A Intrusa/XVII

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A praia de Botafogo regorgitava; era dia de regatas. Por todo o cais o povo apinhado olhava para o mar coalhado de barcas, palpitante de luz. Nas arquibancadas, à beira de água, as toaletes claras das moças despertavam a idéia de grandes flores variegadas, desabrochadas ao sol, e, na rua, carros e bondes arrastavam-se cheios, vagarosos, por entre a multidão. Mas a beleza era o mar, cuja superfície apenas enrugada de um azul violento, toda se paletava de escaminhas de ouro. Andavam pelo terceiro páreo. Baleeiras velozes, bem remadas, demandavam as balizas na ânsia da vitória; outras, em repouso, deixavam-se balouçar pela água, molemente, enquanto lá no alto as gaivotas espalmavam as asas tranqüilamente.

– Belos rapazes! – observou Adolfo Caldas, olhando com entusiasmo para a tripulação das baleeiras.

Armindo Teles acenou com a cabeça que sim, e chupou com mais força e maior satisfação o seu havana.

Caldas continuava à meia voz:

– Contempla aquele bíceps e cora! Homem da cidade, da manhosa política e das sobrecasacas bem feitas, não te envergonhas dos teus braços diante daqueles?...

– Se eu discutisse a murros...

– Quanto mais vigoroso é o braço, mais franca é a língua!... Digo-te por mim, que as minhas banhas sentem-se humilhadas, ofendidas, por aqueles músculos. A nossa raça salva-se. Ainda bem para os pais de família... Vê o modo enérgico e bem ritmado por que os remos desta baleeira vêm golpeando a água...

Teles soprou a baforada do seu charuto aromático, e respondeu:

– Prefiro olhar para o pavilhão e as arquibancadas... Se os rapazes são fortes, as mulheres são bonitas, e eu guardo para elas, em todos os tempos e lugares, a minha predileção. Hum! Isto hoje está chique... Se as galerias da Câmara tivessem esta sociedade... Eu falaria todos os dias!...

– Vês que as mulheres dão mais apreço ao músculo que ao verbo... Empresta-me o binóculo. Dança-se nas barcas...

– D. Maria Helena está no pavilhão... Também lá estão as Tavares... A Chiquita Maia... A Pedrosa e a filha. Precisamos cumprimentá-las.

– Depois... Deixa-me beber saúde pelos olhos. Faze outro tanto, que precisamos ambos de lavar a alma...

– Chegou agora a Joaninha Mendes...

– E ela? – indagou Adolfo sem desassestar o binóculo da barca, onde se dançava.

– Ainda a não vi... Mas há de vir!

– Lá passam os vermelhos a dianteira!

– Não... Por enquanto ainda são os azuis...

– Os demônios têm força... Agora!

– Bravo!

– Viva!

– Bravo! – gritaram muitas vozes a um tempo, numa explosão de entusiasmo. Ao lado deles um moço gordo berrava, agitando o chapéu. Teles sacudiu a cinza do charuto da lapela da sua sobrecasaca avelã, onde sorria a graça de uma orquídea lilás, e voltou-se todo para o pavilhão.

Sinhá debruçava-se no pavilhão do júri, com as faces afogueadas e o olhar chamejante. A seu lado, a mãe lambiscava bombons e as Moreiras, do Catete, sacudiam os lenços com frenesi:

– É o Boqueirão!

– É o Flamengo!

– Não...

– É!

– Bravo!

– Bravo!

Os nomes dos clubes andavam no ar, como as gaivotas. Afinal, um deles ganhou o páreo. Rompeu a música e a baleeira vitoriosa veio receber as saudações, que rebentavam em palmas por todo o cais, como uma onda. Ao passar pelo pavilhão, Sinhá, toda debruçada, vermelha como uma rosa, atirou-lhe o seu ramo de violetas. Aparou-o no ar um rapaz loiro, batido de sol, de rija musculatura e olhos brilhantes. Trocaram um sorriso luminoso.

