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A Ilustre Casa de Ramires/XII

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XII


Quatro annos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como vôos d’ave.

N’uma doce tarde dos fins de Septembro, Gracinha, que chegára na vespera de Oliveira acompanhada pelo bom Padre Sueiro, descansava na varanda da sala de jantar, estendida sobre o canapé de palhinha, ainda com um grande avental branco, tapando o vestido até ao pescoço, um velho avental do Bento. Todo o dia, d’avental, atravez do casarão, ajudada pela Rosa e pela filha da Crispola, s’esfalfára, arrumando e limpando, com tanto gosto e fervor no trabalho, que ella mesma sacudira o pó a todos os livros da livraria, o seu socegado pó de quatro annos. O Barrôlo tambem se occupára, dando sentenças nas obras da cavallariça, que a valente egoa da briga da Grainha em breve partilharia com uma egoa ingleza, de meio sangue, comprada em Londres. Tambem Padre Sueiro remexera, pelo Archivo, zelosamente, com um espanejador. E até o Pereira da Riosa, o bom rendeiro, apressava desde madrugada dois moços na final limpeza da horta, agora muito cuidada, já com meloal, já com morangal, e duas novas ruas, ambas bordadas de roseiras e recobertas de latada que a parra densa já recobria.

Com efeito a Torre, entre a alvoroçada alegria de todos, enfeitava a sua velhice — por que no Domingo, depois dos seus quatro annos d’Africa, Gonçalo regressava á Torre.

E Gracinha, estendida no canapé com o seu velho avental branco, sorrindo pensativamente para a quinta silenciosa, para o ceu todo córado sobre Valverde, recordava esses quatro annos, desde a manhã em que abraçára Gonçalo, suffocada e a tremer, no beliche do Portugal... Quatro annos! Assim passados, e nada mudára no mundo, no seu curto mundo d’entre os Cunhaes e a Torre, e a vida rolára, e tão sem historia como rola um rio lento n’uma solidão: — Gonçalo na Africa, na vaga Africa, mandando raras cartas, mas alegres, e com um enthusiasmo de fundador de Imperio; ella nos Cunhaes, e o seu Barrôlo, n’um tão quieto e costumado viver, que eram quasi d’agitação os jantares em que reuniam os Mendonças, os Marges, o coronel do 7, outros amigos, e á noite na sala se abriam duas mezas de panno verde para o voltarete e para o boston.

E n’este manso correr de vida se desfizera mansamente, quasi insensivelmente, a sombria tormenta do seu coração. Nem ella agora comprehendia como um sentimento, que atravez das suas anciedades ella justificava, quasi secretamente santificava por o saber unico, e o desejar eterno, assim se sumira, insensivelmente, sem dilacerações, deixára apenas um leve arrependimento, alguma esfumada saudade, tambem estranheza e confusão, restos de tanto que ardera, formando uma cinza fina... A successão das cousas rolára, como o vento ás lufadas n’um campo, e ella rolára, levada com a inercia d’uma folha secca.

Logo depois do derradeiro Natal passado com Gonçalo, André, que ainda os acompanhára á Missa do Gallo e consoára nos Cunhaes, voltou para Lisboa, para essa «Reforma», de que se lastimava... No silencio que entre ambos então se alargou, corria já uma frialdade d’abandono... E quando André recolheu a Oliveira, ao seu Governo Civil, partia ella para Amarante, onde a santa mãe do Barrôlo adoecera, com uma vagarosa doença d’anemia e velhice, que em Maio a levou para o Senhor.

