Saltar para o conteúdo

A Ilustre Casa de Ramires/VIII

Wikisource, a biblioteca livre

VIII


Ao fim da semana Gonçalo, que desde a visita a Santa Maria de Craquêde arrastava o remorso incommodo da sua preguiça, do tão longo abandono da Novella — recebeu de manhã, ao sahir do banho, uma carta do Castanheiro. Era curta: — e declarava ao amigo Gonçalo que, se em meado de Outubro não chegassem a Lisboa tres Capitulos do original, elle, com pezar seu e da Arte, publicaria no primeiro numero dos Annaes, em vez da Torre de D. Ramires, um drama do Nuno Carreira n’um acto, intitulado Em Casa do Temerario... «Apezar de drama e de phantasia (accrescentava) convem á indole erudita dos Annaespor que este Temerarioé Carlos o Temerario, e a acção toda, fortemente tecida, se passa no Castello de Peronne, onde se encontram nada menos que Luiz XI de França, e o nosso pobre Affonso V, e Pero da Covilhan que o acompanhava, e outros figurões de rija estatura historica. Imagine!... Está claro, o chicsupremo seria Tructezindo Mendes Ramirescontado pelo nosso Gonçalo Mendes Ramires! Mas, pelo que vejo, esse chicsupremo está impedido por uma indolencia suprema. Sunt Lacrymae Revistarum

Gonçalo atirou a carta, gritou pelo Bento:

— Leva para a livraria chá verde, forte, com torradas. Hoje só almoço tarde, ás duas... Talvez nem almoce!

E, enfiando o roupão de trabalho, decidiu amarrar á banca, como um captivo ao remo, até que rematasse esse difficil Capitulo III, onde resaltava o barbaro e sublime rasgo do avô Tructezindo. Não, que diabo! não lhe convinha perder a apparição da Novella em tão proveitoso momento, nas vesperas da sua chegada a Lisboa, quando para a influencia Politica e para o prestigio social necessitava d’esse brilho que, segundo o velho Vigny, «uma penna de aço accrescenta a um elmo dourado de Fidalgo...» Felizmente, n’essa luminosa manhã em que as agoas da horta fartamente cantavam, elle sentia tambem a veia borbulhando, contente em se soltar e correr. Depois da visita á crasta de Craquêde a sua imaginação concebia menos ennevoadamente os seus avós Affonsinos: — e como que os palpava emfim no seu viver e pensar desde que contemplára os grandes tumulos onde se desfaziam as suas grandes ossadas.

Na Livraria retomou com appetite, depois de lhes sacudir a poeira, as tiras da Novella sobre que emperrára, n’aquelle atarantado lance de susto e alarme — quando o Villico, o velho Ordonho, reconhecia o pendão do Bastardo surgindo á borda da Ribeira do Coice entre o coriscar de lanças empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e, um momento sumido na verdura dos alamos, de novo avançando, alto e tendido, até ao rude Cruzeiro de pedra de Gonçalo Ramires o Cortador... O gordo Ordonho então, atirando o brado de — «Prestes, prestes! que é gente de Bayão!» — descambava pelo escalão da muralha como um fardo que rola.

No emtanto Tructezindo Ramires, no empenho d’aprestar a sua mesnada e abalar sobre Montemór, regera já com o Adail a ordem da arrancada, mandando que as buzinas soassem mal o sol batesse na margella do Poço grande. E agora, na sala alta da Alcaçova, conversava com o seu primo de Riba-Cavado e costumado camarada d’armas, D. Garcia Viegas — ambos sentados nos poiaes de pedra d’uma funda janella, onde uma bilha d’agoa com o seu pucaro refrescava entre vasos de manjaricão. D. Garcia Viegas era um velho esgalgado e agil, d’escuro carão rapado, com uns miudos olhos coruscantes — que merecêra a alcunha de Sabedorpela viveza e succulencia do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a prenda de fallar latim mais doutamente que um Clerigo da Curia. Convocado por Tructezindo, como os outros parentes de solar, para engrossar a mesnada dos Ramires em serviço das infantas, corrêra logo a Santa Ireneia fielmente com o seu pequeno poder de dez lanças — começando por saquear no caminho a herdade de Palha-Cã, dos de Severosa, que andavam com pendão alto na Hoste Real contra as Donas opprimidas. Tão rijamente se apressára que, desde a madrugada, apenas comêra sobre a sella, em Palha-Cã, duas rodelas dos chouriços roubados. E com a sêde da afogueada correria, ainda na emoção de tão amarga nova, a derrota de Lourenço Ramires seu afilhado, novamente enchia d’agoa o pucaro de barro — quando pela porta da sala de armas, que tres cabeças de javali dominavam, rompeu o velho Ordonho esbaforido:

— Snr. Tructezindo! Snr. Tructezindo Ramires! o Bastardo de Bayão passou a Ribeira, vem sobre nós com grande troço de lanças!