– A mocidade!... A mocidade! É isto... Um aroma que atravessa o espaço... Um relâmpago que ilumina a vida, para deixar saudades... Este sim! – comentava Caldas consigo, lembrando-se do Argemiro ; e concluiu: – Agora a Sinhá escolheu bem... Isto é, não escolheu, achou. Aquilo é amor! E, dirigindo-se ao Teles: – Vamos agora cumprimentar as senhoras, com escala pelo bufê. Estou com sede.

O deputado acariciava o queixo nu com a mão gorducha, em que rutilava um rubi. Seus olhos vivos, de pestanas curtas, furavam por entre cabeças e ombros, à busca de alguém.

À roda comentavam o páreo. Havia descontentes; moças indignadas, outras quase chorosas, rapazes amuados. Tinham perdido. Mas outros e outras gesticulavam com alegria por aquele triunfo, que dava mais uma medalha ao clube da sua simpatia.

Falava-se alto nas arquibancadas. Os sons da banda de marinheiros no Toureiro da Carmen não permitiam segredos.

Em toda a linha do cais os guarda-sóis de cores diferentes, lembravam uma vegetação movediça de cogumelos fantásticos, desde os pequeninos, das crianças que assistiam à festa sentadas no paredão, com o olhar estúpido para o quadro policromo, até os grandes, protetores de velhos prudentes e amigos da sombra.

Corria uma aragem forte. Agitavam-se no ar os galhardetes vistosos e as bambinelas do pavilhão central, como a acenar a toda a gente que fosse para ali, gozar aquele quadro de luz!

O deputado impacientava-se. Adolfo parecia grudado ao bufê, comendo sanduíches e bebericando cerveja, no meio de um grupo de remadores muito adulados pela admiração dos outros. Trocavam-se brindes apressados; e na alegria, até um velhote pálido e encartolado trauteava a Carmen, acompanhando as sonoridades da banda.

O intervalo acabava-se. Ouviu-se o estampido do sinal de partida.

Voltaram-se para o mar.

– Lá vem ela! – exclamou Teles à meia voz, sobressaltado.

– Um ibisco! – observou Adolfo, olhando para uma lancha que se aproximava do cais.

O ibisco era a madame Senra, toda de escarlate, com os bandós dourados rebrilhando sob as papoulas do chapéu. Ela agitava a sombrinha vermelha,rindo-se para o Teles, que se precipitou alvoroçado e inconveniente para a receber no desembarque, sem atenção aos bigodes retorcidos do Senra e à escolta de moças que a acompanhavam.

Caldas imaginou:

“O patife do Teles vai passar uma hora feliz, uma hora ligeira, dessas que suspendem a vida! Por que será que as mulheres bonitas dão geralmente preferência aos banais? Esta é linda. Uma flor!... Sempre que a vejo sinto os meus pensamentos transformarem-se em abelhas... ela mesma deve sentir-se como que nimbada por um adejo de asas... volúpia dos olhos, tentados pela sua graça... Não se me dava!... Que lhe dirá o idiota do Teles? Sua Excelência alcançará ali o que não alcança na Câmara: chegar ao fim?... Pois é bem boa esta cerveja, e vou tomar mais um copo... Talvez chegue... sim... ela não é rígida... uma flor!”

A Pedrosa vira-o agora. Cumprimentava-o de longe. Que maçada! era preciso ir dizer adeusinho à Pedrosa!

“O amor faz falta”, continuava a meditar Adolfo; “desinteressa a gente de tudo... É um abandono, uma estupidez!”

Acotovelando o povo, ele saiu do bufê e entrou no pavilhão central, ao mesmo tempo que uma cesta de flores e uma bandeja de bombons.

– Entrei num momento simpático... – concluiu ele para si. E foi cumprimentar as senhoras. Lá fora renovava-se a cena:

– Bravo!

– Viva Icarahy!

– Viva... Vasco da Gama!

– Viva... a!

Voavam as flâmulas e os galhardetes; outra baleeira veio passear o seu triunfo, beirando o cais, onde a multidão estrondeava em palmas.