Em Junho fôra o commovido embarque de Gonçalo para a Africa, — e no tombadilho do paquete, entre o barulho e as bagagens, um encontro com André, que chegara d’Oliveira, dias antes, e contou muito alegremente do casamento da Mariquinhas Marges. Todo esse verão, como o Barrôlo decidira fazer obras consideraveis no velho palacete do Largo d’El-Rei, o passaram na quinta da Murtosa, que ella escolhera por causa da linda matta, dos altos muros de convento. A essa solidão attribuiu logo o Barrôlo a sua melancolia, a sua magreza, aquelle cansado scismar a que se abandonava, pelos bancos musgosos da matta, com um romance esquecido no regaço. Para que ella se distrahisse, se fortificasse com banhos do mar, alugou em Setembro, na Costa, o vistoso chalet do commendador Barros. Ella não tomou banhos, nem apparecia na praia, á fresca hora das barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas: — e só á tarde passeava pelo comprido areal rente á vaga, acompanhada por dous enormes galgos que lhe dera Manoel Duarte. Uma manhã, ao almoço, ao abrir as Novidades, Barrôlo pulou, com um berro, um espanto. Era a queda inesperada do Ministerio do S. Fulgencio! André Cavalleiro apresentava logo a sua demissão pelo telegrapho. E ainda pelas Novidadessouberam na Costa que S. Ex. apartira para uma «longa e pittoresca viagem», a viagem a Constantinopla, á Asia Menor, que elle annunciára ao jantar nos Cunhaes. Ella abrira um Atlas: com o dedo lento caminhou desde Oliveira até á Syria, por sobre fronteiras e montes: já André lhe parecia desvanecido, n’esses horisontes mais luminosos; fechou o Atlas, pensando simplesmente «como a gente muda!»

Em Novembro voltaram a Oliveira, n’um sabbado de chuva, e ella na carruagem sentia toda a melancolia e a frialdade do ceu penetrar no seu coração. Mas no Domingo acordou com um lindo sol nas vidraças. Para a missa das onze na Sé, ella estreou um chapéo novo; depois, no caminho para casa da tia Arminda, levantou os olhos para o casarão do Governo Civil: agora habitava lá outro Governador Civil, o Snr. Santos Maldonado, um moço louro que tocava piano.

Na outra primavera o Barrôlo, agora escravisado pela paixão d’obras, imaginou demolir o Mirante para construir outra estufa, mais vasta, com um repuxo entre palmeiras, que formaria «um jardim d’inverno catita.»

Os trabalhadores começaram por esvasiar o Mirante da velha mobilia que o guarnecia desde o tempo do tio Melchior: o immenso divan jazeu dois dias no jardim, encalhado contra uma sebe de buxo, e o Barrôlo, impaciente, com aquelle desusado traste, de molas quebradas, nem o consentiu nas arrecadações do sotão, mandou que o queimassem com outras cadeiras partidas, n’uma fogueira de festa, na noute dos annos de Gracinha. E ella andou em torno da fogueira. O estofo poído flammejou, depois o mogno pesado mais lentamente, com um leve fumo, até que uma braza ficou latejando, e a braza escureceu em cinza.

Logo n’essa semana as Lousadas, mais agudas, mais escuras, invadiram uma tarde os Cunhaes — e apenas espetadas no sophá, logo lhe contaram, com um riso feroz nos olhinhos furantes, do grande escandalo, o Cavalleiro! em Lisboa! sem rebuço! com a mulher do Conde de S. Romão! um fazendeiro de Cabo Verde!

N’essa noite, ella escreveu a Gonçalo uma carta muito longa que começava: — «Por cá estamos todos bem, e n’este rame-ram costumado...» E com effeito a vida recomeçára, no seu rame-ram, simples, contínua, e sem historia, como corre um rio claro n’uma solidão.

Á porta envidraçada da varanda o filho da Crispola espreitou — o filho da Crispola, que ficára sempre na Torre, como «andarilho», mas crescera muito para fóra da sua antiga jaqueta de botões amarellos, usava agora jaquetões velhos do Snr. Doutor, e já repuxava o buço:

— É que está lá em baixo o Snr. Antonio Villalobos, com o Snr. Gouveia e outro senhor, o Videirinha, e perguntam se podem fallar á senhora...

— O Snr. Villalobos! Sim! que subam, que entrem para aqui, para a varanda!

Ao atravessar a sala, onde dous esteireiros d’Oliveira pregavam uma esteira nova, o vozeirão do Titó já ribombava, notando os «preparativos da festa...» E quando entrou na varanda a sua face mais barbuda, mais requeimada, rebrilhava com a alegria d’encontrar emfim a Torre despertando d’aquella modorra, em que tudo dentro parecia tristemente apagado, até o lume das caçarolas:

— Peço desculpa da invasão, prima Graça. Mas passamos, de volta d’um passeio dos Bravaes, soubemos que a prima viera com o Barrôlo...

— Oh! gosto immenso, primo Antonio. Eu é que peço desculpa d’esta figura, assim despenteada, de grande avental... Mas todo o dia em arranjos, a preparar a casa... E o Snr. Gouveia, como tem passado? Não o vejo desde a Paschoa.