O velho Rico-Homem saltou do poial. E arremessando a mão cabelluda, cerrada com sanha, como se já pela gorja empolgasse o Bastardo:

— Pelo Sangue de Christo! em boa hora vem que nos poupa caminho! Hein, Garcia Viegas? A cavallo e sobre elle...?

Mas, rente aos tropegos calcanhares de Ordonho, correra um Coudel de Besteiros, que gritou dos humbraes, saccudindo o capello de couro:

— Senhor! Senhor! A gente de Bayão parou ao Cruzeiro! E um cavalleiro moço, com um ramo verde, está deante das barbacans, como trazendo mensagem...

Tructesindo bateu o sapato de ferro sobre as lages, indignado com tal embaixada mandada por tal villão... — Mas Garcia Viegas, que d’um sorvo enxugára o pucaro, recordou serenamente e lealmente os preceitos:

— Tende, tende, primo e amigo! Que, por uso e lei d’aquem e d’além serras, sempre mensageiro com ramo se deve escutar...

— Seja pois! bradou Tructesindo. Ide vós fóra ás barreiras com duas lanças, Ordonho, e sabei do recado!

O Villico rebolou pela denegrida escada de caracol até ao patim da Alcaçova. Dous accostados, de lança ao hombro, recolhendo d’alguma rolda, conversavam com o armeiro, que sarapintára de amarello e escarlate cabos d’ascumas novas e as enfileirava contra o muro para seccarem.

— Por ordem do Senhor! gritou Ordonho. Lança direita, e commigo ás barbacans, a receber mensagem!...

Ladeado pelos dous homens que se aprumaram, atravessou as barreiras; e pelo postigo da barbacan, que uma quadrilha de besteiros guardava, sahiu ao terreiro da Honra, largueza de terra calcada, sem relva ou arvore, onde se erguiam ainda as traves carcomidas d’uma antiga forca, e se amontoavam agora, para os concertos da Alcaçova, ripas de madeira, e grossas cantarias lavradas. Depois, sem arredar do humbral, empinando o ventre entre os dous accostados, bradou ao moço Cavalleiro, que esperava sob o rijo sol, sacudindo os moscardos com o seu ramo d’amoreira:

— Dizei de que gente sois! e a que vindes! e que credencia trazeis!...

E como arqueára logo a mão inquieta sobre a orelha — o Cavalleiro, serenamente, entalando o ramo entre o coxote e o arção, arqueou tambem os dous guantes relusentes d’escamas na abertura do casco, bradou:

— Cavalleiro do solar de Bayão!... Credencia não trago que não trago embaixada... Mas o Snr. D. Lopo ficou além ao Cruzeiro, e deseja que o nobre senhor da Honra, o Snr. Tructezindo Ramires, o escute do eirado da barbacan...

O Villico saudou — recolheu pela poterna abobadada da torre albarran, murmurando para os dous accostados:

— O Bastardo vem a tratar o resgate do Snr. Lourenço Ramires...

Ambos rosnaram:

— Feio feito.

Mas, quando Ordonho offegante se apressava para a Alcaçova, encontrou no pateo Tructezindo Ramires — que, na irada impaciencia d’aquellas delongas do Bastardo, descera, todo armado. Sobre o comprido brial de lã verde-negra, que recobria a vestidura de malha, as suas barbas rebrilhavam, mais brancas, atadas n’um grosso nó como a cauda d’um corcel. Do cinturão tauxeado de prata pendia a um lado o punhal recurvo, a bozina de marfim — ao outro uma espada gôda, de folha larga, com alto punho dourado onde scintillava uma pedra rara trazida outr’ora da Palestina por Gutierres Ramires, o d’Ultramar. Um sergente conduzia sobre uma almofada de couro os seus guantes, o seu capello redondo, de vizeira gradada, como usára El-Rei D. Sancho: outro carregava o immenso broquel, da fórma d’um coração, revestido de couro escarlate, com o Açôr negro rudemente pintado, esgalhando as garras furiosas. E o Alferes, Affonso Gomes, seguia com o guião enrolado na funda de lona.

Com o velho Rico-Homem descêra D. Garcia Viegas, e os outros parentes do Solar — o decrepito Ramiro Ramires, um veterano da tomada de Santarem, torcido pelos rheumatismos como a raiz de um roble, e arrimando os passos tremulos, não a um bastão, mas a um chusso; o formoso Leonel, o mais moço dos Samoras de Cendufe, o que matára os dois ursos nos brejos de Cachamúz e que tão bem trovava; Mendo de Briteiros, o das barbas vermelhas, grande queimador de bruxas, lêdo arranjador de folgares e danças; e o agigantado Senhor dos Paços de Avellim, todo coberto, como um peixe fabuloso, de escamas que reluziam. Como o sol se acercava da margella do Poço grande, marcando a hora da arrancada sobre Monte-mór — já, dos fundos alpendres que escondiam os campos do tavolado, os cavallariços puxavam os ginetes de guerra, com as suas altas sellas pregueadas de prata, as ancas e os peitos resguardados por coberturas de couro franjado que rojavam nas lagens. Por todo o Castello se espalhára que o Bastardo, depois da lide fatal aos Ramires, correra de Canta-Pedra, ameaçava a Honra: — e debruçados dos passadiços que ligavam a muralha aos contrafortes da Alcaçova, ou mettidos por entre os engenhos d’arremesso que atulhavam as corredoiras, os moços da ucharia, os servos das hortas, os villões acolhidos para dentro das barbacans, espreitavam o Senhor de Santa Ireneia e aquelles Cavalleiros fortes, com anciedade, tremendo do assalto dos de Bayão e d’essas horrendas bolas de ferro, cheias de fogo, que agora as mesnadas Christãs arrojavam tão destramente como as hordas Sarracenas. — No emtanto com a sua gorra esmagada contra o peito, Ordonho, arfando, apresentava a Tructesindo o recado do Bastardo:

