Saltar para o conteúdo

A Luta/VI

Wikisource, a biblioteca livre

Foi na repartição, sentado modestamente em frente à sua pequena mesa de amanuense, perdida entre outras na vasta sala oficial, nua e clara, e quando enchia alguns ofícios do seu cursivo nítido em que sobressaíam as letras maiúsculas bem lançadas, que Alfredo Galvão recebeu a segunda picada da suspeita acordada no seu espírito confiante, à última ida a Santa-Teresa pela atitude da mulher com Gilberto. A Celina, desde então, andava de um humor feroz, desleixando as crianças, atirando com as portas, encolhendo-se hostilmente na beira da cama, à noite de costas para ele, afim de lhe mostrar bem a sua aversão caprichosa: e uma funda melancolia descia, como um crepe negro, sobre o coração sensível do pobre rapaz. Mas coisa singular! a mãe, dantes tão ríspida era quem agora o consolava e animava com uma doçura toda feminina, tão penetrante e untuosa que conseguia dissipar as apreensões que o afligiam. Embora se cavassem mais os olhos dela, analisando do fundo sombrio das órbitas os modos e as esquisitices de gênio dessa nora, que trocara a antiga indolência por uma irritabilidade inquieta de todos os instantes, fechando e abrindo janelas ora de cara zangada, ora a cantarolar cançonetas, principiando e largando leituras, costuras, arranjos, numa intenção visível de contrariar os hábitos ordeiros da casa e ser desagradável e incômoda — nenhuma censura saía mais da boca da velha senhora. Mais taciturna, apenas, mas também mais cuidadosa com o filho e os netos, parecia só observar, coibindo-se de criticar. E eram palavras confortadoras, quando a sós com Alfredo, que lhe apaziguavam o vago terror. Deixasse, que aquilo passava! Eram nervos de mulher estragada de mimos... Era talvez... um começo de gravidez — e ele devia ter paciência... No fundo, Dona Margarida é que vivia inquieta, farejando essa sobre-excitação que datava da volta de Santa-Teresa...

Entretanto, nessa manhã, em sua repartição, empolgado pela rotina de um serviço monótono, Alfredo, entorpecido na cadeira, esquecera quase as atribulações domésticas, quando entrou o M. Cerveira, empregado mais antigo, pançudo e vermelho, espécie de jogral da secretaria, que se dirigiu logo à sua mesa, palitando os dentes. Era o cacoete desse bobo alegre: trazer sempre palitos o bolso e viver a esfuracar a dentuça, dizendo graçolas. Nesse momento, fitando Galvão com um riso lorpa, ele exclamou:

— Parabéns, meu caro! parabéns!...

Todos os outros empregados se voltaram; Alfredo ergueu os olhos surpresos. Parabéns de quê?

— Pois então, seu patife! berrou o Cerveira, você tem uma mulherzinha encantadora e não dizia nada à gente? Uma sílfide, senhores! — e o homem alargava o olhar esbugalhado — uma morena de truz, com uns olhos de ônix, grandes assim!...

Os seus dedos desenhavam no ar dois enormes círculos.

Alfredo, empalidecendo, perguntou em tom contrariado:

— Como é que você conheceu minha mulher, Cerveira?

— Ora adeus! como se conhece o sol, quando ele ilumina a terra... Você quis fazer de nuvem ciosa, mas a luz rompeu a nuvem e eu vi, seu patife! eu vi...

— Onde?...

Os outros divertiam-se, gozavam a transparente contrariedade do marido ciumento. Risadas esfuziavam pela sala.

— Onde? respondia a voz trovejante do gaiato, mas no lugar onde se avistam todas as mulheres bonitas da cidade: na rua... Pois onde havia de ser? Não de certo em algum aerostato sulcado os ares...

Gargalhadas. O Galvão, contudo, ia repetindo com assombro:

— Na rua?!... — e mais baixo, como para si: — a Celina na rua?!...

Perfeitamente, homem! bramiu o outro. Não foi na lua... E que houve nisso de extraordinário? Ela saía de um dentista do Largo da Carioca,com a filhinha pela mão — e eu, confesso, eu logo fui seguindo-a, que por mulheres bonitas sou um babão... Mas sossegue, amigo! — fez uma rasgada e irônica reverência — apenas soube adiante por um conhecido que era a sua senhora, acabou-se! dei duas voltas à direita e toquei a retirada...