O administrador, que não mudára n’esses quatro annos, escuro, secco, como feito de madeira, sempre esticado na sobrecasaca preta, apenas com o bigode mais amarellado do cigarro, agradeceu á Snr. aD. Graça... E passára menos mal, desde a Paschoa. A não ser a desavergonhada da garganta...

— E então o nosso grande homem? quando chega? quando chega?

— No Domingo. Estamos todos em alvoroço... Então não se senta, Snr. Videira? Olhe, puxe aquella cadeira de vime. A varanda por ora não está arranjada.

Videirinha, logo depois da Eleição, recebera de Gonçalo o logar promettido, facil e com vagares, para não esquecer o violão. Era amanuense na Administração do Concelho de Villa-Clara. Mas convivia ainda na intimidade do seu chefe, que o utilisava para todos os serviços, mesmo de enfermeiro, e o mandava sempre com uma auctoridade secca, mesmo ceando ambos no Gago.

Timidamente arrastou a cadeira de vime, que collocou, com respeito, atraz da cadeira do seu Chefe. E depois de tirar as luvas pretas, que agora sempre trazia para realçar a sua posição, lembrou que o comboio chegava ao apeadeiro de Craquêde ás dez e quarenta, não trazendo atrazo. Mas talvez o Snr. Doutor apeasse em Corinde, por causa das bagagens...

— Duvido, murmurou Gracinha. Em todo o caso o José está com tenção de partir de madrugada, para o encontrar na bifurcação, em Lamello.

— Nós não! acudiu o Titó, que se sentára familiarmente no rebordo da varanda. Cá o nosso rancho vae simplesmente a Craquêde. Já é terra da familia, e sitio mais socegado para o vivorio... Mas então esse homem não se demorou em Lisboa, prima Graça?

— Desde Domingo, primo Antonio. Chegou no Domingo, de Paris, pelo Sud-Express. E teve uma chegada brilhante... Oh! muito brilhante! Hontem recebi eu uma carta da Maria Mendonça, uma grande carta em que conta...

— O que? A prima Maria Mendonça está em Lisboa?

— Sim, desde os fins d’Agosto, n’uma visita a D. Anna Lucena...

Vivamente, João Gouveia puxou a cadeira, n’uma curiosidade que de certo o remoera:

— É verdade, Snr. aD. Graça! — Então parece que a D. Anna Lucena comprou uma casa em Lisboa. anda em arranjos de mobilia?... V. Ex. aouviu, Snr. aD. Graça?

Não, Gracinha não sabia. Mas era natural, agora que tanto se demorava em Lisboa, pouco se aproveitava da Feitosa, tão linda quinta...

— Então casa! exclamou o Gouveia, com immensa convicção. Se anda em arranjos de mobilia, então casa. É natural, quer posição. Depois, já lá vão quatro annos de viuvez, e...

Gracinha sorriu. Mas o Titó, que coçava lentamente a barba, voltou á carta da prima Maria Mendonça, contando a chegada.

— Sim! acudiu Gracinha, conta, esteve na Estação, no Rocio. Parece que o Gonçalo optimo, mais forte... Olhe, primo Antonio, leia a carta. Leia alto! Não tem segredos. É toda sobre o Gonçalo...

Tirára do bolso um pesado enveloppe, com sinete d’armas no lacre. Mas a prima Maria escrevia sempre depressa, n’uma lettra atabalhoada, com as linhas crusadas. Talvez o primo Antonio não comprehendesse... — E com effeito, deante das quatro folhas de papel erriçadas de negras linhas, parecendo uma sebe espinhosa, o Titó recuou, aterrado. Mas o João Gouveia immediatamente se offereceu, com a sua pericia em decifrar officios de regedores... Não havendo segredos.

— Não, não ha segredos, afiançou Gracinha, rindo. É unicamente sobre o Gonçalo, como n’um jornal.

O administrador folheou a immensa carta, passou os dedos sobre o bigode, com certa solemnidade:

«Minha querida Graça... A costureira do Silva diz que o vestido...»

— Não! acudiu Gracinha. É na outra pagina, no alto. Volte a pagina.

