A Luta/X

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No outro dia, Alfredo recebeu uma carta de Santa-Teresa: era de Celina que lhe pedia a deixasse ficar uns tempos em casa da mãe, porque se sentia cansada da vida estreita e aborrecida da rua das Marrecas, precisando de ar e de desafogo. Não exercesse pressão sobre a vontade dela, porque seria então pior. Quanto a Lucília, ficasse tranqüilo, porque não lha queria tirar, sabendo não ter esse direito. E num rápido post-scriptum, em letra mais tremida, ela ajuntara: "Beijinhos a meu filho Raul".

O Galvão sentiu um imenso desespero, lendo essa carta dúbia e enigmática, que lhe deixava toda a incerteza de uma situação insustentável, incompatível com a sua dignidade de homem e a sua autoridade de marido. Mais revigorado pela noite repousante e, portanto, mais enérgico, pretendeu responder imediatamente com uma intimativa forte, afirmando o poder legal de exigir volta nessa mesma hora ao domicilio conjugal, mas D. Margarida o dissuadiu de tão inútil gasto de veemência aliás passageira, ela bem sabia; e fez-lhe notar que a carta fora ditada, aconselhada, estava demasiado correta para o estilo infantil de Celina.

— A insubordinação não é toda espontânea, meu filho, e o post-scriptum, releva o último e sincero pensamento, que foi de emoção e saudade. Ainda há, pois, esperança.

Alfredo, de resto, tinha nesse dia uma obrigação insuportável, a que não podia absolutamente faltar: o seu chefe embarcava para o Estado de Alagoas, com licença por três meses, para uma pessoa enferma da sua família e todo pessoal da Secretaria devia comparecer ao seu embarque, sob pena de cometer a mais grave das irreverências contra um superior.

Logo, às 11 horas da manhã, sob um mormaço ardente sucedendo às chuvinhas da véspera e que ameaçava nova mudança de tempo para a tarde, acharam-se reunidos no cais Pharoux representantes de todas as classes sociais, comissões de diversos departamentos da administração pública, cavalheiros com suas esposas e grupos de curiosos.

O mar, onde lanchas evolviam numa surda trepidação de espera, tinha uma aparência plúmbea, com súbitas investidas espumantes contra a escada do embarque. E o Marino Cerveira, palitando os dentes, observou com um riso grosso que esses assaltos da água, aparentemente submissa, lembravam os conceitos dos empregados públicos acerca dos chefes, entre curvaturas do estilo.

Olhem, avisou ele, abotoando a sobrecasaca, envergada impropriamente a essa hora, lá vem o diabo! A carga, pessoal!

Correram todos, chefes de seção distanciados do Cerveira, oficiais como este, amanuenses, os amigos, os conhecidos, os engrossadores, vermelhos e suarentos, carregando corbeilles e ramos de flores naturais — de modo que, ao descer do automóvel com a senhora, o Dr. Gregório Padilha, ex-ministro, diretor geral de uma importante repartição e apontado como futuro chefe de uma comissão superior na Europa, para estudar a qualidade dos arreios da cavalaria dos exércitos estrangeiros, ficou envolvido numa onda simpática e tumultuosa que lhe cortou o caminho para o cais.

Muito alto, cara trigueira e pequenina, barrada por dois espessos supercílios unidos sobre o nariz chato, um grande bigode hirsuto sobre o lábio grosso, que sorria, ele murmurava para um lado e outro, apertando mãos estendidas, ajustando às vezes a correia da bolsa de viagem que lhe pendia tiracolo:

— Obrigado, Luiz!... Obrigado, doutor! Graças, senhor senador!... Oh! D. Francelina!... Mas por que se incomodaram assim?

— Um vivo prazer, ao contrário, protestou o Major Vinhaes. E mais baixo: Não se esqueça do meu negócio da estrada de ferro...

A senhora do Padilha, corpulenta, com os seios estourando no casaco cinzento de viagem, cuja forma collant ainda mais avultava a saliência dos quadris, deixava-se abraçar pelas amigas, aceitava os ramos de flores, as corbeilles e as homenagens, já tão aflita, que o suor lhe pingava do rosto escarlate, sob o véu branco, arrancado a meio pelos beijos pressurosos: e o Cerveira, apesar da sua independência, precipitou-se, ofereceu-se para carregar até ao vapor os ramalhetes de despedida — o que ela aceitou, com um agradecido sorriso de alivio. Então, exultando, mas sempre traiçoeiro e cômico, o bufão da secretaria mostrou as flores que lhe pesavam nos braços e largou o bote:

— Eu carrego as rosas da botocuda e o marido carrega o cobre da nação... Vai todo ali naquela bolsa, em cheques e títulos ao portador...