— É cavalleiro moço, não traz credencia... O Snr. Bastardo espera ao Cruzeiro... E pede que o attendaes da quadrella das barbacans...

— Que se acerque pois! gritou o velho. E com quantos queira dos villões que o seguem!

Mas Garcia Viegas, o Sabedor, sempre avisado, com a sua esperta mansidão:

— Tende, primo e amigo, tende! Não subaes vós á tranqueira antes que eu me assegure se Bayão nos vem com arteirice ou falsura.

E entregando a sua pesada lança de faia a um donzel, enfiou pela escada soturna da Torre albarran. Em cima no eirado, sussurrando um chuta! chuta!á fila de besteiros que guarnecia as ameias, attenta e com a bésta encurvada — penetrou no miradouro, espiou pela setteira. O arauto de Bayão galopára para o Cruzeiro, que uma selva movediça de lanças rodeava coriscando. E curto recado lançou — porque logo, no seu fouveiro acobertado por uma rêde de malha acairellada d’ouro, Lopo de Bayão despegou do denso troço de cavalleiros, com a viseira erguida, sem lança ou ascuma de monte, e ociosas sobre o arção da sella mourisca as mãos onde se enrodilhavam as bridas de couro escarlate. Depois, a um toque arrastado de buzina, avançou para as barbacans da Honra, vagarosamente, como se acompanhasse um sahimento. Não movera o seu pendão amarello e negro. Apenas seis infanções o escoltavam, tambem sem lança ou broquel, com sobrevestes de panno rôxo sobre os saios de malha. Atraz quatro alentados besteiros carregavam aos hombros umas andas, toscamente armadas com troncos de arvores, onde um homem jazia estirado, como morto, coberto, contra o calor e os moscardos, por leves folhagens de acacia. E um monge seguia n’uma mula branca, segurando misturadamente com as rédeas um crucifixo de ferro, sobre que pendia a orla do seu capuz e uma ponta de barba negra.

Da setteira, mesmo sem descortinar por entre a camada de ramagens a face do homem estendido nas andas, o Sabedoradivinhou Lourenço Ramires, o doce afilhado que tanto amára, que tão bem ensinára a terçar lanças e a treinar falcões. E cerrando os punhos, gritando surdamente — «Bem prestos! bésteiros, bem prestos!» — desceu a escura escadaria, tão arremessado pela colera e pela magoa que o seu elmo cavamente bateu contra o arco da porta, onde o esperava Tructesindo com os Cavalleiros parentes.

— Senhor primo! bradou. Vosso filho Lourenço está deante das barreiras da Honra deitado sobre umas andas!

Com um rosnar d’espanto, um atropelo dos sapatos de ferro sobre as lages sonoras, todos seguiram pela poterna da albarran o Rico Homem — até ao escadão de madeira que se empurrava contra a quadrella das barbacans. E, quando o enorme velho surdio no eirado, um silencio pesou, tão ancioso, que se sentia para além do vergel o chiar triste e lento da nora e o latir dos mastins.

No terreiro, em frente á cancella gateada, o Bastardo esperava, immovel sobre o seu ginete, com a formosa face bem levantada, a face de Claro-sol, onde as barbas anelladas, cahindo nas solhas do arnez, rebrilhavam como ouro novo. Vergando o capello d’ouropel, saudou Tructesindo com gravidade e preito. Depois alçou a mão, que descalçára do guante. E n’um considerado e sereno fallar:

— Senhor Tructesindo Ramires, n’estas andas vos trago vosso filho Lourenço, que em lide leal, no valle de Canta-Pedra, colhi prisioneiro e me pertence pelo foro dos Ricos-Homens d’Hespanha. E de Canta-Pedra caminhei com elle para vos pedir que entre nós findem estes homizios e estas feias brigas que malbaratam sangue de bons Christãos... Senhor Tructesindo Ramires, como vós venho de Reis. De D. Affonso de Portugal recebi a pranchada de Cavalleiro. Toda a nobre raça de Bayão se honra em mim... Consenti em me dar a mão de vossa filha D. Violante, que eu quero e que me quer, e mandae erguer a levadiça para que Lourenço ferido entre no seu solar e eu vos beije a mão de pae.