Mas o Administrador gracejou, ruidosamente. Oh! está claro, carta de senhora, logo os trapos... E a Snr. aD. Graça a assegurar que era toda sobre Gonçalo. Pois já veriam se pelo meio se não fallava ainda em vestidos... Ah! estas senhoras, com os trapos!... — Depois recomeçou, na outra pagina, com lentidão e gravidade:

«...Deves agora estar anciosa por saber da grande chegada do primo Gonçalo. Foi realmente brilhante, e parecia uma recepção de pessoa real. Eramos mais de trinta amigos. Está claro, appareceu toda a roda da nossa parentella; e se rebentasse de repente n’essa manhã uma revolução, os Republicanos apanhavam alli junta, na estação do Rocio, toda a flôr da nobresa de Portugal, da velha, da boa. De senhoras, era a prima Chellas, a tia Louredo, as duas Esposendes (com o tio Esposende, que apesar do rheumatismo e da vindima, veiu expressamente da quinta de Torres), e eu. Homens, todos. E como estava o Conde de Arega, que é secretario d’El-Rei e o primo Olhalvo, que é o seu Mordomo-Mór, e o Ministro da Marinha e o Ministro das Obras Publicas, ambos condiscipulos e intimos de Gonçalo, as pessoas na estação deviam imaginar que chegava El-Rei. O Sud-Express trouxe quarenta minutos de demora. De modo que parecia um salão, com toda aquella gente da sociedade, muito alegre, e o primo Arega, sempre tão amavel e engraçado, e fazendo já convites para um jantar (que depois deu) ao primo Gonçalo. Lá fui a esse jantar com o meu vestido verde, novo, que ficou bem...»

Gouveia gritou triumphando:

— Hein? que disse eu?! cá está vestido. Vestido verde!

— Lê para deante, homem! bramou o Titó.

E o Administrador, realmente interessado, recomeçou, com entono:

«...com o meu vestido verde novo, excepto a saia, um pouco pesadota. Creio que fui eu a primeira que avistou o primo Gonçalo, na plataforma do Sud-Express. Não imaginas como vem... optimo! Até mais bonito, e sobretudo mais homem. A Africa nem de leve lhe tostou a pelle. Sempre a mesma brancura. E d’uma elegancia, d’um apuro! Prova de como se adeanta a civilisação d’Africa! dizia o primo Arega, este é estylo novo de tangas em Macheque!... Como imaginas, muito abraço, muita beijoca. A tia Louredo choramigou. Ah, já esquecia! Estava tambem o Visconde de Rio-Manso, com a filha, a Rosinha. Muito linda ella, com um vestido do Redfern, fez sensação. Todos me perguntavam quem era, e o conde d’Arega, está claro, logo com appetite de ser apresentado. O Rio-Manso tambem choramigou ao abraçar o primo Gonçalo. E ali viemos todos, em nobre sequito, pela estação fóra, entre o pasmo dos povos. Mas immediatamente uma scena. De repente, no meio de toda aquella nata de brazões, o primo Gonçalo rompe e cahe nos braços do homemzinho de bonet agaloado que recebia á porta os bilhetes. Sempre o mesmo Gonçalo! Parece que o conheceu ao chegar a Lourenço Marques, onde o homem tratava de se estabelecer como photographo. Mas já esquecia o melhor — o Bento! Não imaginas o Bento... Magnifico! Deixou crescer um bocado de suissa. É um modelo, vestido em Londres, de grande casaco de viagem de panno claro, até aos pés, luvas amarelladas, gravidade immensa. Gostou de me vêr na estação — perguntou logo, com o olho humido, pela Snr. aD. Graça, e pela Rosa. Á noite, o José e eu jantamos em familia, com o primo Gonçalo, no Bragança, para conversar da Torre e dos Cunhaes. Elle contou muitas cousas interessantes d’Africa. Traz notas para um livro, e parece que o praso prospera. N’estes poucos annos plantou dois mil coqueiros. Tem tambem muito cacau, muita borracha. Gallinhas são aos milhares. É verdade que uma gallinha gorda em Macheque vale um pataco. Que inveja! Aqui em Lisboa custa seis tostões, só com ossos — por que tendo tambem alguma carne no peito, salta para cá dez tostões, e agradece! No praso já se construiu uma grande casa, proximo do rio, com vinte janellas e pintada de azul. E o primo Gonçalo declara que já não vende o praso nem por oitenta contos. Para felicidade completa até achou um excellente administrador. Eu todavia duvido que elle volte para a Africa. Tenho agora cá a minha linda ideia sobre o futuro do primo Gonçalo. Talvez te rias. E não adivinhas... com effeito, eu mesma só n’essa noite em que jantamos no Bragança, recebi de repente a inspiração. O Rio-Manso está tambem no Bragança. Quando desciamos para o jantar, para um gabinete, encontramos no corredor o velho com a pequena. O homem tornou logo a abraçar Gonçalo, com uma ternura de pae. E a Rosinha tão vermelha se fez, que até Gonçalo, apesar de excitado e distrahido, notou e córou de leve. Parece que já ha entre elles um conhecimento antigo, por causa d’um cesto de rosas, e que, desde annos, o Destino os anda surrateiramente chegando. Ella é realmente uma belleza. E tão sympathica, tão bem educada!... Differença d’edade, apenas onze annos; e o dote tremendo. Fallam em quinhentos contos. Ha apenas a questão de sangue e o d’ella, coitadinha... Emfim, como se diz em heraldica, — « o Rei faz a pastora Rainha.» E os Ramires, não só vem dos Reis, mas os Reis vem dos Ramires. — E agora passando a assumpto menos interessante...»