O Cassiano, que já fizera mil ensaios de cumprimentos, doido por merecer, ele simples amanuense, um shake-hands do diretor, confirmou, cauteloso e amarelo, que o diabo era mesmo um ladrão; todo o mundo sabia; mas nem assim se lembrava de dar uma gratificação aos pobres empregados inferiores. Só os chefes é que... Cambada! Viu, porém, uma aberta no grupo que cercava o Padilha e jogou-se para a frente, furioso, de cotovelos hostis, furando o novelo engrossativo até chegar ao centro colimado, onde gozou o contato dos Deputados Amorim e Caídas, do Capitalista Moreira, do Ministro da Justiça, do ajudante de ordens, do Ministro da Marinha, do Chefe de Policia Valladão, do Desembargador Barroso, dos Senadores Palha e Leite Magalhães, até de um l tenente do Exército, resplandecente de ouros, representando o Sr. Presidente da República!...

A senhora do Padilha, no entanto, ia sossegando a terrível inquietação dos circunstantes com a segurança de que último telegrama de Maceió já acusava, felizmente, algumas melhoras no estado do doente, um irmão do Gregório. Iam mais tranqüilos...

— Graças a Deus! exclamou com fervor a senhora do Amorim.

Outra perguntou, cheia de interesse e cuidado:

— Qual é a moléstia?

— Uma gripe intestinal, coitado!...

— Ah! interrompeu uma terceira senhora, erguendo mais o guarda-sol aberto, cujo estofo rasgado em vários pontos aparecia estrelado de furos luminosos; os dedos que seguravam o cabo tinham também as pontas das luvas roídas; parece que é uma moléstia muito grave. Dá uma febre horrível, não

Ninguém lhe respondeu, o que não impediu que ela continuasse a sorrir e indagar, numa afável pressurosidade.

Era a Madame Calasans, professora em casa da Baronesa de Azevedo, onde se encontrava com todas essas senhoras nas noites de recepção, quando fazia as suas discípulas, duas irmãs obesas, tocarem músicas a quatro mãos. Na esperança de ensinar também às filhas da senhora do Padilha, ali viera ao embarque, bajulando com o estômago a dar horas, aceitando desdéns e grosserias sem uma revolta, na única ânsia de angariar mais algumas alunas, que a vida era dura para uma professora de piano e canto.

Um movimento, porém, se produziu: chegava o coronel Juvenato, o ventre mais proeminente num temo cinzento, curto e leve, a placidez gordurosa da face mais acusada sob a luz crua do cais. Trocaram-se cálidos apertos de mão. Então essas políticas de Alagoas, hein? Ora, o Rogério de Miranda...

Alfredo Galvão, entretanto, murcho e arredio até agora, só fazendo ato de presença, ia aproximar-se, mas viu o Coronel Juvenato, e ficou como fascinado, suspenso, a devorá-lo com os olhos.

Ele vinha de Santa-Teresa... Ele estivera certamente com Celina... Se o interessasse pela sua causa, obtendo dele a explicação do afastamento inopinado da mulher?... Numa candidez de alma confiante, já ia tentando chegar-se ao gordo cearense, quando felizmente para a sua dignidade, os grupos moveram-se, aceleraram-se despedidas, abraços, o Deputado Amorim deu o braço à senhora do Padilha para fazê-la descer os degraus da escada de embarque, varridos pela ondulação espumosa das ondas — e a lancha trepidante recebeu enfim dentro do seu bojo vibrátil os ilustres viajantes e vários amigos, em cujo número teve a audácia de insinuar-se o maranhense Cerveira, de sobrecasaca preta, muito sério, evitando o olhar com que de cima o varavam os companheiros, abafando risos e sempre carregado dos ramos de flores e das corbeilles que não quisera jamais largar, na sua ardente dedicação ao Padilha, pela sua própria veia crismado o diabo!