Na lindeza do céu, de um azul carregado e límpido, ressaltavam as cores maravilhosamente. Os perfis dos morros, rochosos uns, verdejantes outros, destacavam-se em todas as suas linhas, com surpreendentes minúcias. Nas arquibancadas as linhas das mulheres eram como orlas de flores de matiz viçoso que as ondas tivessem deposto na terra maravilhada.

– O esporte é a alma do Rio – afirmava a Pedrosa a uma amiga, no momento da aproximação de Adolfo. – Veja que entusiasmo! Decididamente, ele veio substituir os bailes... Hoje dança-se pouco. O remo e o futebol roubam os pares às moças... não é verdade, dr. Caldas?

– Protestando contra o título, confirmo, como não podia deixar de confirmar...

– Protesta por modéstia?

– Por consciência...

– Outros o usam com menos justiça... Eu teimarei em chamá-lo doutor... Por que não nos tem aparecido?

Ele desculpou-se, e como se tivessem aconchegado mais as pessoas do grupo, deixou-se ficar, envolvido nos perfumes dos vestidos bonitos que o cercavam. Sinhá, sempre voltada para o mar, não perdia de vista uma baleeira onde um rapaz loiro se condecorara com um ramo de violetas... A mãe falava, falava sempre, semeando sentenças, no seu palavreado animado e imperativo.

O marido não a acompanhara. Lá tinha tempo para se divertir!

Os altos negócios do Estado sufocavam-no; vivia numa rede de conferências, projetos e estudos de responsabilidade. Se todos tivessem a sua sinceridade!

– Faziam-lhe justiça... – observaram.

– Qual! Os sacrifícios eram de tal ordem, que não transpareciam completamente cá fora... Um verdadeiro escravo das suas idéias, o marido! A política é despótica... O que lhe valia era não ter ciúmes... De resto, – concluía ela, para dizer algo em ar de sentença: – no amor, quando o ciúme entra pela porta, a confiança salta pela janela! Em todo o sentido, – e sublinhava com o olhar a frase – nunca deixara de confiar no marido.

Cultivava a ilusão, se é que era ilusão, como quem cultivava uma plantinha rara, de flores miraculosas. E assegurava: – Está nisso o segredo da felicidade feminina!

As moças nem a ouviam, inclinadas sobre os peitoris, à espera!

Era agora o páreo do Campeonato. Crescia o entusiasmo. Quem ganharia a taça de ouro?

Soou o tiro, sinal da partida.

Arfavam as bambinelas de renda do pavilhão e as tiras gárrulas das bandeirolas ao sopro salitrado da aragem. Um rosário de marrequinhas desfiou-se no ar com o susto. Nas arquibancadas os leques e as fitas multicores agitavam-se numa palpitação violenta.

– Aceita este raminho de violetas, Sinhá? – disse Caldas com malícia.

– O seu caiu ao mar...

– Aceito, com a condição de poder dar a este o mesmo destino que dei ao outro...

Para tomar as flores da mão de Adolfo, Sinhá voltou-se e relanceou depois o olhar em torno do pavilhão.

– Olhe quem está ali!... – disse ela à mãe, baixinho, apontando com os olhos um certo ponto do cais.

A mãe seguiu-lhe a direção e também Adolfo, que lhe não perdera os movimentos.

Padre Assunção estava de pé, e unida à sua murcha batina preta, Glória esticava o pescoço para ver bem o mar.

A Pedrosa trocou um olhar com a filha e voltou as costas ao padre. Sinhá demorou-se um pouco a contemplar com simpatia o perfil incorreto de Glória e o seu vestidinho de fustão branco sem laços. Depois, voltou-se para a baía: calara-se a música, e as baleeiras cortavam a água céleres, vigiadas pelas barcas e por escaleres admiravelmente tripulados.

“A mãe não se esqueceu... Mas a filha é já indiferente ao Argemiro... Amores novos...”

E já as lanchas guinchavam atordoadoramente, quando Adolfo meteu os ombros por entre a multidão.