Das andas, que estremeceram sobre os hombros dos besteiros, um desesperado brado partio:

— Não, meu pae!

E hirto na borda do eirado, sem descrusar os braços, o velho Tructesindo retomou o brado — que por todo o terreiro da Honra rolou, mais arrogante e mais cavo:

— Meu filho, antes de mim, te respondeu, villão!

Como se uma pontoada de lança lhe topasse o peito, o Bastardo vacillou na alta sella: e, colhido pelo repuxão das rédeas, o seu fouveiro recuou alteando a testeira dourada. Mas, a um novo arremesso, repulou contra a cancella. E Lopo de Bayão erguido sobre os estribos, gritava com ancia, com furor:

— Snr. Tructesindo Ramires, não me tenteis!...

— Arreda, villão e filho de villôa, arreda! — clamou soberbamente o velho, sem desprender os braços de sobre o levantado peito, na sua rija immobilidade e teima, como se todo o corpo e alma fossem de rijo ferro.

Então o Bastardo, arrojando o guante contra o muro da barbacan, rugio, chammejante e rouco:

— Pois pelo sangue de Christo e pela alma de todos os meus te juro, que se me não dás n’este instante essa mulher que eu quero e que me quer, sem filho ficas, que por minhas mãos, deante de ti e nem que todo o Céo accuda, lhe acabo o resto da vida!

Já na mão lhe lampejava um punhal. Mas n’um impeto de sublime orgulho, um impeto sobrehumano, em que cresceu como outra escura torre entre as torres da Honra, Tructesindo arrancára a espada:

— Com esta, covarde! com esta! Para que seja puro, não vil como o teu, o ferro que atravessar o coração de meu filho!

Furiosamente, com as duas possantes mãos, arremessou a espada, que rodopiou silvando e faiscando, se cravou no duro chão, onde tremia, ainda faiscava, como se uma colera heroica tambem a animasse. E no mesmo relance, com um urro, um salto do ginete, o Bastardo, debruçado do arção, enterrára o punhal na garganta de Lourenço — em golpe tão cravado que o esguicho do sangue lhe salpicou a clara face, as barbas d’ouro.

Depois foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o chão as andas, o corpo morto enrodilhado nos ramos — e atiraram pelo terreiro, como lebres em clareira, atraz do monge que se agachava agarrado ás crinas da mula. N’uma curta desfilada o Bastardo, os seis cavalleiros, gritando o alarme, mergulharam no arraial que estacára ao Cruzeiro. Um tumulto remoinhou em torno ao devoto pilar. E em rodilhado tropel a mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha ponte, logo ennublada em pó e sumida para além do arvoredo, n’um fugidio coriscar de capellinas e de lanças apinhadas.

Uma alta grita, no emtanto, atroára as muralhas de Santa Ireneia! Virotes, flechas, balas de fundas assobiavam, despedidas no mesmo furioso repente, sobre o bando de Bayão: — mas apenas um dos besteiros que carregára as andas tombou, estrebuchando, com uma flecha na ilharga. Pela cancella das barreiras já Cavalleiros e donzeis d’armas se empurravam desesperadamente para recolher o corpo de Lourenço Ramires. E Garcia Viegas, os outros parentes, galgaram ao eirado da barbacan, d’onde Tructesindo se não arredára, rigido e mudo, fitando as andas e seu filho estatelado com ellas sobre o terreiro da sua Honra. Quando, ao rumor, elle pesadamente se voltou — todos emmudeceram ante a serenidade da sua face, mais branca que as brancas barbas, d’uma morta brancura de lapide, com os olhos resequidos e côr de braza, a latejar, a refulgir, como os dous buracos d’um forno. Com a mesma sinistra serenidade, tocou no hombro do velho Ramiro, que tremia arrimado ao seu chusso. E n’uma vagarosa e vasta voz:

— Amigo! cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda hoje, por Deus! lh’a vou eu socegar!...

Afastou aquelles senhores emmudecidos d’assombro e d’emoção — e baixou pela gasta escada de madeira, que rangia sob o peso do enorme Rico-Homem carregado de ira e dôr.

N’esse momento, entre besteiros e serviçaes que se atropellavam — o corpo de Lourenço Ramires transpunha o portello das barbacans, segurado pelo formoso Leonel e por Mendo de Briteiros, ambos affogueados de lagrimas e rouquejando ameaças furiosas contra a raça de Bayão. Atraz o tropego Ordonho gemia, abraçado á espada de Tructesindo, que apanhára no chão do Terreiro e que beijava como para a consolar. Á borda do fosso uma aveleira espalhava a sombra leve n’um bronco taboão pregado sobre toros — d’onde, aos domingos, com o adanel dos besteiros, Lourenço dirigia os jogos de bésta e frecha, distribuindo fartamente as recompensas de bolos de mel e de vinho em picheis. Sobre essas taboas o estiraram — recuando todos depois, em quanto aterradamente se benziam. Um cavalleiro de Briteiros, temendo por aquella alma desamparada e sem confissão, correra á capella da Alcaçova procurar Frei Muncio. Outros, rodeando toda a muralha até ao Baluarte-Velho, gritavam, com desesperados acenos, para o torreão escalavrado, onde, como um môcho, habitava o Physico. Mas o certeiro punhal do Bastardo acabára o denodado Lourenço, flor e regra de cavalleiros por toda a terra de Riba-Cavado... E que lastimoso e desfeito — com suja terra na face, a garganta empastada de sangue negro, as malhas do saio rotas sobre os hombros e embebidas nas carnes retalhadas, e nua, sem grêva, toda inchada e rôxa, a perna ferida em Canta-Pedra, onde mais sangue e lama se empastavam!