Outras lanchas largaram, num grande rumor de máquinas; o cais foi sendo abandonado pelos curiosos; e o pessoal da repartição enfim debandou, o mormaço mais quente que banhava o largo, deixando para trás o mar de aço brunido em que se sumiam as embarcações a caminho do paquete a sair e vingando-se dos constrangimentos obrigatórios do bota-fora com chalaças pérfidas ou cruas que atingiam o Padilha, a mulher e todo o séquito de amigos e engrossadores. Só o Alfredo se conservava alheio às gargalhadas ferinas, absorvido, calado; e no seu cérebro um único pensamento tumultuava: que faria a mãe para cumprir a promessa de restabelecer a sua vida conjugal interrompida? Que estaria ela já fazendo, a essa hora? Teria empreendido qualquer coisa?

Efetivamente, D. Margarida não descansara; e, como obedecida nessa crise a um impulso de fé religiosa, que da aflição lhe brotara na alma com fervores um pouco esquecidos na monotonia da velhice, decidira ir pedir à igreja um conselho, um raio de luz que a guiasse na sua obra generosa de reconciliação de um casal. Logo que o filho saíra para o embarque do seu chefe, tinha enfiado o seu vestido preto de viúva, a sua capa de rendas e vidrilhos e pousado sobre o novelo alvadio do cabelo o seu toucado sério, onde um tufo de violetas emergia dos flocos de filó. Calçara depois as suas luvas pretas, sem um furo, e saíra, assim correta, na direção da velha igreja da Lapa dos Carmelitas — a mais próxima da sua rua. Comboios de elétricos, carroças, tílburis, enchiam de movimento e rumor o largo da Lapa, onde o Grande Hotel fazia reluzir ao sol mormacento as vastas letras do seu alto dístico; nas casas de bebidas ao canto da rua aberta de fresco, ouvia-se o alegre tinir das xícaras de café no mármore das mesinhas, ocupadas pela rápida freguesia dessa hora de partida para o trabalho diário e que punha nos estabelecimentos um tropel de entradas e saídas, um clamor de pedidos apressados. Um café! um café com leite!

O empregado corria, aviava-se com a cafeteira, porque o bonde ia partir e o freguês reclamava de afogadilho a sua bebida quente; mas outros chegavam e as canequinhas de louça não cessavam de bater no mármore das mesas, aos gritos dos serventes de avental: dois cafés! um leite!...

Do pórtico sombrio da igreja, beatas iam saindo, vagarosas, recolhidas, de rendas negras à cabeça, já tendo ouvido a sua missa da manhã. Eram em geral pretas beiçudas, de olhar inexpressivo, enrolando ainda os rosários; ou mulatas lívidas e inchadas, conservando na rua o ar contrito dos confessionários; ou senhoras já velhas, de face engelhada e pés arrastados, anuladas pelo excesso da devoção, encolhendo-se apenas fora das sacristias silenciosas, cheirando a incenso, no terror da vida ativa e pensante dos centros inteligentes e práticos.

D. Margarida passou pelo meio dessas sombras e pediu a um sacristão para falar ao padre José, idoso reverendo que ela conhecia muito do tempo em que se confessava e cujos conselhos lhe pareciam dignos de ser ouvidos nas circunstâncias cruéis e difíceis que atravessava.

Mas o padre José estava confessando.... Não fazia mal: ela esperaria... E subiu a nave, impressionada pelo silêncio místico da igreja obscura, ajoelhou-se, orou, e depois, acomodada à ponta de um banco, deixou errar a vista respeitosa e tímida pelos nichos dos altares, onde imagens com auréolas fulgentes se erigiam em atitudes dolorosas ou dominativas entre dourados, veludos, flores e molhos de velas. Nossa Senhora da Soledade tinha um aspecto magoado sob as pregas amplas do seu rico manto salpicado de estrelas e franjado de ouro. Um Cristo, vergando ao peso da cruz, só deixava entrever um pouco da face torturada e sangrenta por baixo da densa cabeleira (presente de uma devota que a cortara da sua própria cabeça) encimada pela coroa de espinhos. Uma tênue claridade caía da abóbada sonora. E uma campainha retiniu atrás de D. Margarida, que se voltou, reverente: era a missa do sétimo dia pela alma de um defunto, lembrado por uma mulher pobre e mal vestida, que chorava, prostrada diante de um dos altares laterais.