Discretamente João Gouveia dobrou a carta, que entregou a Gracinha, louvando a Snr. aD. Maria Mendonça como um «reporter» precioso. Depois, com um cumprimento:

— E, minha senhora, se as previsões d’ella se realisam...

Mas não! Gracinha não acreditava! Ora! imaginações da Maria Mendonça.

— O primo Antonio bem a conhece, sabe como ella é casamenteira...

— Pois se até a mim me quiz casar, ribombou o Titó saltando do rebordo da varanda. Imagine a prima... Até a mim! Com a viuva Pinho, da loja de pannos.

— Credo!

Mas o Gouveia insistia, com superioridade, um sentimento verdadeiro da vida positiva:

— Olhe, Snr. aD. Graça, acredite V. Ex. a, sempre era melhor arranjo para o Gonçalo que a Africa... Eu não acredito n’esses prazos... Nem na Africa. Tenho horror á Africa. Só serve para nos dar desgostos. Boa para vender, minha senhora! A Africa é como essas quintarolas, meio a monte, que a gente herda d’uma tia velha, n’uma terra muito bruta, muito distante, onde não se conhece ninguem, onde não se encontra sequer um estanco; só habitada por cabreiros, e com sezões todo o anno. Boa para vender.

Gracinha enrolava lentamente nos dedos a fita do avental:

— O quê! vender o que tanto custou a ganhar, com tantos trabalhos no mar, tanta perda de vida e fazenda?!

O Administrador protestou logo, com calor, já enristado para a controversia:

— Quaes trabalhos, minha senhora? Era desembarcar alli na areia, plantar umas cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos... Essas glorias d’Africa são balelas. Está claro, V. Ex. afalla como fidalga, neta de fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais...

O seu dedo agudo ameaçava argumentos agudos.

Titó acudiu, salvou Gracinha:

— Oh Gouveia, nós estamos a tirar o tempo á prima Graça, que anda nos seus arranjos. Essas questões d’Africa são para depois, com o Gonçalo, á sobremeza... E então, minha querida prima, até Domingo, em Craquêde. Lá comparece o rancho todo. E quem atira os foguetes sou eu!

Mas Gouveia, cofiando o côco com a manga, ainda esperava converter a Snr. aD. Graça ás ideias sãs, sobre Politica Colonial.

— Era vender, minha senhora, era vender! Ella sorria, já consentia — tomando a mão do Videirinha, que hesitava, com os dedos espetados:

— E então, Snr. Videira, tem agora algumas quadras novas para o Fado?

Córando, Videirinha balbuciou que «arranjára uma coisita, tambem n’um fado, para a volta do Snr. Doutor.» Gracinha prometteu decorar, para cantar ao piano.

— Muito agradecido a V. Ex. a... Creado de V. Ex. a...

— Então até Domingo, primo Antonio... Está uma tarde linda.

— Até Domingo, em Craquêde, prima.

Mas á porta envidraçada, João Gouveia parou mais teso, bateu na testa:

— Já me esquecia, desculpe V. Ex. a! Recebi uma carta do André Cavalleiro, da Figueira da Foz. Manda muitas saudades ao Barrôlo. E quer saber se o Barrôlo lhe poderia ceder d’aquelle vinho verde de Vidainhos. É tambem para um africanista, para o conde de S. Romão... Parece que a Snr. acondessa se péla por vinho verde!