Tructesindo descia, lento e rigido. E as seccas brazas dos seus olhos mais se incendiam, em quanto, atravez do dorido silencio, se acercava do corpo de seu filho. Deante do banco ajoelhou, agarrou a arrefecida mão que pendia; e, junto á face manchada de sangue e terra, segredou, de alma para alma, n’um abafado murmurio, que não era de despedida mas d’alguma suprema promessa, e que findou n’um beijo demorado sobre a testa, onde uma restea de sol rebrilhou, dardejada d’entre as folhas da aveleira. Depois erguido n’um arrebate, atirando o braço como para n’elle recolher toda a força da sua raça, gritou:

— E agora, senhores, a cavallo, e vingança brava!

Já pelos páteos, em torno da Alcaçova, corria um precipitado fragor d’armas. Aos asperos commandos dos almocadens as filas de besteiros, d’archeiros, de fundibularios, rolavam dos adarves dos muros para cerrar as quadrilhas. Rapidamente, os cavallariços da carga amarravam sobre o dorso das mulas os caixotes do almazem, os alforges da trebalha. Pelas portas baixas da cosinha, peões e sergentes, antes de largar, bebiam á pressa uma conca de cerveja. E no campo das barreiras os cavalleiros, chapeados de ferro, carregadamente se içavam, com a ajuda dos donzeis, para as altas sellas dos ginetes — logo ladeados pelos seus infanções e acostados, que aprumavam a lança sobre o coxote assobiando aos lebreus.

Emfim o Alferes, Affonso Gomes, saccou da funda e desfraldou o pendão n’um embalanço largo em que as azas do Açor negrejaram, abertas, como soltando o vôo enfurecido. O grito agudo do Adail resoára por toda a cerca — ala! ala!De cima de um marco de pedra, junto ao postigo do barbacan, Frei Muncio estendia as magras mãos ainda tremulas, abençoava a hoste. Então Tructesindo, sobre o seu murzello, recebeu do velho Ordonho a espada, de que tão terrivelmente se apartára. E estendendo a reluzente folha para as torres da sua Honra como para um altar, bradou:

— Muros de Santa Ireneia, não vos torne eu a vêr, se em tres dias, de sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de Bayão!

E, escancaradas as barreiras, a cavalgada tropeou em torno ao pendão solto, — em quanto, na torre d’Almenara, sob o parado explendor da sésta d’Agosto, o sino grande começava a tanger a finados.

 

 

Quando Gonçalo á tarde, enterrado na poltrona á varanda, releu este Capitulo de sangue e furor sobre que se esfalfára durante a semana, pensou «que o lance impressionaria.»

Sentiu então o appetite de recolher sem demora os louvores merecidos — e de mostrar a Gracinha e ao Padre Sueiro os tres Capitulos completos antes de remetter o manuscripto para os Annaes. E mesmo lhe convinha — porque a erudição archeologica do Padre Sueiro forneceria talvez algum traço novo, bem Affonsino, que mais avivasse aquella resurreição da Honra de Santa-Ireneia e dos seus senhores formidaveis. Immediatamente resolveu partir de manhã para Oliveira com o seu trabalho — que, depois de esmiuçado pelo Padre Sueiro, confiaria ao procurador de D. Arminda Viegas para elle o copiar n’aquella sua formosa lettra, tão celebrada em todo o Districto, e apenas egualada (nas maiusculas) pela do Escrivão da Camara Ecclesiastica.

Sacudia já da poeira uma antiga pasta de marroquim para transportar a Obra amada — quando o Bento empurrou a porta, ajoujado com uma cesta de vime que uma toalha de rendas cobria.

— Um presente.

— Um presente... De quem?

— Da Feitosa, das senhoras.

— Bravo!

— E com uma carta, que vem pregada na toalha.

Com que curiosidade Gonçalo despedaçou o sobrescripto! Mas, apezar de lacrado com um pomposo sello d’Armas, apenas continha linhas a lapis n’um bilhete de visita da prima Maria Mendonça: — «Hontem ao jantar contei quanto o primo Gonçalo gosta de pêcegos sobretudo aboborados em vinho, e a Annica toma por isso a liberdade de lhe mandar esse cestinho de pêcegos da Feitosa, que como sabe são fallados em todo o Portugal... Mil saudades.» — Gonçalo imaginou logo no fundo da cesta, debaixo dos pêcegos, docemente escondida, uma cartinha da D. Anna!

