamos a nossa campanha. As relações conservam-se cordiais. O pastor Santos ministra aqui a palavra de Deus sempre que é convidado. Enquanto o templo esteve em construção, a Igreja Fluminense permitiu-nos o uso da sua vasta sala para o nosso serviço religioso. Com os metodistas e batistas a mesma cordialidade existe. Os pastores de lá falam no nosso púlpito, como nós falamos nos seus.

Depois, com tristeza:

- Talvez entre os de casa não existisse essa harmonia há bem pouco tempo... É simples. Na última reunião do Sínodo Presbiteriano houve, uma cisão que se refletiu francamente na igreja do Rio. Um membro do concílio imaginou que a maçonaria fazia pressão nas deliberações do Sínodo, propondo logo que a igreja banisse do seu seio a heresia maçônica. Não era verdade a pressão. O concílio discutiu largamente e aprovou a seguinte resolução.

- "O Sínodo julga inconveniente legislar sobre o assunto!" A tolerante aprovação deu em resultado separarem-se sete ministros, que formaram uma igreja independente e antimaçônica. À nova igreja ligaram-se ex-membros da nossa.

Ele falava simplesmente. Em torno, faces tranqüilas aprovavam e naquela atmosfera agradável eu não pude deixar de dizer:

- Como o grande público os ignora, como a população, a verdadeira, a massa, os confunde numa complicada reunião de cultos!

Todos sorriam perdoando.

- Sabemos disso. É natural! Oh! os protestantes! Passam pela porta, pensam coisas incríveis... Mas alguns entram e encontram a tranqüilidade. Qual é, afinal, secamente, em poucas palavras, o modo por que a Igreja Presbiteriana difere da Igreja Romana? Não considera o Papa como chefe, nem tolera a sua infalibilidade, não crê na intercessão dos santos, que estão na glória e nenhum poder tem neste mundo, não aceita o celibato clerical, considerando uma inovação funesta...

- Oh! Funestíssima!

- ... de Gregório VII, no século XI; não admite o culto das imagens, uma infração ao 2.º mandamento do Decálogo; crê que Jesus Cristo ressuscitou e está vivo e reina como único chefe da sua igreja; crê no único fundamento, na única regra da Religião Cristã, a Palavra de Deus, a Bíblia, e prega que Deus, onipotente, onisciente e onipresente, é único apto a ouvir as orações dos homens. Só aceita dois sacramentos, o Batismo e a Comunhão, os únicos instituídos por Jesus Cristo; só reconhece o casamento civil, sobre o qual impetra a bênção de Deus; não admite o purgatório...

- O absurdo purgatório!

- Diante das santas escrituras.

- Ah!

- Proíbe as missas em sufrágio das almas, porque Jesus nunca rezou missas, e crê que o homem é salvo de graça pela fé viva, como crê na ressurreição, na regeneração, na vida eterna e no juízo final. Todo o seu culto se resume na leitura das escrituras, em sermões explicativos, em orações a Deus, e no primeiro domingo de cada mês na celebração da Eucaristia...

- Há sociedades na igreja?

- Há o Esforço Cristão e uma de acordo com todas as igrejas, o Hospital Evangélico.

Nessa mesma noite eu ouvi, no templo cheio, Álvaro Reis. A sua larga fronte parecia inspirada e ele, desfazendo sutilmente as frases diamantinas da Bíblia, num polvilho de bem, falava da Caridade, da Caridade que sustenta todos os que crêem em Jesus, - da Caridade suavemente doce que protege e esquece.