E os tres amigos, em fila, atravessaram a sala de jantar, onde o vozeirão do Titó ainda ribombou, louvando a esteira nova de côres. No corredor, Videirinha espreitou para a Livraria, notou o molho de penas de pato espetado no velho tinteiro de latão, que esperava, rebrilhando solitariamente sobre a mesa nua sem papeis nem livros. Depois a Rosa appareceu á porta do quarto de Gonçalo, ajoujada de roupa, com um riso em cada ruga da sua face redonda e côr de tijolo, que o farto lenço de cambraia, muito branco, circumdava como um nimbo. O Titó affagou carinhosamente o hombro da boa cosinheira:

— Então, tia Rosa, agora recomeçam essas grandes petisqueiras, hein?

— Louvado seja Deus, Snr. D. Antonio! Que imaginei que não tornava a vêr o meu rico senhor. Tambem já tinha decidido... Se me enterrassem o corpo aqui em Santa Ireneia, antes de eu vêr o menino, a alma com certesa ia á Africa para lhe fazer uma visita.

Os seus miudos olhos piscaram, lagrimejando de gosto — e seguiu pelo corredor, tesa e decidida, com a sua trouxa que rescendia a maçã camoeza. O Gouveia murmurára com uma careta: — «Safa!» E os tres amigos desceram ao pateo onde, por curiosidade do Titó, visitaram as obras da cavallariça.

— Veja você! exclamou elle para o Gouveia, que accendia o charuto. Você a negar!... Mobilias, obras, egoa ingleza... Tudo já dinheiro d’Africa.

O Administrador encolheu os hombros:

— Veremos depois como elle traz o figado...

Deante do portão o Titó ainda parou a colher, na roseira costumada, uma rosinha para florir o jaquetão de velludilho. E juntamente entrava o Padre Sueiro, recolhendo d’uma volta pelos Bravaes, com o seu grande guarda-sol de panninho e o seu breviario. Todos acolheram com carinho o santo e douto velho, tão raro agora na Torre.

— E então no Domingo, cá temos o nosso homem, Padre Sueiro!

O capellão achatou sobre o peito a mão gorda, com reverencia, com gratidão...

— Deus ainda me quiz conceder, na minha velhice, mais esse grande favor... Pois mal o esperava. Terras tão asperas, e elle tão delicado...

E para conversar de Gonçalo, da espera em Craquêde, acompanhou aquelles senhores até á ponte da Portella. João Gouveia manquejava, aperreado por umas infames botas novas que n’essa manhã estreára. E descançaram um momento no bello banco de pedra que o pae de Gonçalo mandára collocar, quando Governador Civil d’Oliveira. Era esse o doce sitio d’onde se avista Villa-Clara, tão aceada, sempre tão branca, áquella hora toda rosada, d’esde o vasto convento de Santa Theresa até ao muro novo do cemiterio no alto, com os seus finos cyprestes.

Para além dos outeiros de Valverde, longe, sobre a Costa, o sol descia, vermelho como um metal candente que arrefece, entre nuvens vermelhas, accendendo ainda, em ouro coruscante, as janellas da Villa.

Ao fundo do valle, uma claridade nimbava as altas ruinas de Santa Maria de Craquêde, entre o seu denso arvoredo. Sob o arco, o rio cheio corria sem um rumor, já dormente na sombra dos choupos finos, onde ainda passaros cantavam. E na volta da estrada, por cima dos alamos que escondiam o casarão, a velha Torre, mais velha que a Villa e que as ruinas do Mosteiro, e que todos os casaes espalhados, erguia o seu esguio miradoiro, envolto no vôo escuro dos morcegos, espreitando silenciosamente a planicie e o sol sobre o mar, como em cada tarde d’esses mil annos, desde o Conde Ordonho Mendes.

Um pequeno com uma alta aguilhada passou, recolhendo duas vaccas lentas. Do lado da Villa, o padre José Vicente da Finta trotou na sua egoa branca, saudou o Snr. Administrador, o amigo Sueiro, abençoando tambem a chegada do Fidalgo para quem já preparára uma bella cesta da sua uva moscatel. Trez caçadores, com uma matilha de coelheiras, atravessaram a estrada, descendo pelo portello á quelha que contorna o casal do Miranda.