— Bem! São pêcegos... Deixa ahi sobre uma cadeira...

— Era melhor que os levasse já para a copa, Snr. Dr., para os arrumar na prateleira...

— Deixa sobre a cadeira!

Apenas o Bento cerrára a porta, estendeu no chão a toalha, entornou cuidadosamente por cima os pêcegos formosos que perfumavam a livraria. No fundo da cesta encontrou apenas folhas de parra. Levemente desconsolado, cheirou um pêcego. Depois considerou que os pêcegos, arranjados por ella, com parra que ella apanhára na latada, sob toalha que ella escolhera no armario, formavam na sua mudez cheirosa um recadinho sentimental. Ainda agachado na esteira, comeu o pêcego: — e recollocou os outros na cesta para os levar a Gracinha.

Mas, ao outro dia, ás duas horas, já com a parelha do Torto engatada á caleche, já com as luvas calçadas para a jornada d’Oliveira, recebeu uma inesperada visita — a visita do Snr. Visconde de Rio-Manso. Descalçando as luvas o Fidalgo pensava: — «O Rio-Manso! Que me quererá esse casmurro?» — Na sala, pousado á beira do canapé de velludo verde e esfregando os joelhos, o Visconde contou que de volta de Villa Clara e deante do portão da Torre vencera o seu teimoso acanhamento para apresentar os seus respeitos ao Snr. Gonçalo Ramires. E não só para esse gostoso dever — mas tambem (como soubera que S. Ex. ase propunha Deputado pelo Circulo) para lhe offerecer na freguezia de Canta-Pedra o seu prestimo e os seus votos...

Gonçalo, risonho e pasmado, saudava, torcia embaraçadamente o bigode. E o Visconde de Rio-Manso não estranhava aquelle pasmo por que de certo o Snr. Gonçalo Ramires o conhecêra sempre como ferrenho Regenerador... Mas então! Elle pertencia á geração, agora bem rareada, que antepunha aos deveres da Politica os deveres da gratidão: — e além da sympathia que lhe merecia o Snr. Gonçalo Ramires (pelo que constava em todo o Districto do seu talento, da sua affabilidade, da sua caridade) tambem conservava para com S. Ex. auma divida de gratidão, ainda aberta, não por indifferença, mas por timidez...

— V. Ex. anão adivinha, Snr. Gonçalo Mendes Ramires?... Não se lembra?

— Não, realmente, Snr. Visconde, não me...

Pois uma tarde o Snr. Gonçalo Mendes Ramires passava a cavallo pela quinta da Varandinha, quando a sua neta, brincando no terraço (aquelle terraço gradeado d’onde se curva uma magnolia), deixou escapar uma péla para a estrada. O Snr. Gonçalo Mendes Ramires, rindo, apeou immediatamente, apanhou a péla, e, para a restituir á menina debruçada da grade, abeirou a egoa do muro depois de montar — e com que ligeiresa e garbo!...

— V. Ex. anão se lembrava?

— Sim, sim, agora...

Pois no ladrilho do terraço, rente da grade, pousava um jarro cheio de cravos. O Snr. Gonçalo Mendes, depois de gracejar com a menina (que, louvado Deus, não era acanhada!) pediu um cravo, que ella escolheu — e que lhe deu, toda séria, como uma senhora. E elle, que observára da janella do seu quarto, pensava: — «Ora ahi está! Este Fidalgo da Torre, um tão grande Fidalgo, que amavel!» — Oh S. Ex. anão tinha que rir e corar... A gentileza fôra grande — e a elle, avô, parecêra immensa! Mas não ficára sómente na péla apanhada...

— O Snr. Gonçalo Mendes Ramires não se recorda?...

— Sim, Snr. Visconde, com effeito, agora...

Pois, logo no outro dia, o Snr. Gonçalo Mendes Ramires mandára da Torre um precioso cesto de rosas, com o seu bilhete, e n’uma linha este gracejo: — «Em agradecimento d’um cravo, rosas á Snr. aD. Rosa.»

Gonçalo quasi pulou na cadeira, divertido:

— Sim, sim, Snr. Visconde, perfeitamente!.. Agora me recordo!

Pois desde essa tarde elle sempre almejára por uma opportunidade de mostrar ao Snr. Gonçalo Mendes Ramires o seu reconhecimento, a sua sympathia. Mas que! era timido, vivia muito retirado... N’essa manhã porém, em Villa Clara, soubera pelo Gouveia que S. Ex. ase apresentava deputado pelo Circulo. Apezar de ser eleição tão segura, já pela influencia do Snr. Ramires, já pela influencia do Governo, logo pensára — «Bem, ahi está a occasião!» E, agora offerecia a S. Ex. a, na freguezia de Canta-Pedra, o seu prestimo e os seus votos.

Gonçalo murmurou, enternecido:

— Realmente, Snr. Visconde, nada me podia sensibilisar mais do que uma offerta tão espontanea, tão...