Ergueu-se porém de junto do confessionário um vulto de mulher, bateu surdamente a portinha do mesmo refugio dos pecados e o padre José saiu, pesado, gordo, e caminhou para a sacristia. D. Margarida, então, com uma pancada no coração, foi atrás dele, na ânsia da luz que lhe viria sem dúvida das palavras de tão santa boca: e pouco depois, sentados o padre e a velha num banco da sacristia, entre a cômoda recoberta de uma toalha rendada, onde se perfilava um crucifixo entre castiçais de latão, velas de cera amareladas, e a mesa dos livros de assentos, D. Margarida desfiou toda a história do casamento do filho com uma menina de família sem princípios, insistindo na desenvoltura cínica da mãe, nos maus exemplos que ela dava, e acabou contando a crise final e a sua resolução de decidir a nora a voltar, senão o Alfredo morria de dor, mas qual o meio a empregar para que o sentimento dos deveres conjugais e maternais acordasse nessa alma de moça caprichosa, entregue ainda por cima às sugestões perniciosas do meio a que se acolhera, num inexplicável assomo de aborrecimento ao lar onde era querida como uma santa pelo marido?

— É isto que lhe vim perguntar, Sr. Padre José, cheia de confiança, porque conheço a sua virtude. Quero agir, mas sou uma pecador a ignorante... Empreste-me a luz do seu espírito de ministro de Deus! Guie-me como estrela salvadora, mas trevas em que me debato...

O sacerdote bocejou ruidosamente, afagando as roscas do pescoço nédio com os dedos grossos. Disse depois, hesitante:

— Eu, minha senhora, na verdade... Essas questões de família...

Mas interrompeu-se, gritando para um sacristão pardo, de ar humilde, que abria uma gaveta da cômoda dos paramentos:

— Oh, Ambrósio! Você está cego? Não vê aqueles dois cachorros quase a entrarem inconvenientemente no recinto da Igreja? Escute, venha cá: de quem é a missa das nove e meia?...

— É do Sr. Padre Travassos...

— Logo vi!... Bem; pode ir...

Voltou-se para d. Margarida, mais afogueado, uma ruga entre os sobrolhos:

— Pois, minha senhora, é isto: as questões de família não afetam o meu ministério, fora do confessionário. Essa mãe da sua nora – cravou um olhar penetrante na velha – é realmente capaz de pregar maus exemplos à filha? A senhora tem certeza de não estar cometendo o feio pecado da calúnia, da maledicência. E do ciúme?...

D. Margarida recuou, assombrada:

— Eu, sr. Padre José?!... Mas todo mundo pode apreciar a maneira de viver dessa sogra de meu filho, e o modo por que dirige as filhas solteiras, educadas à solta, andando sozinhas com rapazes... O padre deixou pender um beiço meditabundo, D. Margarida aproximou-se outra vez, mais persuasiva:

— Olhe, Sr. Padre, meus intuitos são tão desinteressados, que se eu obtiver que minha nora volte para casa e meu filho fique novamente feliz entre a sua esposa reconquistada e os seus filhinhos, sou capaz de largar o meu velho canto e liberá-los da minha sombra incomodativa. Mas que devo fazer? Eis aí...

O sacerdote varou-a de novo com o olhar;

— Quem sabe se seu filho era um marido corrompido, perverso, que cansou a paciência da esposa? Às vezes...

— Ele?... O Alfredo?...

— Espere... Às vezes o homem maltrata a mulher...

— Nunca! Juro por Deus, Nosso Senhor!

— Quem me diz que a mãe dela não a está consolando de atritos dolorosos que convém deixar amortecer?

D. Margarida aprumou-se, com uma leve chama nos pômulos da face:

— Sr. Padre José, disse a velha solenemente, Vossa Reverendíssima está invertendo todo o lado moral da questão. A sogra de meu filho é uma mulher mal procedida, garanto-lhe, uma mulher corrupta, venal — e a permanência da filha casada sob o seu teto oferece os maiores perigos. É uma casa de pensão, cheia de homens... Eu nem sei até...