Um silencio ainda claro, de immenso repouso, tão doce como se descesse do ceu, cobria a largueza povoada dos campos, onde não se movia uma folha, na macia transparencia do ar de Setembro. Os fumos das lareiras accesas já se escapavam, lentos e leves, d’entre a telha rala. Na loja do João ferreiro, adeante da Portella, o clarão da forja avivou, mais vermelho. Um bum-bumde tambor bateu festivamente para o lado dos Bravaes, cresceu apressado, marchando: — n’algum cabeço, depois lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no valle mais fundo.

João Gouveia, que se recostára no canto do largo assento de pedra, com o seu côco sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravaes:

— Estou a lembrar aquella passagem do romance do Gonçalo, quando os Ramires se preparam para soccorrer as Infantas, andam a reunir a mesnada. É assim, a estas horas da tarde, com tambores: e por sitios... «Na frescura do valle...» Não! «Pelo valle de Craquêde...» Tambem não! Esperem vocês, que eu tenho boa memoria... Ah! «E por todo o fresco valle até Santa Maria de Craquêde, os atambores mouriscos abafados no arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cerros ralatam! ralatam! convocavam á mesnada dos Ramires, na doçura da tarde...» E lindo!

Por sobre as costas do Titó que, debruçado, riscava pensativamente com o bengalão a poeira da estrada, Videirinha adeantou para o seu chefe a face estendida, com um sorriso de finura:

— Oh Snr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cá para mim, tem mais poesia. Quando o velho faz aquella jura com a espada e depois lá na Torre, muito devagar, começa a tocar a finados... É d’appetite!

Á borda do assento, encolhido contra o Titó, para que o Snr. Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Sueiro, com as mãos no cabo do seu guarda-sol, concordou:

— Com certesa! são lances interessantes... Com certesa! N’aquella novella ha imaginação rica, muito rica: e ha saber, ha verdade.

O Titó, que depois de Simão de Nantua, em pequeno, não abrira mais as folhas d’um livro, e não lêra a Torre de D. Ramires, murmurou, com um risco mais largo na poeira:

— Extraordinario, aquelle Gonçalo!

O Videirinha não findára o seu enlevado sorriso:

— Tem muito talento... Ah! o Snr. Doutor tem muito talento.

— Tem muita raça! exclamou o Titó, levantando a cabeça. E é o que o salva dos defeitos... Eu sou um amigo de Gonçalo, e dos firmes. Mas não o escondo, nem a elle... Sobretudo a elle. Muito leviano, muito incoherente... Mas tem a raça que o salva.

— E a bondade, Snr. Antonio Villalobos! atalhou docemente Padre Sueiro. A bondade, sobretudo como a do Snr. Gonçalo, tambem salva... Olhe, ás vezes ha um homem muito serio, muito puro, muito austero, um Catão que nunca cumpriu senão o dever e a lei... E todavia ninguem gosta d’elle, nem o procura. Por que? Por que nunca deu, nunca perdoou, nunca acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que offendeu mesmo a lei... Mas quê? É amoravel, generoso, dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o amam, e não sei mesmo, Deus me perdôe, se Deus tambem o não prefere...

A curta mão que acenára para o ceu, recahiu sobre o cabo d’osso do guarda-sol. Depois, e córado com a temeridade de pensamento tão espiritual acudiu cautelosamente:

— Que esta não é propriamente doutrina da Egreja!... Mas anda nas almas; anda já em muitas almas.

Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o côco á banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:

— Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Snr. Padre Sueiro quem elle me lembra?

— Quem?

— Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquelle todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a immensa bondade, que notou o Snr. Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistencia, muito aferro quando se fila á sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negocios, e sentimentos de muita honra, uns escrupulos, quasi pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exaggerar até á mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento á realidade util. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar... A esperança constante n’algum milagre, no velho milagre d’Ourique, que sanará todas as difficuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociavel. A desconfiança terrivel de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e apparece um heroe, que tudo arrasa... Até aquella antiguidade de raça, aqui pegada á sua velha Torre, ha mil annos... Até agora aquelle arranque para a Africa... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem elle me lembra?

— Quem?...

— Portugal.

Os tres amigos retomaram o caminho de Villa-Clara. No ceu branco uma estrellinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquêde. E Padre Sueiro, com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu á Torre vagarosamente, no silencio e doçura da tarde, resando as suas Avè-Marias, e pedindo a paz de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casaes adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras.

 
FIM
 

A revisão das provas d’este livro, desde paginas 417 até á conclusão, não foi feita pelo Auctor. Entretanto seguiu-se á risca o original.