— Sou eu que me sensibiliso por V. Ex. aacceitar. E agora não fallemos mais n’esse meu pobre prestimo e n’esses meus pobres votos... Pois V. Ex. atem aqui uma veneravel vivenda.

E como o Visconde alludia ao desejo, já n’elle antigo, de admirar de perto a famosa torre, mais velha que Portugal — ambos desceram ao pomar. O Visconde, com o guarda-sol ao hombro, pasmou em silencio para a torre; reconheceu (apezar de liberal) o prestigio que resulta d’uma tão alta linhagem como a dos Ramires; e gabou sinceramente o laranjal. Depois, sabendo que o Pereira da Riosa arrendára a quinta, invejou ao Snr. Ramires tão cuidadoso e honrado rendeiro... — Deante do portão, o char-à-bancsdo Visconde esperava, atrelado de duas mulas lustrosas e nedias. Gonçalo admirou as mulas. E, abrindo a portinhola, supplicou ao Snr. Visconde que beijasse por elle a mãosinha da Snr. aD. Rosa. Commovido, o Visconde confessou uma ousadia, uma esperança — e era que S. Ex. aum dia, á sua escolha, parasse em Canta-Pedra, jantasse na quinta, para conhecer mais intimamente a menina da péla e do cravo...

— Mas com immensa honra!... E desde já me proponho a ensinar á Snr. aD. Rosa, se ella o não sabe, o jogo da péla á antiga portugueza.

O Snr. Visconde saudou, banhado de gosto e riso, com a mão sobre o coração.

Gonçalo, trepando as escadas, murmurava: — «Oh senhores, que sympathico homem! E que generoso homem, que paga rosas com votos! Ora vejam como ás vezes, por uma pequenina attenção, se ganha um amigo! Com certeza, para a semana vou a Canta-Pedra jantar!... Homem encantador!»

E foi n’um ditoso estado d’alma que accommodou na caleche a pasta de marroquim com o manuscripto, o cesto sentimental dos pêcegos da D. Anna — e accendeu um charuto, e saltou á almofada, e tomou as redeas para lançar, n’um trote alegre até Oliveira, a parelha branca do Russo.

No largo d’El-Rey, antes d’apear, perguntou logo ao Joaquim da Porta noticias dos senhores. Os senhores todos muito bem, graças a Deus... O Snr. José Barrôlo partira de manhã a cavallo para a quinta do Snr. Barão das Marges, só recolhia á noite...

— E o Snr. Padre Sueiro?

— O Snr. Padre Sueiro, creio que está para casa da Snr. aD. Arminda...

— E a Snr. aD. Graça?

— A Snr. aD. Graça desceu ha um bocadinho grande para o Mirante, de chapeu... Naturalmente ia á Egreja das Monicas.

— Bem. Leva esse cesto de pêcegos e dize ao Joaquim da Copa que o ponha na mesa, assim mesmo no cesto, com as folhas... E que me subam ao quarto agoa quente.

O relogio de parede, na sala de espera, gemia preguiçosamente as cinco horas. O palacete repousava n’um claro silencio. E depois da poeira e dos solavancos da estrada, pareceu mais doce a Gonçalo a frescura do seu quarto com as quatro janellas abertas sobre o jardim regado e sobre a cerca das Monicas. Cuidadosamente, guardou logo n’uma gaveta da commoda a pasta preciosa de marroquim. Uma creada de olhos repolhudos entrára com o jarrão d’agua quente: — e o Fidalgo, como sempre, chasqueou a moça sobre os lindos sargentos de Cavallaria, cujo quartel tentador dominava o lavadouro da quinta, e retinha as raparigas da casa ensaboando todo o dia com paixão. Depois ainda se demorou, mudando o fato empoeirado, assobiando vagamente, encostado á varanda sobre a callada rua das Tecedeiras. O sino das Monicas lançou um lindo repique... E Gonçalo, enfastiado da sua solidão, decidiu descer pelo terraço do jardim, e surprehender Gracinha nas suas devoções, na Egrejinha.

Em baixo, no corredor, crusou o Joaquim da Copa:

— Então o Snr. Barrôlo hoje não janta?

— O Snr. Barrôlo foi jantar com o Snr. Barão das Marges, na quinta... São os annos da menina. Naturalmente só recolhe á noite.

Gonçalo, no jardim, ainda tardou por entre os alegretes, compondo para o casaco um ramo de flôres ligeiras. Depois rodeou a estufa, sorrindo da porta com que o Barrôlo a enriquecera, uma porta envidraçada, arqueada em ferradura, com um monogramma de côres rutilantes: e metteu pela rua que conduzia ao repuxo, coberta de silencio e penumbra pela rama enlaçada dos seus altos loureiros. Adiante, circumdado de bancos de pedra, d’arvores de aroma e flôr, cantava dormentemente o fino repuxo n’um tanque redondo, de borda larga, onde s’espaçavam grossos vasos de louça branca com o brazão ramalhudo dos Sás. Certamente na véspera ou de manhã se lavára o tanque, por que na agoa muito transparente, sobre as lages muito claras, nadavam com redobrada vivacidade, em lampejos rosados, os peixes que Gonçalo assustou mergulhando e agitando a bengala. E d’aquella borda do tanque já elle avistava ao fundo de outra rua, debruada de dhalias abertas, o Mirante — uma construcção do seculo XVIII, simulando um Templosinho grego, côr de rosa desbotada, com um gordo Cupido sobre a cupula, e janellinhas de rocalha entre o meio relevo das columnas canelladas por onde trepavam jasmineiros.