Calou-se um segundo, aflita, passando a mão pela testa, onde esvoaçavam alguns fios de cabelo branco; e concluiu, enfim, num envergonhado murmúrio de voz:

— Nem sei até se ainda será tempo...

Um padre entrou, acabando de dizer a sua missa, e ficou a despir as vestiduras sacerdotais diante da cômoda, ajudado pelo Ambrósio. O sol abriu, mais vivo, mais quente; e — o padre José, então, abafando um novo bocejo com a mão gorda, dirigiu-se com certa impaciência à sua consultante:

— Minha irmã, escute: o meu conselho é este, muito pensado, filho do meu conhecimento das criaturas: não faça nada!... Deixe que a vontade de Deus, todo poderoso, se manifeste...

Se a vontade do Altíssimo, nosso Pai, for que a sua nora tome à companhia do marido, Ele iluminará essa alma perturbada com um raio da divina verdade: e ela voltará, dócil como a o velhinha de um aprisco bendito...

A velha saltou, enervada:

— E se a rapariga se perder e meu filho morrer de desespero?...

O padre alçou piedosamente para o teto da sacristia as pupilas baças:

— Deus, na sua misericórdia, fará tudo pelo melhor. Deus a há de inspirar, salvando-a do pecado mortal, para que um dia seja digna do reino do céu. E vós, minha irmã, é a falta de religião que assim vos agita... Abandonastes a fé nos desígnios da Providência, e a inquietação penetrou na vossa alma desamparada...

D. Margarida não pode suportar mais tempo essa linguagem enfática e vazia de pregador no púlpito. Ela revelava a sua dor, a sua luta, a sua ignorância; e ele respondia com essa voz banal de confessionário, essa contrição empolada e sem sentido, essa verbiagem odiosa, em que se sente claramente o egoísmo e a hipocrisia... mas então ela se iludira e só da sua consciência devia receber o conselho que lhe traçasse o caminho a seguir... Já a claridade lhe aparecia — e não vinha decerto dessa sotaina bojuda, espaçada ali ao seu lado, numa atitude de tédio: vinha de mais alto, essa luz, vinha da orientação que Deus, suprema e misteriosa força, nada tendo de comum com o artifício dos padres, incute em cada espírito humano se ele consulta deveras, sem ressalvas egoísticas, a voz da justiça, da sinceridade e do sacrifício, que fala eloqüentemente no íntimo de todos os homens...

E a mãe de Alfredo deu por finda a entrevista, curvou-se em silêncio e foi saindo pelo corredor obscuro e frio da sacristia, onde o seu passo ecoava, enquanto o Padre José, mais atrás, vociferava outra vez:

— Oh! Ambrosio! pois você não vê?... Estão ainda os cachorros aqui... Enxote-os, homem!... Mexa-se!...

Um rumor de bengaladas no ladrilho, latidos furiosos de cães perseguidos — D. Margarida, pestanejando à luz exterior, achou-se no largo da Lapa e desceu a rua do Passeio, com destino à rua das Marrecas.

Voltava triste, sentindo o peso de uma desilusão que lhe havia abalado a consoladora fé num governo mais alto, mais esclarecido, trazendo o cunho de uma orientação quase divina. Mas a sua energia não esmorecera. Apenas contava agora só consigo e com o apoio de Deus, diretamente invocado, sem a invocação, sem a intervenção dos seus ministros. E já traçara o seu plano. Ia agir. Seria a luta, com a vitória ou a derrota como desenlace, mas ela não havia de assistir inerte ao descalabro da honra e da vida do seu único filho. Agiria amanhã, depois sem perder com vacilações estéreis dias preciosos. E foi com um bom sorriso de avó, desprendendo o seu toucado preto de que emergia um pequeno tufo de violetas, que ela beijou o Raul e inquiriu ternamente:

— Estás com muitas saudades da mamãezinha?

O petiz, não pensara muito nisso de saudades, mas às palavras da avó, de repente abalado abriu a boca reluzente de manteiga e rompeu a gritar como um bezerrinho possesso:

— Quero mamãe! quero mamãe!...

— Deixa estar, meu bem, que a tua mãe volta... Pede só a Deus que me ajude!...

E enxugou carinhosamente as lágrimas do bambino, depressa consolado e enterrando de novo os dentinhos de leite na fatia de pão barrada de manteiga que a Faustina e dera para esperar o almoço...