Alfredo esboçou um sorriso amarelo e tratou de mudar de assunto e prosseguir no trabalho, mas a mão tremia-lhe e o cérebro estalava sob a onda de pensamentos desagradáveis, tumultuando-lhe na mente. E verdade que o Morais, dentista da família Ferreira, tinha o seu gabinete num primeiro andar, ao Largo da Carioca, onde a Celina já fora mesmo uma vez; mas ela nunca saía sozinha, sem ele, e ainda menos sem ciência sua. Então como explicar esse encontro do Cerveira? E sobretudo, como compreender o silêncio da mãe, tão austera, a propósito dessa saída insólita da nora, quando, mais energicamente do que ninguém, ela sempre verberara, num emperramento burguês, os costumes modernos de andarem as mulheres casadas em passeio sem os maridos, cada qual para o seu lado, numa dissolução de todos os respeitos conjugais?

Esse silêncio, portanto, implicava uma cumplicidade, pelo menos uma bizarra condescendência — a não ser, porventura, que a movesse a compaixão do que ele sofreria sabendo e estranhando o caso.

Isso, porém, seria o acoroçoamento imoral a liberdades maiores, a inovações perigosas, incompatíveis com o regime do seu lar — e ele não queria, não queria... As coisas começavam a parecer-lhe bem esquisitas e anormais desde algum tempo...

Alfredo pôs o chapéu na cabeça e largou a repartição antes da hora regulamentar, entrando pela casa numa desusada atitude de irritação e angústia.

A mãe, que cosia na sala da jantar, levantou para ele os olhos pisados e logo os baixou enquanto Lucília e Raul corriam ao seu encontro: mas ele repeliu as crianças e marchou direito à mulher, que lia regaladamente o seu romance numa cadeira de balanço. Estava ainda com um roupão de manhã, todo enxovalhado, e nem penteara os cabelos crespos, secos do travesseiro, cujos anéis desordenados lhe esvoaçavam sobre a testa e as orelhinhas, dando um picante mais vivo à treva dos olhos grandes, como pincelados de bistre.

— Não me dirás, perguntou Alfredo, numa impetuosidade de tímido, arrancado aos seus hábitos de passividade, não me dirás quem te deu licença para saíres à rua sozinha, sem me consultares?...

Como ela esboçasse um gesto, descansando o livro nos joelhos, ele atalhou mais veemente:

— É escusado negares... Eu soube... Acabei agora mesmo de sabê-lo, e até que foste ao dentista...

Voltou-se então para D. Margarida:

— E o que, sobretudo, me admira minha mãe, é que a senhora deixasse Celina sair só, não fazendo conta da minha autoridade de marido. Nem ao menos me avisar desse abuso, a senhora!... a senhora!... É pois um conluio? um... um...

Entrou a gaguejar e resvalou sobre uma cadeira, muito branco, engolindo as expressões mais duras que acudiam à sua estranheza, à sua cólera.

A velha tinha se aproximado, trêmula, e de pé diante do filho, ia balbuciando explicações vagas — que a Celina já lhe aparecera vestida e ela não pudera impedir a saída. De resto, nos tempos modernos, o pecado não era assim tão grave, andando sós pela cidade todas as senhoras, casadas e até solteiras... Alfredo tinha os olhos fitos na mãe e interrompeu-a ironicamente, inquirindo:

— A senhora procederia desse modo, no tempo do meu falecido pai?...

Espalhou-se um fugitivo rubor pelas faces franzidas de D. Margarida, ao responder que outras épocas, outros costumes; mas Alfredo bateu com o pé no soalho e gritou impacientemente que não se tratava disso... A coisa era outra... Por que lhe tinham escondido a saída de Celina? Pois não estava ele ali, para acompanhar sua mulher ao dentista, como a quaisquer outros lugares? Como é que de repente surgira semelhante inovação misteriosa, incompreensível? Virou-se para Celina e exclamou:

— Queres agora imitar os americanismos escandalosos das tuas irmãs, não é? Mas isto aqui não pega, minha cara... Os hábitos são diversos...