Gonçalo arrancou, como costumava, folhas d’um ramo de lucia-lima, para esmagar e perfumar as mãos: e continuou para o Mirante, vagarosamente, por entre as dhalias apinhadas. Na allea, novamente ensaibrada, os sapatos finos de verniz que calçára pousavam sem rumor no saibro molle. E assim, n’um silencio de sombra indolente, se acercou do Mirante — e d’uma das janellinhas que, mal cerrada, conservava corrida por dentro a persiana de taboinhas verdes. Rente d’essa janella era a escada de pedra, que, do elevado e comprido terraço sobre que se estendia o jardim, communicava com a encovada rua das Tecedeiras, quasi em frente á Capella das Monicas. E Gonçalo, sem pressa, descia — quando, atravez da persiana rala, sentiu dentro do Mirante um susurro, um cochichar perturbado. Sorrindo, pensou que alguma das creadas da casa se refugiára n’esse Templosinho de Amor com um dos sargentos terriveis de Cavallaria... Mas, não! impossivel! Pois se, momentos antes, Gracinha roçára aquella janella e pisára aquella escada, no seu caminho para as Monicas! E então outra idéa o varou como uma espada — e tão dolorosa que recuou com terror da beira do Mirante d’onde ella perversamente o assaltára. Já porém uma desesperada curiosidade a agarrára, o empurrava — e collou a face á persiana com a cautella d’um espião. O Mirante recahira em silencio — Gonçalo temia que o trahissem as pancadas do seu coração... Santo Deus! De novo o murmurio recomeçára, mais apressado, mais turbado. Alguem supplicava, balbuciava: — «Não, não, que loucura!» — Alguem urgia, impaciente e ardente: — «Sim, meu amor! sim, meu amor!» E a ambos os reconheceu — tão claramente como se a persiana se erguesse e por ella entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era Gracinha! Era o Cavalleiro!

Colhido por uma immensa vergonha, no atarantado pavor de que o surprehendessem junto do Mirante e da torpeza escondida — enfiou pela rua das dhalias, encolhido, com os sapatos leves no saibro molle, costeou o repuxo por sob a ramaria dos arbustos, remergulhou na escuridão dos loureiros, deslisou surrateiramente por traz da estufa — penetrou no socego do Palacete. Mas o murmurio do Mirante ainda o envolvia, mais desfallecido, mais rendido — «Não, não, que loucura!... Sim, sim, meu amor!...»

Abalou atravez das salas desertas como uma sombra acossada; escorregou abafadamente pela escadaria de pedra, varou o portão n’uma carreira, espreitando, com medo do Joaquim da Porta. No Largo parou, deante da grade do relogio do sol. Mas o susuro do Mirante errava por todo o Largo como um vento enroscado, raspando as lages, batendo as barbas dos Santos sobre o portal da Egreja de S. Matheus, redemoinhando nos telhados musgosos da Cordoaria... — «Não, não, que loucura! Sim, sim! meu amor!» Então Gonçalo sentiu a anciedade desesperada d’escapar para longe, para immensamente longe do Largo, do Palacete, da cidade, de toda aquella vergonha que o trespassava. Mas uma carruagem?... Pensou na alquilaria do Maciel, a mais retirada, para além das ultimas casas, na estrada do Seminario. E cosido com os muros baixos d’essas ruas pobres, correu, mandou engatar uma caleche fechada.

Emquanto esperava á porta, n’um banco, passou pela estrada uma lenta carroça com moveis, panellas de cosinha, um grande colxão onde se alastrava uma nodoa. Bruscamente Gonçalo recordou o divan que guarnecia o Mirante. Era enorme, de mogno, todo coberto de riscadinho, com mollas lassas que rangiam. E de repente o murmurio recomeçou, cresceu, rolando com fragor de trovão por sobre os casebres visinhos, por sobre a cerca do Seminario, por sobre Oliveira espantada: — «Não, não, que loucura! Sim, sim, meu amor!»

Com um salto, Gonçalo gritou para dentro, para a cavallariça escura:

— Então, que inferno! não acaba, essa carroagem?

— Já a largar, meu Fidalgo.

No relogio da Piedade sete horas batiam — quando elle se atirou para a caleche, e fechou as storespêrras, e se enterrou no fundo, bem sumido, esmagado, com a sensação que o Mundo tremera, e as mais fortes almas se abatiam, e a sua Torre, velha como o Reino, rachava, mostrando dentro um montão ignorado de lixo e de saias sujas.