A sua voz, de ordinário macia e branda, um pouco lenta, fizera-se aguda para as estridências da ira, subindo a um diapasão de falsete que lhe forçava a fraqueza das cordas vocais; e Celina, que se conservara como desdenhosamente alheia ao debate, a roer películas das unhas, deitou-lhe enfim um olhar raivoso e disse com afetada inflexão de tédio:

— Tanto rumor por tão pouco!

— Tu achas?

O rapaz tinha-se curvado, surpreendido, examinando-a; e ela então, endireitou o busto e sibilou:

— Se acho?... Mas acho, sim... E tenho mais a dizer-te, ouve lá: é que estou farta, farta até aqui — mostrou os olhos — de tanta dependência, de tanta escravidão...

— Tu, escrava?...

— Decerto... Pois é brincadeira viver como eu vivo entre duas sentinelas vigilantes, sem a mínima liberdade, não podendo dar um passo, fazer um gesto, ter um capricho, sem primeiro consultar, pedir licença às duas vontades superiores à minha, que me mantém amarrada, presa, mais presa do que se apodrecesse debaixo de grilhões, no fundo escuro de um cárcere?...

O filho e a mãe trocaram um olhar consternado, como se o mundo sobre ambos desabasse, num horrível cataclismo de todos os princípios; e Celina prosseguiu, indiferente à visível angústia dos dois, parando às vezes para buscar novas recriminações no fundo da memória e com nódoas biliosas estriando-lhe a pele fina de morena:

— Atacam agora o americanismo de minhas irmãs... Mas sabes tu, Alfredo, que eu as invejo do íntimo da minha alma? Elas ao menos vivem; e eu?... eu crio mofo na rua das Marrecas.

Os seus olhos negros cintilavam, quereriam gritar ao marido a sua revolta, numa injúria aprendida com a mãe, que a presença da sogra ainda tolhia; mas tinha vontade de bater nesse ente fraco que se insurgia contra o seu domínio e levantou-se, fremente, gritando do corredor:

— Estou farta!... farta de cativeiro!...

Ouviram-na fechar com estrondo a porta do quarto e os dois desviaram tacitamente a vista um do outro, como envergonhados da cena, deixando sem resposta as perguntas inocentes da Lucília, um pouco assustadinha, que insistia em querer saber por que estava a mamãe tão zangada.

Ao fim de uns minutos de embaraço, Alfredo observou com um sorriso humilhado:

— Ela finalmente, não explicou essa ida ao dentista sem ciência minha...

D. Margarida, retomando a costura com os dedos, que lhe tremiam, respondeu num suspiro:

— É que não houve maldade, filho... E depois... depois — teve um gesto contristado — agora é tarde... Isto é a conseqüência dos romances que ela leva a ler dia e noite...

Ele apoiou, já abatido:

— É, tem razão!... São os romances...

E insinuou para o lado do quarto um olhar já perplexo, indeciso, vexado, muito infeliz, em que se acendia o desejo secreto e envergonhado de uma reconciliação que lhe apaziguasse a angústia mais forte que a energia.

A velha, que percebera, mal conteve um momento de cólera; a antiga autoridade reviveu um segundo fulgor rápido da pupila observadora; mas logo reprimiu o ímpeto e murmurou, forçando a voz a ser doce, toda ela piedade e tolerância:

— Por que não vais pedir-lhe uma explicação? Os dois, sozinhos, vocês melhor se entenderão... Vai, meu filho, vai, que as coisas se hão de arranjar. São tolices, leviandades...A Celina tem gênio...

Alfredo olhou-a longamente, com respeito, com uma infinita gratidão um imenso amor, e partiu depois para o quarto, enxugando os olhos... Ia mesmo... Era um fraco... Não podia mais...

Sozinha, então, entre as crianças, D. Margarida sentiu quebrar-se-lhe a enérgica dissimulação e rompeu a chorar com uns curtos soluços secos de velha, desabituada a expansões balbuciando no seu confuso terror de mãe dedicada:

— Em que dará tudo isto, meu Deus?! ...Onde foi a nossa boa paz?...

Lucília chegou-se, um pouco espantada e pôs-se nos bicos dos pés para examinar a face da avó, que ela nunca vira nesse estado nervoso.

— Vovó está chorando? perguntou a sua vozita curiosa.

D. Margarida prendeu-a nos braços e respondeu depressa, dominando a sua emoção:

— Não, minha filha: é defluxo...

E assoou-se ruidosamente, para melhor dissipar as suspeitas da menina...